©duchamps 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

          Ao entregar-se ao trabalho de traduzir, um escritor propôe-se várias questões que são, em muitos aspectos, parecidas às de qualquer leitor diante do mesmo texto, ainda que não esteja perante o processo de capturar e vertê-lo pelas lentes de outra lingua. Traduzir é um processo de leitura em sua forma mais nua e exposta. Na Autobiography of Alice B. Toklas, Gertrude Stein "escreve através e com a voz" de Toklas, para dizer que em nenhum outro momento pôde compreender tão bem o que Stein (ela mesma) FAZIA em suas composições, quanto ao precisar ler as provas de seus textos, logo antes de sua publicação, pois isto a forçava a atentar para cada palavra e frase com tamanho cuidado, que ela se sentia finalmente libertada da necessidade de saber o que Gertrude Stein estava "querendo dizer" e entrava no território do que Stein estava "fazendo" com a linguagem, o material que tinha às mãos e boca e mente. Pois décadas após artistas visuais terem questionado a relação entre significante e significado, palavra e sentido, imagem e símbolo, segue-se atrelado a estas noções em literatura, e aproxima-se ainda de um texto tentando ver, através dele, algum outro texto-fantasma pairando além, algum significado transcendente ao texto, como que escondido atrás/além das palavras que realmente vemos na página. Mesmo após escritores concretos como Haroldo de Campos e Max Bense terem se rebelado contra esta transparência das palavras, ou artistas visuais (como Jasper Johns, em sua série "0 through 9") terem exposto nossos vícios simbólicos no processo de leitura. Este é o caso especialmente em poesia, com sua linguagem aparentemente cifrada, que nos tenta a crer que necessariamente haveria um "significado" escondido pelo próprio texto, que o escritor espera que venhamos a "atingir", um segundo texto do qual o poema seria a máscara/obstáculo, o que denuncia a relação simplista que ainda se espera das palavras em seu jogo significante/significado a ligar a linguagem ao mundo, e este a ela, e que expôe a ilusão teleológica que herdamos da Literatura Ocidental (consolidada com a prosa no século XIX, quando a poesia passa sistematicamente a afastar-se desta, especialmente, entre outros golpes na nobreza da coitada, após a facada de 1789, a hemorragia lenta até 1848, a tentativa de sutura de 1857 e o tiro na cabeça de 1871, quando ela morreu de vez, tal qual foi conhecida até então). Nesta relação mundo/linguagem reside a proposta de Wittgenstein de que o mundo seria uma coleção de fatos, não de objetos, justamente por nossa dependência da linguagem para apreendê-lo. Algo a que aponta já o famoso início enigmático do Tratado Lógico-Filosófico: O mundo é tudo o que é o caso - (Die Welt ist alles was der Fall ist.)

 

