O desenvolvimento desta nota provém da conjunção de dois artigos sobre Rodrigo Petronio que têm como base seus dois livros, História Natural e Pedra de Luz, e como que acompanham a evolução de uma proposta estética que instaura um novo território dentro das variantes poéticas que o Brasil oferece. Na primeira parte se delinearam os entrecruzamentos discursivos que a filosofia e a literatura introduzem na textualidade total de História Natural; também a contingência do humano diante dessa estranha invenção que é o tempo, e a noção de aberto enquanto condição de toda a errância em um momento de crise representacional. Já na segunda, se radicalizam essas posições temáticas, embora eu enfatize as relações existentes entre o dizer e os assédios inapreensíveis do ser, tal como o trabalhariam Blanchot e Lévinas provavelmente: tenhamos em conta que Pedra de Luz é um aprofundamento das inquietações que sustentam História Natural, mas com a clara consciência de que se leva a cabo uma tensão quase insuportável entre a palavra e sua capacidade de alusão, ambiguamente intermitente. Daí a — anunciada? — morte do autor, a conseqüente busca da outridade e as implicações de nossa condição perplexa diante da necessidade de querer nomear o que é inominável. Como quem escreve sobre a areia das dunas movidas pelo vento.

 

 

I

 

O DIZER DAS DUNAS MOVENTES: APONTAMENTOS SOBRE HISTÓRIA NATURAL

 

Poética do ser e do instante. Ou talvez do ser no instante. Curiosa e consumada mostra do que se costuma chamar poesia metafísica, História Natural (São Paulo, Gargântua, 2000) se inscreve em uma extensa tradição onde a escritura deseja o desvelamento, racionalidade que não aspira adentra-se no conceito, mas sim naquilo que o conceito mesmo cala. E se se levar em conta o aspecto tangencial desse modo discursivo, veremos que Petronio tenta navegar para além da grafia, tentando chegar ao vital, embora esse movimento entranhe em si um certo desencanto diante da trama fenomênica que nos rodeia e que nos constitui: Vaga entre esses objetos/ resolutos em sua insignificância;/ deixa-te perder neles./ Fotografias, óculos, talheres/ porcelanas com idade ainda/ a ser calculada: sente a química/ que cada um deles/ expele e guarda, pousa as mãos inermes/ sobre esses fósseis animados,/ munidos, cada qual, contra/ os sóis e pernas diárias,/ de sua esperança objeta de tão evidente. Uma advertência implícita: é certo que compreender uma expressão lógica e decifrar imagens não são a mesma coisa. Mas a interpretação (ou seus eclipses) encontra sua função ao atender à intenção constitutiva da experiência que se anuncia não só na metáfora, mas também no uso — às vezes desmesurado — da acumulação e no encavalamento que Petronio entretece ao longo de seus textos. Através da fragmentação do olhar, operada nesses cortes bruscos da sintaxe inerente ao verso, História Natural totaliza a representação distópica do mundo, um lugar de dissolução para objetos e seres imersos em sua unidade física ante a multiplicidade temporal e perceptiva. Daí que a poesia assuma, então, ser o reflexo fiel de uma porosidade cognitiva que superpõe as distintas seqüências da realidade e sua superfície negadora de sentido: Repousa tua consciência nessa fauna/ nascitura, amigo, aprende/ a amar esses pequenos deuses/ noturnos. Um dia hás/ de freqüentar esse reino de rancor,/ ausente de mistério. Anulação da sindérese, processo pelo qual se descobre o que encobrem as palavras e as coisas, temos sempre ao alcance da mão o oco ou o vazio transformado em devir a ser preenchido. A negação de uma hierarquia de estratos espirituais onde cada fenômeno material e falível tem seu equivalente ideal se torna aqui signo do não-apriorístico. A provável unidade cósmica, a reivindicação romântica das correspondências, não é nada mais que mera enteléquia: Durante séculos o homem/ se prostrou ante a magnitude/ desse Deus que se disfarça/ com as tintas do acaso,/ e nos ilude ao sugerir o eterno/ sob a nossa/ carcaça.

