Linguagem de perturbante experimentação, uma poesia de invenção como a de Arnaldo Xavier (1948-2004), pode ser examinada não só no que toca à estranheza da fissura aberta por ela em partes ou no corpus de determinado sistema literário. Vale dizer, dentro de um traçado de rupturas inaugurado pelo alto modernismo e que, desde então, parece ter se constituído no cânone da contemporaneidade, o que Arnaldo Xavier injeta de novo em tal corrente sangüínea? Temos aí, um ponto. Por outro lado, este exame nos permite compreender também um pouco do caráter e das imposturas desse sistema mesmo que, desde sua condição normativa e dogmática, manteve ou mantém, com relação às transnegressões de Arnaldo, uma atitude, no mínimo, defensiva.

 

Portanto, sem receio, sem fazer favor a ninguém e satisfeito por não ser confundido com os medíocres beletristas com lugar garantido em antologias temáticas: "todos [estes que] a tudo o seu logo acham sal" (Sá de Miranda), Arnaldo Xavier desbordou do molde para o qual parecia talhado. Para desgosto do poeta e estudioso da literatura negra, Oswaldo de Camargo, Arnaldo não se inseriu "claro e negro" no continuum daqueles criadores que lograram "falar negro-poeticamente". Arnaldo não aceitou a idéia de que a contrapartida aos esforços criativos de suas fabricanções, seria ele assumir (em atenção à expectativa de alguns dos seus leitores e antes que fosse tarde) um posto de honra nesta sorte de linha sucessória. Na economia da visada diacrônica, não há uma próxima chance, nem uma segunda escolha. Xavier teria um lugar assegurado ao lado de, por exemplo, Solano Trindade, Adão Ventura, Oliveira Silveira, Cuti e Éle Semog, seus companheiros naturais no âmbito adequado. Entretanto, o poeta pede "vistas" críticas ao que parecia ser o coerente passo-a-seguir do seu percurso textual. E questiona a falsa dicotomia incrustada nas opções que se lhe apresentam virtualmente, ou seja: 1) entrar na idade do bom senso como mais um poeta negro afirmativo; ou 2) ficar condenado à incomunicação, haja vista a aporia sugerida pelos grafismos e signos que escolhera como forma de linguagem. Não tanto pela companhia, Arnaldo Xavier declina do convite-invectiva feito por Oswaldo.

 

O fato é que sua linguagem, já francamente experimental desde os primeiros anos da década de 1970, pressupõe o poema como uma fatura sígnica cuja existência não pode se justificar apenas para servir às necessidades de certas interpretações, por mais bem intencionadas que elas sejam. A impressão de "pura curiosidade" e de fracasso comunicativo que Rosa da Recvsa (1978), um dos seus primeiros livros, desperta em Oswaldo de Camargo, — o crítico e entusiasta, par excellence, de uma literatura negra, competente, mas convencional, inserida no panorama antológico das letras brasileiras —, resume algo sobre o tipo de recepção que acabou prevalecendo entre os detratores de Arnaldo Xavier. Mas, não havia só os imperitos inimigos se pronunciando a respeito. Muita gente admirava ou admira, propõe leituras novas e divulga a poesia do transnegressor. De outra parte, Arnaldo nunca fez questão de defensores. Aliás, ele não se defendia. Pelo contrário, mais atacava do que qualquer outra coisa. Arnaldo pautou criativamente os seus críticos retranqueiros. Os opositores é que se viam obrigados a tomar uma posição frente às intervenções sincrônico-valorativas do autor de LudLud (1997). Arnaldo Xavier inventou os seus detratores. A bem da verdade, dir-se-ia que jamais existiram, tão grande era a mediocridade com que se espojavam, mas a arena formada sobre o ideário estético e étnico-político de Arnaldo Xavier, engendrou um ambiente e este ambiente — como disse Ezra Pound a propósito dos diluidores da sua época — é que conferiu a eles uma existência. Ainda que volátil.