          Ainda mais atento e próximo que a leitura de provas, traduzir obriga-nos a explorar um texto com tal intensidade que esta leitura parece-me a mais completa que se pode performar de uma composição. Mas, mesmo então, percebe-se o quanto tradutores (como leitores em si) permanecem viciados em questões menos interessantes diante de um grupo de palavras formando frases: "O que o escritor está tentando dizer?". As velhas noções de forma e conteúdo. Parece-me que não somente entre os que fruem poesia, mas mesmo entre os que a produzem e estudam impera ainda a noção de poesia como "discurso poético" que, se fez sentido em épocas nas quais a poesia enquadrava em suas alas toda produção oral e textual de uma cultura, da épica à narrativa, passando por aquela que parece ser a última sobrevivente do naufrágio versejador, a lírica, vivemos hoje em um CONTEXTO que conta com a prosa como veículo privilegiado (por vários desdobramentos históricos que não temos espaço aqui para descrever, como os atiçados em 1789/1848/1857/1871) na maior parte da produção textual, contexto que parece levar a maioria a compreender a poesia como mera maneira "mais bela" de veicular mensagens, que poderia (assim parecem crer) também ser transmitidas pela prosa. Como se houvesse aquela "maçã" universal, vermelha e perfeita, escondendo-se, colada, geminada, a cada enunciação da palavra "maçã"; "cadeira" da "cadeira"; e o bípede implume da lenda pairando sobre a cabeça de cada homem e mulher, descontextualizados e sem corpo, naquele, o "homem" da palavra "homem". Destarte, vêem o poema como máscara de certa mensagem oculta a ser descascada como cebola indesejável, o poema como obstáculo para o leitor (ainda que seja recompensado com as cócegas estéticas da Beleza, aquela, a poética) que busca "aquilo" que o escritor (também conhecido como poeta) está “REALMENTE querendo dizer".  Eis o primeiro passo para a incompreensão de um texto no clima contemporâneo. Em minha opinião, a única maneira com a qual um tradutor pode aproximar-se da performance de uma tradução decente seria pelas perguntas: "O que o escritor está fazendo na/com/através da língua/linguagem neste texto e quais são as implicações de tal ação?". Estas são as perguntas que podem nos levar ao núcleo vital de um texto, que o permite sobreviver pelos tempos. Esta ação que um escritor DESEMPENHA (PERFORMS) através da língua e com a língua. Ao compreender esta ação, a única opção que um tradutor tem diante de si é a de também "perform" esta mesma ação na sua própria língua, como se estivesse a seguir uma partitura ou um manual de dança. A mensagem, de qualquer maneira, só pode ser entendida quando contextualizada ou, nas palavras de Wittgenstein: "O significado de uma palavra é seu uso na língua", e este contexto está encharcado de implicações culturais, não as de uma língua congelada, “em estado de dicionário” (um dos equívocos do poema de Carlos Drummond de Andrade), mas de uma língua que é influenciada e recebe o influxo de seu clima cultural e dos discursos de seu tempo (científicos, políticos, morais, econômicos, da moda, etc.). Algo que não parece ser compreendido por muitos poetas brasileiros, aqueles que acreditam, ainda, em pleno ano de 2006, no uso de uma linguagem pura, que permanece incontaminada pelo mundo dos eventos. Acrescenta-se a isso que os discursos que aguam uma língua mudam muitas vezes dentro do mesmo território nacional. Não se pode esperar que uma tradução feita em São Paulo seja a mesma tradução feita por um escritor em Fortaleza ou Porto Alegre; ou Lisboa; ou por um brasileiro em Paris ou Berlim. Tradução torna-se, portanto, uma leitura, como o ato de contextualizar a ação de um escritor.

 

          Mas isso requer que nos livremos de ainda outro vício estético: a dicotomia entre original e cópia; e, aparentemente, as tentativas de artistas como Andy Warhol, Mary Lucier, John Cage ou Gary Hill e tantos outros não foram suficientes ainda para acalmar o pânico das criaturas diante da reprodutibilidade técnica. Enquanto tradutores (e quaisquer leitores) seguirem com a tentativa de "reproduzir o original" (a expressão mesma carrega em si e expôe o fracasso inevitável de tal tentativa), continuaremos a receber no país sombras de textos (os tais de originais) que são, de qualquer forma, eles mesmos sujeitos à leitura e contextualização pessoal de cada leitor em sua própria língua.

 

          A contextualização irrefreada não é, obviamente, possível, desejável, ou mesmo necessária em todo texto. Certos textos parecem atingir uma espécie de maior independência do mundo dos eventos ao exilar-se numa linguagem parca, mínima, extremamente reduzida. Um poema como "Wheels", de Robert Creeley, parece operar tal grau maior de independência, enovelando-se em aspectos mais estritamente lingüísticos em sua composição.

 

 

Wheels

 

One around one —

or inside, limit

and dispersal.

 

Outside, the emptiness

of no edge, round

as the sky —

 

Or the eye seeing

all go by

in a blur of silence.

 

 