Como se haverá de notar, essa modalidade do dizer se aproxima em Petronio ao estalo semântico do aforismo: o poeta cria habitado por uma crença, uma convicção não expressa que, junto com outras, constitui o âmbito implícito onde se produz a interpretação. Toda obra supõe a eleição de um sistema mais ou menos coerente de crenças, o que implica uma hermenêutica que embasa a ação e sua imediatez. Neste caso, o de saber que a percepção do tempo resulta sempre no problema da percepção do eu: Se o tempo figura/a eternidade em cada/ um de seus momentos,/ e a revela por inteiro/ em cada uma das idades,/ só me resta ser a folha passageira/ que vai ao vento breve/ e se inscreve já sem vida na paisagem. Diante do incomensurável, Petronio recupera a concepção teológica do finito como consciência atenta dos limites ou obstáculos, a sua propriedade de ser, isto é, a sua potência. Se para Hegel o infinito é a realidade mesma enquanto ilimitada potência de realização, enquanto Absoluto, o finito é o que não tem poder o bastante para se realizar. Deste ponto de vista, o finito é irreal e encontra sua realidade somente no infinito e como infinito. Por isso, também, o terrível destes versos: nossa existência se resume em ser para não ser. Talvez morrer sem dar notícia ou margem/ ao equívoco, riscar com traço cirúrgico/ a compleição frágil deste corpo por milênios/ arquitetado, e interrogar calado/ se o trabalho de milênios quis/ exatamente isso. Por isso esse cansaço ontológico se transforma em um desespero contido e gradual quando o poeta afirma que o espírito quer eternidade.

Plotino identificou a eternidade com o modo de ser próprio do mundo inteligível, ou seja, com "o que persiste em sua identidade, com o que está sempre presente em si mesmo em sua totalidade, que agora não é isto e logo aquilo, mas que, em seu conjunto, é perfeição indivisível, como a de um ponto no qual se unem todas as linhas sem expandir-se fora dele: um ponto que persiste em si mesmo em sua identidade e não sofre modificações, que existe sempre no presente, sem passado nem futuro, mas que seja o que é e o seja sempre". Plotino repete a este propósito a anotação parmenídica e platônica: eterno é o que não era nem será, senão aquilo que somente é. Todavia, esse situar-se na perspectiva da lógica e da repetição, encontrando sua legitimação em um ato fundador originário reproduzido ritualmente, não deixa de ser uma nostalgia do impossível. Petronio observa que nossas categorizações temporais hoje se encerram dentro da variação, já que tudo se resume em gerar/ diariamente/ uma/ arquitetura/ de ar. Na medida em que não existem mais hierarquias de perfeição, ante a desaparição da centralidade da referência, as diferenças não podem ser pensadas em virtude da relação que possam guardar com a identidade. Não há solução para o problema da oposição entre sujeito e história. Mais que isso, este deixa de ser um problema, posto que desaparecem os esquemas simbólicos a partir dos quais este era percebido como tal. Impõe-se, portanto, um tempo pluridimensional, ambíguo, reversível, polivalente.

Um dos poemas em que o transbordamento visionário desta vivência se transforma em uma instância epifânica da leitura, Círculo de Giz, afirma que nada do que houve/ já tem consistência. O tempo/ traz de volta do futuro a nova/ arena e o novo circo, ambos/ compostos, na miragem ancestral/ espectros previstos e inscritos/ no corpo do Deus bruto e da natureza/ afirmando-o pelo seu contrário. É de se supor que esta apreensão, ubíqua e instantânea, da instauração de um transcorrer do tempo surge da angústia que suscita o devir, ausência teleológica que nos torna dunas moventes de um deserto. Não seria — portanto — de estranhar que esse feito mínimo, apostasiado nas dobras de nossa percepção, nos levasse a contemplar uma aceleração dos acontecimentos a ponto de produzir a sua própria inversão, sua auto-anulação antes mesmo de se consumarem: o tempo/ absorve a causa natural/ de todos os seres;/ lhes mostra a revelação/ mas lhes esconde o sentido.../ Nada nos prova,/ nada nos dá, e nos põe/ na esteira de vento do universo/ rodopiante, bruxo só de experiência/ feito.