 

A bossafro da poesia verbal e não-verbal de Arnaldo Xavier questiona, às gargalhadas, a dimensão estrita e estreita da poesia dos seus pares, onde se verifica a tolerância pós-moderna a limitar-se com o politicamente correto, fusão que, ao fim e ao cabo, resulta em puritanismo de fast thinkers. Arnaldo, intelectual e militante negro (em sentido forte), isto é, avesso a qualquer tipo de afundamentalismo, não professava a profissão do líder galvanizador. Uma figura possível para o paraibano Axévier é a do autor cuja obra e reflexões críticas estão tensamente imbricadas no debate referente aos dilemas de uma vertente negra na literatura brasileira. Mas o "odi et amo" de Arnaldo Xavier com relação a esta questão, se define mais por uma atitude problematizadora e metalingüística do que por uma afirmação concludente e, de resto, interessada em legitimar tópicos identitários por meio de uma prática literária entendida como testemunho de verdade étnica. Para Arnaldo, literatura negra é um debate que não deve ser lacrado, assim, às pressas. Exceto, talvez, do ponto de vista acadêmico, é algo que não tem de ser resolvido. Um poema de verdade não admite solução.

 

Consciência de linguagem requer um severo sentido de auto-ironia. Arnaldo era radical, um poeta radical. Identificava, a um só tempo, questões de forma e de fundo. Feito Yeats, não separava o dançarino da dança. O gesto radical se projeta sobre a linguagem. Não há linguagem desprovida de pensamento. E o pensamento instala o mundo entre parênteses justamente para melhor pensá-lo. A poesia de Arnaldo Xavier é a transnegressão dos limites representacionais da linguagem, fronteira exusíaca entre mundo e signo.

 

Ao propor novas expressões negras, numa espécie de transe intertextual onde colaboram tanto a logopéia de Muniz Sodré, quanto a fanopéia de Spike Lee, Arnaldo propõe, em fim de contas, novos e vastos pensamentos sem fios. Com efeito, sua poética repercute no seu pensamento conferindo-lhe um viés experimental, inoportuno e negativo. Algo vivo. Axévier era o dissenso via intersemiose, o desarraigamento de si, o solapar das evidências ferreamente construídas sobre retóricas da identidade, não raro erísticas, e, por sua vez, pavimentadas por tensões históricas retidas num pano de fundo utópico. Arnaldo torceu o gasnete à eloqüência pictórica do conteúdo, suas palavras exorbitaram iconicamente o contorno dos sintagmas, viraram desenhos sintéticos do seu pensamento-arte.

 

 

 

 

 

 

ARTE PELA ARTE

  

Meu Pelé, o de todos nós

 

 

Quem no Brasil, independente de procedência étnica, destino geográfico ou sexo, um dia na vida, não se referiu a Pelé como um gênio?

 

Outro dia, meu corintianíssimo filho, Abimbola, 12 anos, me perguntou:

 

"Quem é o Pelé da literatura brasileira? Cruz e Sousa ou Machado de Assis?!"

 

Pensei numa tabelinha entre Pelé e Garrincha e numa hipotética troca de passes mágicos entre Leônidas e Friedenreich, frutos negros do canibalismo amoroso luso-germânico. Bati paô (palmas) à reflexão de Gláuber Rocha: é impossível separar as cabeças de Corisco e Lampião.

 

"Mas Pelé é incomparável, Abimbola!", retruco.

 

Neste dia 19, da Bandeira, faz 10.950 dias ou 30 anos, que Pelé marcou contra o Vasco da Gama, o seu milésimo gol. O gênio continuara aquela noite, no Maracanã, um capítulo de sua extraordinária obra, que seria coroada no México, em 1970. Ali, dos pés de Pelé saiu mais um dos momentos de maior alegria do povo brasileiro.

 

A dedicatória de Pelé quando fez o histórico gol foi às criancinhas abandonadas, que deveria ser interpretada como uma alusão à sua infância de menino pobre, filho de Dondinho, um jogador fracassado. Mas foi entendida como demagogia. Assim como teria sido alienada sua afirmação que o povo brasileiro não sabia votar. Driblando a esterilidade da esquerda e o apelo à cumplicidade da direita, a visão Pelé foi profética: hoje, mais do que em 1969, a criança na rua é protagonista da tragédia social brasileira.

