Curiosamente, o espaço que pode ser exato não é tão exato como no ensaio: a cidade de Paris num romance de Balzac, o Rio de janeiro de Machado de Assis, e assim por diante, toma outra dimensão quando passa a fazer parte do romance. É a mesma Paris a Paris de Balzac e a Paris, por exemplo, de Karl Marx, em sua obra 18 Brumário?Não é porque a Paris de Balzac é uma Paris vista pelos olhos de um criador, é uma Paris recriada apesar de toda intenção de "verdade" e registro. O Rio de janeiro de Machado é um acúmulo de nomes de lugares públicos: mas o verdadeiro romance de Machado acontece nas salas. Mesmo nas cenas de rua são mais importantes o sentimento e a psicologia dos personagens que a descrição da paisagem urbana. E o Rio de janeiro de O cortiço, de Aluísio de Azevedo? Mesmo em sua visão de testemunho e registro de realista, Aluísio constrói uma cidade à sua maneira. A cidade do romance é imaginária, algumas se parecem com cidades reais, outras são inventadas como a Macondo de García Márquez. Entre a cidade inventada e a cidade que cita a cidade real, como em Balzac, Machado e Aluísio de Azevedo, existe a intenção. O primeiro narrador idealiza um modelo, o segundo parte de uma realidade para estabelecer uma cidade que é tão inventada quanto a outra. A diferença está em que o narrador da cidade inventada terá que dispensar maior cuidado para caracterizar sua "cidade" e dar tons urbanísticos verossímeis a fim de que a cidade modelo se pareça a uma cidade real. A cidade real, por seu lado, também pode soar falsa se as relações dentro da obra não corresponderem aos dados da realidade. A cidade do Rio de Janeiro dentro de O Cortiço, reconhecemos, é a cidade do Rio de Janeiro, em uma época, com as tensões do confronto de classes sociais com interesses divergentes. Mas teremos que reconhecer também que a cidade do Rio de Janeiro de O Cortiço é a cidade do Rio de janeiro vista pelo seu autor. Não é uma cidade do ensaio, cheia de números, estatística, análise. É uma cidade intermediada pela necessidade de se ajustar a um tema, que hospeda personagens com densa psicologia individualizada. Ou, no caso de obras com forte conteúdo alegórico, o lugar onde ocorrem paixões humanas. Embora alguns romances sejam claros em relação ao tempo e ao lugar, a cidade apresentada pelo narrador pertence a uni tempo suspensivo e a unia cidade idealizada.
Ángel Rama, falando de utopias urbanas na Hispano-América, lembrava que o discurso do século passado, verossímil e realista, marcou a descrição de cidades como Buenos Aires, Montevidéu, Santiago, México e Rio de Janeiro. Crê ele imprudentemente vê-las como referências históricas rigorosas.
Mais adequado é lê-los como a parcimoniosa edificação de modelos culturais que quer estabelecer uma nova época, respondendo ao estranhamento em que vive os cidadãos. Sua mensagem fundamental não se encontrará nos dados evocativos, mas na organização do discurso, nos diagramas que fazem a transmissão ideológica (tão intensa em livros que aparentemente só querem testemunhar a objetiva realidade do passado), no tenaz esforço de significação de que é capaz a literatura. Pois esta — convém não esquecê-lo — não está submetida à prova da verdade, suas proposições não podem ser enfrentadas com os fitos externos; só podem ser julgadas interiormente, relacionando umas com as outras dentro do texto e portanto registrando sua coerência mais que sua exatidão histórica.1
Ítalo Calvino, criador de cidades com o seu Cidades invisíveis, expressou o que para nós pode ser uma das representações da cidade dentro da literatura. Falando da obra de Balzac e, especificamente de Ferragus, Calvino disse que aquilo que apaixonava o francês ao escrever esse romance era "o poema topográfico de Paris, segundo a intuição de fazer da cidade uma linguagem, como ideologia, como condicionamento de todo o pensamento, palavra e gesto, onde as ruas ‘impriment par leur physionomie certaines idées contre lesquelles nous sommes sans défense,’ a cidade monstruosa como um gigantesco crustáceo, cujos habitantes não passam de articulações motoras"2.