Com a ressalva das diferenças que se podem objetar nesse breve comentário, Petronio, semelhante a Foucault, instala os feitos humanos na rareza, isto é, no imenso vazio a partir do qual não é possível uma leitura racional. Reduz o acontecimento mesmo à qualidade de objetivações contingentes de práticas sociais singulares. Em conseqüência, o poeta faz da gramática e sua cadência um movimento instável e sincopado que se insere em um campo prévio aos conceitos, posto que a representação remete à ação concreta a partir da qual o falante lírico se dirige a um mundo imanente. Desta forma, a conexão linear entre os sucessos registrados e a evolução finalística de categorias humanas se desmorona em uma seqüência de rupturas, na desintegração de seu sentido transcendente. Uma história que deixa, pois, de ser história, que só é simples expressão de uma vontade de poder circunstancialmente exercida por um sujeito plenamente objetivado. Em que pese a fascinação de serpente que provoca em nós essa forma de desagregação tortuosa, refletida no uso do hipérbato, jamais se deixa de lado sua monstruosidade inerente: Quem terá forjado esse engenho/ bruto, síntese maligna de quanto/ em seu íntimo destila?

A partir daí, a reivindicação de Petronio enquanto espírito que quer eternidade se traduz em corporalidade e evidência. Se se quiser, um delineamento próximo àquele de Alberto Caeiro, mas que, diferente deste, não surge em uma inserção na paganidade, em plena natureza, anterior à história e à consciência. Embora por momentos Petronio chegue a uma mesma valoração do real, o faz colocando-se em uma posição a posteriori em relação à história e através de uma consciência saturada de si mesma. Enquanto Caeiro fala de — e essencializa em seu dizer — montanhas, árvores, rios, Petronio toma como ponto de partida elementos próprios da cultura que, mediante a pós-modernidade, nos coloca em um perigo permanente de musealização do cosmos: Caliban/ bane Ariel./ Anfion faz/ uma flauta/ ruda/ da costela;/ tira ouro/ do nariz/ e diz:/ tua ruína/ será o meu/ castelo. Diante dessa nova modalidade de ser-no-mundo, cada fato (no apogeu de sua indeterminação) pode se desprender do sistema simbólico que o envolvera, embora deixe em suspenso as intenções de transferir significados de uma comunidade discursiva a outra. Labirinto dedálico do verbalizável, às vezes corre-se o risco de ver que esse terço/ essa cruz fixa/ rabisco/ não é uma casa/ essa casa/ esse verso/ (leitor: não)/ uma casa não é/ uma casa.