          Nenhum texto é totalmente independente da contextualização pessoal e coletiva dos leitores. Mesmo um poema como "Wheels" agitará as memórias de leitores distintos das mais diversas formas, ainda que tal poema estruture-se em um vocabulário extremamente reduzido como neste exemplo de Creeley, trabalhando a partir dele para estabelecer uma espécie de "fenomenologia da percepção", de um "sujeito" a observar e receber influxos do "mundo externo" (provavelmente de dentro de um veículo em movimento) e tentar organizá-lo através da língua, num processo lingüístico que parece independer, num maior grau que outros poemas, de aspectos culturais que se transformam de país a país, dependendo neste caso, porém, de aspectos estruturais intrínsecos da língua inglesa. Creeley mantém uma linha sintática discursiva, ainda que ele consiga perturbá-la internamente, e o desafio, na tradução de um poema como este, é performar tal ato no interior de uma língua (a portuguesa, no caso) com caracteristicas estruturais distintas, mesmo que estas características não sejam necessariamente o alvo da análise  no poema. Detalhes visuais, de tão sutis, acabam passando despercebidos em traduções do poema (aquelas a que tive acesso), como a repetição da letra "O" no início de cada estrofe, letra circular a dar-nos as "wheels" a cada novo início. A indeterminação do poema parece ser possível apenas em uma língua como a inglesa, que permite uma frase como "one around one" fazer, de certa forma, sentido, obviamente pelo "auxilio contextual" do título do poema, pois este "one", palavra recorrente na poética de Creeley, refere-se às "wheels" ali mencionadas, e poderia ser traduzida como "uma ao redor da outra", perdendo, no entanto, a concisão e indeterminação do texto de Robert Creeley. Há, além do mais, o jogo visual das letras "o" a manter, ainda que rodas sejam femininas em língua portuguesa. A este jogo com a letra "o" une-se ainda a própria circularidade da expressão "One around one", iniciando em uma palavra e circularmente retornando a ela, numa representação recorrente das "wheels".  Minha tentativa:

 

 

Rodas

 

O 1 cerca o 1 —

ou dentro, limite

e dispersão.

 

O vazio externo,

sem quinas, redoma

como o céu —

 

Ou o olho vendo

tudo passar

num silêncio em desfoque.

 

 

          Estou ciente da estranheza e "erro" da solução "O 1 cerca o 1", após ter considerado mesmo a possibilidade de "O 0",  a letra "O" e o número "0", em que se leria a primeira estrofe como "O 0 — / ou dentro, limite / e dispersão", em que estes "O" e "0" dar-nos-iam o aspecto visual circular do verso de Creeley, e poderiam relacionar-se com o "vazio" da estrofe seguinte. Como este é um poema que já foi recepcionado em português (por Régis Bonvicino), senti-me ainda mais livre a experimentar outras possibilidades que não estivessem tão presas ao aspecto "verbal" do "sentido" do poema. Perdi, talvez, a relação clara com as "rodas" do título, mas mantive-as na letra "O" inicial, no circular da expressão, que retorna a seu início, e prestei minha homenagem ao próprio "1" que parecia tão caro a Creeley, que é, além do mais, ligado à noção de círculo por outras vias simbólicas, sendo o círculo também um símbolo de unidade.  Este "One around one" poderia, no entanto, ser lido também como elaboração da individualidade e solidão do sujeito do poema, sozinho dentro de um carro, "with no one else around", ninguém a estabelecê-lo como sujeito, a não ser a paisagem externa, nem mesmo esta sendo estática, mas também em movimento, quando tudo o que uma pessoa possui é a sensação de ser  e estar "one around one". Outra possiblidade seria:

 

 

Rodas

 

O 1 cerca o 1 —

ou dentro, limite

e dispersão.

 

O externo, 0

sem quinas, redoma

como o céu —

 

Ou o olho vendo

tudo passar

num silêncio em desfoque.

 

 

         Este poema parece independer de questões culturais massivas influindo em sua compreensão, e o desafio em sua tradução reside em elaborar manobras lingüísticas parecidas na língua a que se vai traduzi-lo.  Insisto, porém, que mesmo um poema com tal vocabulário e estrutura estará sempre sujeito à contextualização pessoal de cada leitor, mesmo em sua língua original.

 

         Em muitos outros poemas, no entanto, mesmo que se estruturem em uma linguagem também parca e reduzida, os textos enovelam-se de tal forma na biografia do poeta, e suas referências estão tão intimamente ligadas à cultura em que surge, que esta transcontextualização parece-me a melhor e única maneira de permitir ao leitor da língua-receptáculo a possibilidade de compreender o trabalho de um escritor em língua estrangeira.