Fenômeno curioso é o do narrador de Memórias de um sargento de milícias. Seu autor, Manuel Antônio de Almeida, nasceu em 1831, e seu romance se passa entre os anos de 1801 e 1821, período da permanência de Dom João VI no Brasil. Ou Manuel Antônio de Almeida escrevia sobre a sua realidade circundante — podemos imaginar o ritmo lento das transformações, do século passado — ou o autor se valia de relato, como parece haver acontecido, de outra pessoa. Goitia classifica a cidade barroca, que é aquela a que pertence o romance de Manuel Antônio de Almeida, como a cidade onde brilha o esplendor real. Época do Iluminismo, do L’Etat c'est moi, onde o urbanismo serve para as grandes obras arquitetônicas, a cidade concebida como vista, a linha reta, a perspectiva monumental. O Rio de janeiro do princípio do século dezenove estava mais para cidade nascida da desordem do que para a repressão barroca. Os personagens de Memórias de um sargento de milícias estão sempre deambulando por ruas de uma cidade pequena, pouco urbanizada, herdeira, como são as cidades brasileiras, de uma falta de planificação, netas das cidades medievais, antes que da quadrícula romana, que orientou a construção das cidades hispânicas na América, com sua Plaza Mayor. Mas a classificação de cidade barroca de Goitia que mais cai como uma luva a esse romance é do ambiente da época. Ele dá como exemplo a cidade-estado de Nápoles.
Una corte centralizadora, con una burocracia gigantesca y complicadísima, jurisperitos, abogados, escribanos, toda la curia que pulula en estos centros burocráticos, llenaban la ciudad. Al lado de la corte de los nobles y de los cliriales, un inmenso pueblo de lacayos, domésticos, ínfimos menestrales y parias de toda laya, que foríliaban el más bajo escalón social, alimentado por una raza profífica en un clima benigno.3
O romance de Manuel Antônio de Almeida sintomaticamente começa com a descrição de certo espaço urbanístico que casa com o ensaio de Goitia:
Era no tempo do rei.
Uma das quatro esquinas que formam as ruas do Ouvidor e da Quitanda, cortando-se mutuamente, chamava-se nesse tempo — O canto dos meirinhos — ; e bem lhe assentava o nome, porque era aí o lugar de encontro favorito de todos os indivíduos dessa classe (que gozava então de não pequena consideração). Os meirinhos de hoje não são mais do que a sombra caricata dos meirinhos do tempo do rei; esses eram gente temível e temida, respeitável e respeitada, formavam um dos extremos da formidável cadeia judiciária que envolvia todo o Rio de Janeiro no tempo em que a demanda era entre nós um elemento de vida: o extremo oposto eram os desembargadores. Ora, os extremos se tocam, e estes, tocando-se, fechavam o circuito dentro do qual se passavam os terríveis combates das citações, provarás, razões principais e finais, e todos esses trejeitos judiciais que se chamavam progresso.
Aí estão várias cidades em Memória de um sargento de milícias: a cidade barroca, sob o signo do poder real (o major Vidigal é a polícia do rei, Leonardo filho vai trabalhar na cozinha real entre muitos exemplos dessa presença-ausência de Dom João VI), a cidade urbanística (os espaços percorridos pelos personagens), a cidade do cotidiano e das relações humanas (onde na verdade ocorre todo o romance). Foi nas descrições das relações familiares, dos costumes e hábitos domésticos que Manuel Antônio de Almeida logrou a verossimilhança que não conseguira com as descrições quase folclóricas das festas populares, por exemplo. Memórias de um sargento de milícias, situado entre a apresentação de uma cidade imaginada e uma cidade real, mostra bem as tensões que se apresentam ao narrador.
[Em O narrador do romance. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996]
agosto, 2006
Ronaldo Costa Fernandes nasceu em (MA) São Luís, em 29 de agosto de 1952. Durante nove anos dirigiu o Centro de Estudos Brasileiros da Embaixada do Brasil em Caracas. De volta ao Brasil, em 1995, foi Coordenador da Funarte de Brasília até o início de 2003. É Doutor em Literatura pela UnB. É também co-organizador do livro O imaginário da cidade (Brasília: Editora da UnB, em 2000). Seu livro mais recente é o livro de poemas Eterno Passageiro(Rio de Janeiro: Ed. Varanda, 2004). O seu romance, O viúvo (Brasília: Ed. LGE, 2005). Tem uma página no Jornal de Poesia. Mais publicações e prêmios, veja aqui.
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