A aposta de Petronio retoma — como se fosse uma síntese de diálogo e contraponto — a crise do representacionismo como princípio de correspondência entre linguagem e realidade, já que a mesma (corporalidade ou evidência) se instala como entidade que não é preexistente ao processo de criação e captação doadora de sentido, convertendo-se por sua vez em um discurso que se pluraliza na incomensurabilidade das práticas que o geram e onde o sujeito já não se realiza mediante a dissolução do outro no mesmo, mas na ilimitada dispersão que deixa os demais serem o que são. O pensamento deixa de ser um neutralizador absoluto da diferença na unidade para operar como hermenêutica do diálogo infinito com o outro (ou, no melhor dos casos, um encontro com o outro: aí estão o erotismo finamente decadentista de Kalidasa e Prima Donna, ou o intimismo — que margeia poética e perigosamente o prosaico — de Cantiga de Amor). Por isso, na medida em que a suspensão do fático — ou sua efetividade heideggeriana — converte-o em mero conteúdo intersubjetivo, a explicação não constitui o modo dominante de aproximação ao objeto contingente. É a interpretação que serve de catalisador de uma experiência puramente compreensiva. Esta aponta para um mundo desagregado na infinitude de significados liberados pela excentricidade metafísica das práticas às quais possam remeter. Trata-se de uma verdadeira quebra dos princípios mesmos de realidade e objetividade que se liga perfeitamente à ótica desconstrucionista de Derrida. O resultado: o desancorar de referências parcial da poética de Petronio, o estranhamento de uma "realidade" que só subsiste na tensão entre os múltiplos "jogos de linguagem" (penso, por exemplo, nas paranomásias de História do Mundo, Pássaros y Quasímodo), mas, também, nos atos concretos nos quais estes têm lugar.

Uma última observação: História Natural, por si escritura não figurativa, dá prioridade ao não reconhecível. Assemelha-se ao arrastar incontrolável de um mäelstrom: seu curso é uma deriva, uma experiência radical de liberdade e descontrole. É submergir no coração do aberto, ou no mínimo onde se deixou em suspenso a noção mesma de fronteira: o estar entre nadas, feito/ de enxofre, nuvem, pensamento sem/ lastro ou efígie. Uma fuga do presente que gira em torno de seu próprio desmanchar-se. No aberto (mar que arrefece, forma incandescente, letra nunca lida, vaga desfeita, traço sem marca) só cabe a experiência da perda. Nada pode se pôr, nada pode instalar-se aí. No aberto só se dá o errar. Pois bem, a errância, ou é um modo de habitar ou acaso mente no que diz respeito à sua impossibilidade, ou a seu limite. Errar no aberto é abandonar o habitável, despedir-se do "lar" porque o aberto não se habita: se mantém à distância, embora não para salvar-se, mas sim para afirmar a vida — e sua voluptuosidade — em uma dupla espiral que sempre tenta apreender o vai e vem/ da Idéia. Talvez por isso o arranjo cifrado/ das estrelas no pano/ negro dessa imensa caverna só possa ver a luz em um lugar protegido da luz. A claridade do pensado — o campo do visível — depende integralmente do que a exclui, como é o caso do sentido e da verdade: para que o falante lírico se remeta a eles, ou a sua espectralidade, tem que se pôr fora de si mesmo. A escritura que procede da teoresis subjacente à poesia busca o sentido e a verdade porque ela não é a operação que os produz. Deste ponto de vista, História Natural é uma escritura inconsciente do que faz. Ela cria sua verdade e propõe seu sentido, mas pretende reger-se por eles — como se pertencessem a outra ordem de realidade distinta da escritura mesma. Todavia, essa espécie de inocência adâmica se transformará em uma perplexidade próxima do titanismo romântico, já que fará da grafia um impulso de absoluto que buscará a conformação de um texto que teça em si a urdidura cósmica do inominável. Pedra de Luz (A Girafa Editora, setembro, 2005) será a melhor manifestação desse querer tomar o céu por assalto.

 

 

II

 

PEDRA DE LUZ E O ASSÉDIO DO INAPREENSÍVEL:

MORTE, TRANSFIGURAÇÃO E LINGUAGEM

 