 

          Há pouco tempo, traduzi poemas do argentino Cristian De Nápoli, num trabalho colaborativo com Angélica Freitas, Douglas Diegues e Daniela Ramos. A meu encargo ficou a segunda parte do poema "Palitos de água", que traduzimos como "Picolés". Transcrevo, a seguir, alguns fragmentos da segunda parte do poema, em que apliquei minha crença na necessidade de contextualizar o poema argentino para um leitor brasileiro, seguindo, no entanto (e portanto), as necessidades biográficas do tradutor, um paulista que vive em Berlim, o que me pareceu condizente ao caráter biográfico das texturas engendradas por Cristian De Nápoli nos poemas. O fragmento 43 lia-se "Tiendas 'Futura'. / Dos pueblos de igual nombre. / Bar 'El Anciano'". Pareceu-me necessário traduzi-lo da seguinte maneira: "Lojas 'Futura'. / Duas cidades de mesmo nome. / Bar 'O Velhote'", pois ainda que a tradução mais precisa de "anciano" fosse "ancião", eu acredito que um bar no Brasil teria como nome mais provável "O Velhote". No fragmento 46: "Algunos llaman / a este poblado / hell sink, infierno hundirse", tomei a decisão, questionável, de permitir que a minha biografia invadisse a tradução da mesma maneira que a biografia de Cristian De Nápoli invadira e engendrara sua escrita, e traduzi o fragmento como: "Há quem apelide / este povoado: / berlimbo, purgatório-bunker", aproveitando-me da vantagem de compartilhar com o poeta argentino do fato de também viver em uma capital européia, seguindo fiel à decisão de contextualizar as referências bonaerenses a um leitor paulistano, fiel ao próprio caráter autobiográfico dos textos. No fragmento 48: "Dos discos de igual nombre. / 'Bailemos', una; / la otra, 'A Bailar'", segui a "tradição" brasileira de usar nomes em inglês para suas "boates", e traduzi-o por "Duas boates de mesmo nome. / 'Let's dance', uma; / a outra, 'Dancing'." E foi com esta crença que segui na tradução do poema argentino/finlandês como que absorto em um processo de transcontextualização, resolvendo os "problemas" com a transcriação (termo do tradutor Haroldo de Campos) de equivalentes contextuais brasileiros e paulistas, por ser de São Paulo e ser este o português que falo.

 

 

56.

 

Vodka, ginebra,

Buenos Aires en otoño,

la costanera.

 

Vodca, gim-tônica,

São Paulo em maio,

o litoral.

 

 

57.

 

El sol, los puestos

de revistas usadas.

Parque Lezica.

 

O sol, as bancas

de revistas usadas.

Largo da Batata.

 

 

58.

 

Recuerdo cuando

Roxana vino a Baires.

La trataron igual.

 

Lembro-me de quando

Angélica leu em Sampa;

A reação foi a mesma.

 

 

59.

 

En Helsinki, en Baires,

vos viste el infierno

que no se hunde.

 

Em Berlim, em Sampa,

purgaram o inferno

que não desaba.

 

 

60.

 

La patria es hampa,

el extranjero trampa.

¿Un tercer lado?

 

O nacional: quadrilha,

o estrangeiro: armadilha.

Terceira opção?

 

 

          Haveria aqui, claramente, a opção de manter as cidades como Buenos Aires e Helsinki, e alguém poderia dizer que eu teria, assim, sido mais "fiel" ao texto de Cristian De Nápoli, entre os que entendem significado como emanação semântica. No entanto, creio que um leitor poderá disfrutar de maneira mais forte (e menos exotizante) do que Cristian De Nápoli FEZ neste texto, entre outras coisas, ao verter "Parque Lezica" como "Largo da Batata" (ao ler "los puestos / de revistas usadas", a primeira imagem que invadiu minha mente foi a do Largo da Batata), e ignorar as estações do ano (pois, no Brasil, elas não fazem tanto sentido) e verter "Buenos Aires en otoño" como "São Paulo em maio", por exemplo. Um carioca ou curitibano teria soluções distintas. Ao encharcar seu texto de aspectos autobiográficos (sua passagem pela Finlândia, suas andanças por festivais de poesia da América Espanhola, seus contatos com outros poetas, como Roxana Crisólogo), torna-se necessário ao tradutor respeitar estes aspectos, o que, em meu caso, resolvi ao falar de São Paulo e Berlim, seguindo minha própria textura autobiográfica, num texto que foi escrito desta maneira. E, num texto em que Cristian De Nápoli lida com o racismo presente mesmo nos setores literários da América Espanhola, ao "relatar" as dificuldades que uma poeta como Roxana Crisólogo enfrenta por alinhar-se a grupos opressos de seu Peru natal, busquei relatar questões que me são próximas ao tratar do sexismo dos setores literários brasileiros, onde "poetisas" ainda parecem ser relegadas a guetos específicos, (mesmo que [ou talvez por isso] nos últimos 20 anos sejam as primeiras a trazerem ao Brasil algo de estimulante, como Hilda Hilst, Lenora de Barros, Jac Leirner em certos textos-colagens ou, neste novo momento, Angélica Freitas, Marília Garcia e Juliana Krapp) "traduzindo" Roxana Crisólogo por Angélica Freitas. Trata-se, além do mais (e creio que isto seja importante) de um poeta contemporâneo, apenas cinco anos mais velho que eu, e que compartilha de certas similaridades biográficas, como a de ter vivido na Europa por alguns anos.