 

Garoto-propaganda do regime militar? Pelé, à corta-luz, dribla a leviana alucinação comunista de João Saldanha e as firulas do futebol-negócio de João Havelange. Joões, como o sábio, chapliniano e repentista Garrincha chamava seus infelizes marcadores. Tristes sombras diante do brilho do maior poeta de futebol de todos os tempos.

 

Negro de alma branca! É assim que se diz de quem, neste país, ultrapassa a linha-de-fundo da miséria. Porque a idéia de mobilidade social dos pobres está limitada ao esporte, à música. Pelé, filho iluminado de Ogum, mais que genial senhor da bola, tornou incômodo seu trajeto luminoso da infância pobre de Bauru aos salões da Casa Branca. O Itamarati, até 1958, com seus rios brancos, ruis, santiagos e ricuperos não conseguiu um milésimo da luz que Pelé teceu — para o mundo — a cara "transnegressora" do país da folha seca.

 

Ogunhê, macunaímico, Pelé encarara os zagas da vida: as travas das opções políticas, as tesouras voadoras fratricidas que flutuam sob sua glória e fortuna. Cobram-lhe paternidade responsável à dor da mãe negra da sua filha negra. Pelé não conseguira matar o coração no peito e evitar o gol-contra! Pedem-lhe postura política idêntica a Mohammed Ali. Negam-lhe, porém, as contradições da condição humana na sua particular negreza de ser.

 

Prevista nos rastros de Afonsinho e Feijão I na República Socialista do Olaria e de Sócrates e Wladimir na "democracia corintiana", a Lei Pelé é abolicionista por sua obra e graça.

 

Trinta anos depois do grito de Pelé, a meia-lua da miséria se ampliou. Há cabeça de criança faminta na marca do pênalti. O gol nº 1000 foi o último ato político à criança abandonada do Brasil.

 

Pelé, eu te amo!

 

 

 

 

 

 

*

 

subsenhor               No altar de cera             o sorriso do bode sem

cabeça                            Assunção de sagrada cauda sangre furtiva

semente                   O adorado tilinta nervoso                     no pires

 

 

 

 

*

 

subsenhor               Ao lado uma árvore          procura entre suas folhas

um endereço         Enquanto a sombra decepcionada                  retorna

da luz

 

 

 

 

*

 

Ao redor

A nudez

Do Olho cego

O peso do fogo

 

Pela miudez

Do Grão de cinzas

O sagrado

Sangra

 

A tristez

Estranha dor

Do roedor

Da ovelha

Da vez

 

Embora curva

A Bala torta

Nuvem turva via ave

Resolva

Bater em outra porta

 

 

(Poema pós-coma, sem título, São Paulo, 1998. Inédito)

 

 

 

_____________________________________

 

 

Arnaldo Xavier [1948–2004]

 

por Ronald Augusto

 

orun

the traversed palindrome

in front of the nostril-deprived

orun oscillates not

between being something

and nothingness

it escapes the reach of the hand

but thought thinks so much of it

to the extent that

at times it even succeeds

in leaving a photogram

an orun-ciné

in terms of

close afrography

lent to the silence

of the body

 

 

            *

 

transegun jet black

axévier hyperion

my hypogram my

paragram

acoustic-obsessive circle

strut that anagrammatizes

beyond the consecutiveness

of temporal clause

 

black program

heaven-piercing software

multilingual Sango

arrangement

 

in

territory

of the sangoesque

when annoyed

with Arnaldo

 

he insulted and

was insulted

 

(Tradução Niyi Afolabi)

 

 
 
 
novembro/dezembro, 2006
 
 
 
_____________________________________
 
Arnaldo Xavier (1948-2004). Poeta e militante de movimentos negros, é autor de Rosa da Recvsa.
_____________________________________
 
 
Ronald Augusto (Rio Grande - RS, 1961). Poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor, entre outros, de Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992) e Confissões Aplicadas (2004). Ministra oficinas de poesia. Escreve o blogue Poesia-pau. É um dos poETs.
 
Mais Ronald Augusto em Germina