A concepção de linguagem lacaniana se baseia no fato de que "cada sujeito é determinado pela linguagem", ou seja, "a linguagem não é um instrumento que viria a dar 'expressão' a uma idéia, a um conceito, a algum significado prévio. Os significados, as idéias, são gerados, produzidos, pela linguagem”. Mais ainda: continuaríamos dizendo que o homem, mais atuado do que ator, "habita a linguagem... sem compreender as determinações que a regem". Isto significaria que, distantes da concepção segundo a qual são os significados que produzem o sentido do discurso, é a linguagem que produz o significado. Note-se que não se patenteia isto como algum tipo de condicionalidade, nem se lhe relativiza a condição. Os significados (todos) são produzidos pela linguagem. E talvez seja para este eixo temático que mais aponta o novo livro de Rodrigo Petronio, Pedra de Luz, no qual se afirma estar-se sempre frente à palavra que não cala nem debaixo das ervas/ palavra sêmen palavra processo palavra universo/ que em si mesma encena as fases infinitas das infinitas metamorfoses de Eros. Semelhante fúria gerativa nos lembra que, se é certo que a linguagem é uma casa, o poema, como explosiva condensação semiológica, também nos revela de maneira mais explícita as múltiplas portas dessa casa, onde as entradas e saídas se escondem por trás do véu do acaso e do arbitrário.

Dito de outro modo: confere-se a esta discursividade um conteúdo que evidentemente linda o lúdico, ao mesmo tempo em que se mostra uma quantidade de indícios para chegar a uma compreensão que sempre será elusiva como esse rastro./ Essas pegadas galvanizadas/ Esses passos que conspurcam a autora/ Com a sorte de palavras que falseiam a própria pista. Tal estratégia se desprende, evidentemente, da busca de um sentido último (que seria a verdade do texto) e, como o próprio prazer, acaba se autodefinindo. Isso se explica, pois a lírica de Petronio, como escritura, é a linguagem que fala por si mesma e, enquanto é equiparada a Eros ou ao erótico em si mesmo, equivale ao somático em seu próprio Ser. É uma intensidade assediável; uma lingüística amorosa que, repetindo-se, se autodefine a partir do não verbalizável. Se — nas palavras de Benjamin Valdivia — a presença de Eros em qualquer instância é uma representação, e a representação do impulso erótico constitui a retórica do corpo, será difícil esquecer que os movimentos corporais tentam convencer a outridade, para restituir o mesmo. Na química da escritura enquanto erotismo, persegue-se a composição da rebis, aquela coisa dupla que é a outridade mesmificada: o si mesmo do que é outra coisa para que a beleza do mundo não nos fira. A partir desse momento só se pode dar nomes novos a nossos escombros./ Para que possa iluminar a morte, que nos insufla e nos destila.

Curiosa associação a que se delineia nesses versos: Eros e Thanatos têm naturezas intercambiáveis. Ou seja, o apoderamento da satisfação que o traço que se abre outorga em seu dizer é o instante da plenitude agônica do que é pensado. Todavia, essa apoteose apocalíptica antecipa a eventualidade de um renascimento permanente, fazendo com que a mencionada retórica do corpo se torne também messiânica. Partindo desse pressuposto, não seria forçado ver, nesse ponto, de modo transferencial, de que maneira o ocaso do sujeito criador em Petronio libera o 'outro' no autor e fortalece o leitor. Segundo Geoffrey Bennington, "todo destinatário determinado e, portanto, todo ato de leitura, se encontra afetado pela 'morte': por conseguinte, se deduz que todo referendo espera 'outros', de forma indefinida, porque a leitura não tem fim, está sempre por vir, como trabalho do 'outro'; um texto não encontra jamais seu repouso na unidade e no sentido finalmente re-encontrado". Falando borgeanamente, Pierre Menard podemos todos ser leitores do Quixote, mas também contextualmente todos seus escritores. O nascimento de um deles habita sua morte e vice-versa. E em Petronio há diversos exemplos que poderíamos citar sobre sua referência mais ou menos explícita (e implícita) à debilidade do sujeito criador (ou diretamente à sua 'morte'): Eu que presido o ritual do sangue/ Só amo o canto que estrangula o seu cantor, ou também no poema Eco, no qual se confessa que Muitos e muitos eus se despregam de minhas dobras/ Quanto mais quero me achar mais e mais me perco a esmo.../ Em quanto toco me evado e tudo o que amo esqueço./Em quanto me anulo ardo e só o que mato possuo./ A vida é aquilo que exala a carne na qual pereço.