 

          O que fazer, no entanto, com poemas que carregam já o peso "histórico" de décadas de recepção? Tentei algo parecido, em minha noção de transcontextualização, na tradução de um poema de H.C. Artmann, poeta austríaco, do que ficou conhecido como o Grupo de Viena, ativo na década de 50 (H.C. Artmann, Gerhard Rühm, Konrad Bayer, Oswald Wiener, Friedrich Achleitner).

 

 

H.C. Artmann 

 

liebe verehrte orchideengrüne primaballerina

aus windsor am kamp massachusetts udssr recommandé

ich sende ihnen diesen liebesbrief

dass sie ihn in ihren lac de cygne einbauen können

als eine anmutig zischende schwalbe mehr

am perlgrauen septemberhimmel am ultimobaldachin

der neurenovierten staatsopernpassage allelujah

ich bin ein schamloser in wahrheit ein höllsakra

ein johann sebastian orth am örthersee auf rollschuhen

weil ich es wage diesen brief an ihren pas de deux zu

      richten

aber ich befehle ihnen nichts ja ich bitte sie nur

meine ezzes hinzunehmen als das was sie sein wollen

alles was sie lieben gnädiges frl! prost du! servus!

mein federgeschriebener schlankerl mein weisser brief

mein ausserordentlich orig. pat. petschaftberühmter

als nichts andres bitt ich sie ihn hinzunehmen als

einen mann mit grundsätzen einen mg 59 einen jaguar 60

eine elfenixbeinerne locomotive 230 ph nach las vegas toi

     toi toi

ein schlüsselfertiges badezimmer im berliner hilton

ein ballet rose auf groschenstöckeln und eine filmwohnung

in döbling im dehmelschokoladetortenstil von dipl. arch.

und stadtbaumeister woswasdardeiföwiarahastdeadschu-

      schdea

und wenn das alles noch nicht genug sein soll dann sei er

      noch

ein strahlendes leitstarlet über ihrem nächsten auftritt

am 23. ds. um punkt 19 uhr 30 mitteleuropäischer zeit

      spuck spuck spuck

und ein applaus mit 69 vorhängen und regnenden tee-

      rosen dazu

gott über den berg! was soll les nicht alles

und was wrid es nicht alles sein mein briefchen

mein crèmeweisses

mein hübsches

mein zartes

mein du du

mein durch & durch veilchencrêpegefüttertes

luftpost par avion via aerea u.a.m.

auf der strecke zwichen aa und bee

 

 

          H.C. Artmann, que começou a escrever na Viena do pós-guerra, encontrou a poesia em língua alemã em situação desértica. Os nazistas censuraram e relegaram à invisibilidade quaisquer obras que não se enquadrassem em noções neo-clássicas e nacionalistas de Beleza. Todas as publicações que documentavam as atividades de grupos de vanguarda na esfera germânica, como os expressionistas e dadaístas, eram praticamente inacessíveis. Os poetas do Grupo de Viena entregaram-se a um verdadeiro trabalho de garimpagem para buscar parâmetros poéticos que dessem conta do contexto cultural em que se encontravam. A solução encontrada por um poeta como Paul Celan, a quem eles viam como um pós-surrealista, (nas palavras de Gerhard Rühm, em "cópias simbolicamente adulteradas"), não podia satisfazer às necessidades destes poetas, que eram, ademais, austríacos, cidadãos de um país que colaborou com a barbárie que causou as mesmas reações poéticas de Paul Celan, legitimadas no caso deste, portanto, por sua biografia. Os poetas do Grupo de Viena buscaram, então, nas desarticulações sintáticas dos dadaístas e expressionistas, no questionamento do "Hochdeustch" pela utilização de neologismos e dialetos, e na quebra da seriedade e de noções engessadas de bom gosto, a reação contra as imposturas nacionalistas e neo-clássicas dos escritores nazi-colaboracionistas. Sua poesia, que utiliza aspectos das fábulas populares austríacas e do nonsense, estrutura-se numa linguagem coloquial, que se mistura, então, a neologismos e construções verbais extremamente sofisticadas, concentradas e difíceis de traduzir.