A morte opera como máquina lingüística, estabelecendo-se assim uma instância discursiva na qual o autor, supostamente uno, é um fazer-se em ato: ou seja, a experiência dessa função desliza para o texto e para esse ser uno que escreve, onde a idéia original — se é que ela existiu — cede terreno ao horizonte de expectativas do traço formal do suporte. Daí que a linguagem se torne essa deriva, manifestada na física do corpo que rompe suas barreiras para adentrar em um território mais estritamente metafísico. A necessidade que se impõe nesse gesto auto-imolatório refere sempre um transbordamento ascensional que busca o desligamento de toda exterioridade alusiva, a desintegração do falante lírico em sua própria escritura, que lhe supõe precisamente um fim nessa posterior integração ao macrotexto, entendido como idealidade transcendente onde se mostra a unidade do múltiplo. Embora também seja certo que, com a morte, enquanto âncora e cenografia do dizer, a renúncia à fala se torne uma contínua e exaustiva referência à impossibilidade de estabelecer proposições capazes de afirmar aprioristicamente a presentificação eternizada dos objetos ou até mesmo de nomeá-las. É o que, em termos teológicos, se costuma chamar apophasis, um modo de discurso que, a partir do esvaziamento dos nomes, opera como escritura de sua inteligibilidade e nominalidade vertiginosas (um bom exemplo pode ser Heliopolis quando afirma És tu Inominável,/ Vindo da ressurreição das formas gastas,/ Contorcendo-se nas sombras que baixam frágeis sobre os corpos frágeis dos homens no parque,/ Evaporação tênue de cheiros e lembranças gravadas em um mobiliário velho que ninguém usa mais./ És tu indecifrável).

Delineada aqui com certa ironia de(sen)cantada, esta invocação do inefável, a interpretação, em termos gerais bastante tradicional, do "mais além" no "mais além do ser" como ruptura que corta a imanência com o traçar de uma simples linha, não tem aqui nenhuma pertinência. De fato, a simples apophasis acaba subordinada sempre ao apofântico: se a essência não esgota o sentido, se o ser e o sentido do ser, o ser e o tempo, caem arruinados, em todo caso isso não confirma a proibição kantiana que consiste na crença de que em nenhum lugar — nem no mundo e nem fora dele — existe um ser absolutamente necessário agindo como sua causa. Pois bem, a aporia, a aparente contradição performativa de um logos apophantikós que diz o outro do ser, não paralisa o discurso da operação poética enquanto passividade, ou seja, um dizer que resuma em si uma paixão que nos impulsione às raias de algo inconcebivelmente ilimitado. Sua estratégia para dizer o outro puro, para permitir e permitir-se isso, em suma, para assegurar a possibilidade de dizer o outro, consiste precisamente em reafirmar o dizer, o dizer puro, ou seja, o dizer à margem da correlação que sincroniza o dizer e o dito. Daí que esse dizer não seja a atividade do sujeito falante, menos ainda a pretensa consciência de uma tal pretensa atividade. Desta perspectiva, o dizer diz o outro porque vem de outro, porque consiste e se resume em responder ao outro com o que lhe é próprio. Instaurar uma grafia no desdobramento de sua própria suspensão enquanto de-negação, enquanto afirmação negativa da existência do texto como delineado de outridades, sejam os deuses que falam pela minha boca ou, de maneira mais abrangente, o ser que emerge do nada ao puro ser faz com que Petronio territorialize novos pontos de fuga na dispersão de um movimento. Tão corpuscular e ondulatório como a luz mesma.

Derrida, em A Escritura e a Diferença, dirá que "o coração da luz é negro", e se refere ao inquebrantável vínculo entre metafísica e metáfora a partir da significação que Platão outorga ao Sol na alegoria da caverna. Aqui a luz já se desdobra: o sol metafórico (do conhecimento) é tanto o Sol sensível quanto o supra-sensível, invisível. O sol que vemos sensivelmente sai e se põe, se mostra e desaparece, em um momento está presente e em outro ausente; além disso, se deixa perceber pelos homens como uma fonte de luz e vida. Mas apenas seus efeitos se oferecem à vista, não a fonte diante da qual o olhar se cega e que, literalmente, não é visível. Ausência e invisibilidade colocam em marcha o deslocamento metafórico, a duplicação dos sóis, a remissão infinita da metafísica, o invisível atrás do visível, a ausência atrás da presença, a metafísica atrás da física. O Sol e a metáfora se unem em uma cadeia cujos anéis são as inumeráveis variações metafísicas, e cujo vínculo é a "remissão" mesma, o mais além, o outro lado, o movimento de transcender, a realidade verdadeira que se oculta por trás da fenomênica, a verdade à qual a aparência remete. O sol platônico é a verdade e o bem, mas seu coração é negro porque não é visível ao olho que, todavia, dele recebe por inteiro sua "virtude" que é, precisamente, a capacidade de ver. E se formos ao cerne dessa questão, veremos que a metáfora — que com Platão adquire seu estatuto filosófico — possui uma história mais antiga no horizonte do pensamento e da mística religiosa.

Um exemplo sobre o qual se chamou a atenção recentemente é a pedra negra pertencente à mais antiga gnose árabe. Estudando o paradigma do tempo nas origens da cultura islâmica, Corbin nos explica que a pedra negra corresponde a um dos pilares angulares do templo da Kaaba; tais pedras angulares possuem uma complexa simbologia, e fundamentalmente correspondem a outros tantos tipos de luz, cada uma das quais representando um profeta (Abraão, Moisés, Jesus e Maomé). A esquina iraquiana da pedra e da luz negra é precisamente a de Maomé e nela, segundo a mística islâmica dos sábios de Harrán, se oculta o segredo mesmo do templo. Nela se simboliza a relação entre mundo terreno e mundo superior, intelectivo; e o símbolo pode ser desmembrado através de um relato mítico que nos remonta ao primeiro homem. A pedra negra — narra o Imã a um de seus discípulos — era na origem o primeiro dos anjos; ele é quem se adianta à presença de Deus para garantir o pacto de Deus e Adão. Mas quando Adão cometeu a traição e foi expulso do Paraíso, Deus conferiu ao anjo a aparência de uma pérola branca, e a arrojou sobre a terra. Adão encontra a pérola resplandecente, o anjo se mostra e lembra Adão do pacto com Deus. Mas nesse ponto Deus transforma a radiante pérola em uma pesada pedra: Adão deverá carregá-la às costas, efetuar com esse peso enorme uma longuíssima viagem desde as terras da Índia até a Arábia. Pois bem, o relato ensina que no mundo terreno a pérola só pode assumir aparências tenebrosas: será negra, mas possuirá o poder de suscitar a lembrança do anjo e de Deus na mente do homem. Sob o véu obscuro da mundanidade, o homem poderá descobrir o rastro luminoso da divina inteligência. 

Mas observemos que a pedra não é vil, é uma pedra preciosa. Cintila esplendores vermelhos, emana luz; é uma das luzes que regem o universo, a mais importante. E, todavia, seu coração é negro; nessa opacidade, o homem poderá recordar outra luz, inaudita, que não é humana (ou natural), e por isso não é e não será visível. O tema derridiano dos dois sóis, o inferior e o superior, parece subjazer na arquitetura do título simbólico que encabeça o livro de Petronio: a luz negra, demarcada nessa sucessão de fatos em que a metáfora e a metafísica se alternam continuamente, corresponde à ausência, ao desvanecimento, ao eclipse da luz natural, a seu necessário remeter a outra luz que está atrás da luz, mas deixa sua assinatura, como consta no texto dedicado a Dirceu Villa, ou no mais que emblemático O Lado Escuro do Sol. A partir deste momento, podemos entender que a luz negra é um elemento intermediário entre mundo e idealidade, o momento em que a verdade, para ser revelada, deve negar-se à visão, ocultar-se, para poder tramar o universo sob a luz candente quando os girassóis despertam.../ Estou vivo porque habito o lado escuro do sol e mergulho no silêncio azul das pedras. E porque a cena da escritura mantém uma claridade, uma luminosidade paradoxal que se alimenta, precisamente, lá onde deveria apagar-se.

Tal estrutura de oxímoros é o que caracteriza de um modo essencial a experiência literária. A inquietude que invade Pedra de Luz é o desejo de alcançar o antes da palavra, mesmo sabendo que essa tarefa se assemelha à de Sísifo. Não a (palavra) flor, mas seu opaco resplendor, seu irrespirável perfume, o instante onde o incessante se interrompe com a interrupção do sentido porque por mais que o sol negro recomponha toda flor/ ao pacto de néctar que nele circula,/ sempre resta um campo inaugural, intocado/ sob o ranger de ossos do deserto. Ou seja, para que os signos substituam as coisas, para que na voz ressoe o que desapareceu, a linguagem há de prescindir de tudo — e, de maneira eminente, daquilo que a engendrou. O nome que traz as coisas ao mundo anuncia a dissolução própria de sua ausência e o esquecimento: as palavras dão o ser, mas o dão invadindo as coisas com o nada que lhe é próprio. Pela linguagem, as coisas são constituídas nele e, no mesmo movimento, restituídas ao insignificante. Pois bem, qual o estatuto dessa coisa que vive da desaparição, do seu constante escamoteio? Não está para além do mundo, mas tampouco se confunde com este. Não é o mesmo que a consciência, mas dificilmente coincide com o inconsciente. Não é noite, e tampouco dia. "É", diz Blanchot, "o lado do dia que este excluiu para fazer-se luz", essa morte enquanto rigorosa impossibilidade de morrer porque no oco de seu grafismo ramificado sempre cabe a presentificação de (ou do) outro como uma continuação: é a revelação do que toda revelação destrói.

Certamente: Pedra de Luz pergunta pelo ser, mas essa pergunta busca a luz do dia onde o ser se (ex)tende; e o ser, semelhante ao dia, só surge no momento de sua desaparição, mergulha na circularidade dos assédios inapreensíveis como quando digo seio. Digo pegada. Para dizer árvore./ Porque os vivo nas linhas da língua sem mapa./ Essa combustão de sílabas. Essa promessa./ De algo que seja algo mais que uma carne em conversa. Se o enclave escritural é uma demarcação desse entre, antes e por baixo da luminosidade que se instaura, Petronio tenta alcançar — de um modo que chamaríamos titânico — essa parousía na qual se chocam o silêncio das coisas e as palavras que vivem precisamente de sua extinção enquanto coisas. Não nos estranha, então, que as diferentes texturas discursivas ocultem a presença do sentido, mas uma presença que demonstrará uma intrusão tangente ao inacessível. Diante disso, só resta saber que o brilho do dia repousa em um processo de materialidade tangível, de adensamento, como uma escada em marcha, como um corredor que se abre ou como os sapatos que farejam os caminhos sulcados pelos pés dos mortos. 

 

 

 

 

 

julho, 2006
 
 
 
 
 
Martín Palacio Gamboa (Montevidéu, 1977) é professor de literatura, crítico, músico, poeta e tradutor. Atualmente mora em Buenos Aires, preparando com a poeta e professora Marisa Negri uma antologia da poesia brasileira atual (El trazo de Pandora, pela Ediciones del Dock, Argentina). Também tem publicado um conjunto de artigos sobre poesia e música popular em vários sites da Internet.
 
 
 
Rodrigo Petronio em Germina