 

 

querida idolatrada orquídeanil prima ballerina

de chemnitz a missiones poughkeepsie u.r.s.s. recommandé

à senhora eu envio esta carta de amor

para que possa encaixá-la em seu lac de cygne

como um pássaro sibilante a mais a migrar

na pejada concha do céu junino da ômegabóboda

no recém-restaurado átrio da sinfônica do estado aleluia

eu sou em verdade um sem-vergonha um sacropândego

um heitor vira-copos a patinar campinas

por ousar dirigir esta carta a seu pas

      de deux

mas eu nada exijo não eu tão-só peço-lhe

que aceite as pérolas que lanço a seus corpos

todos os seus sonhos misericordiosa sra.! saúdo-a! sua bença!

minha filiforminha escrita a pena minha carta em claro

minha extraordinária orig. pat. insígniaficante

como nada mais peço-lhe que a aceite como

um homem de princípios um rolls royce 59 uma ferrari 60

polidactilocomotiva engatinhante para las vegas tou-tou

      tou-tou tou-tou

uma banheira sob-medida no maksoud em são paulo

um swing em pub & cócegas em núcleos ricos de novela

em alphaville em estilo casa-grande-e-bengala do eng. arq.

e urbanista komudyabusxamavaoblableblufu-

      lanim

e caso tudo isso não lhe chegue aos pés pois seja

      ainda

uma diva radiante em sua próxima performance

a 23 deste 19h30 em ponto horário de brasília

      merda merda merda

e uma ovação entre 69 cortinas e chuva de

      rosas champagne

deus sobre os montes! o que deveria nem tudo

e que por certo nem tudo será minha epistolazinha

minha clara-neve

minha belíssima

minha fofa

minha tu tu

minha toda toda papoulacreponizada

via aérea par avion luftpost u.a.m.

no trajeto entre aa & bee

 

 

          O texto apresenta inúmeros desafios. Primeiramente, os neologismos e complexos vocabulares, como "ultimobaldachin", "höllsakra", "petschaftberühmter" ou  "elfenixbeinerne". O neologismo "ultimobaldachin", procurei transcriar como "ômegabóboda". "Höllsakra", que agrega a si as características de quebra de dicotomias que o próprio poema performa, além de outras, busquei em "sacropândego",  após considerar também "bestiólico". A palavra "petschaftberühmter", com sua noção de selo medieval, e a palavra "berühmt", que significa "famoso", transcontextualizei, após considerar o neologismo "filatéfilo", como "insigniaficante", trabalhando com as conotações da palavra "petschaft" como insígnia, como o que "fica", ao mesmo tempo que a palavra ironiza tal aspecto ao soar como "insignificante". Já o caso de "elfenixbeinerne" mereceria todo um ensaio a seu respeito. H.C. Artmann foi capaz de criar, neste conglomerado semântico, uma das concentrações poéticas mais poderosas e eficazes que já li. Se decompusermos a palavra, temos "elfen" (elfos) e "beine" (pernas). Temos, no entanto, a própria palavra "elfenbein" (marfim), que parece ser o caso aqui, à primeira vista. Há, porém, um IX que importa ainda mais conotações ao conglomerado, pois "nix" pode ser compreendido como "nixe", uma espécie de sereia, o que não deixa de estar ligado tanto a "elfo", como ser mitológico, e "beine", pernas, que uma sereia não possui. Vale lembrar que "nix", coloquialmente, é usado como "nichts", ou seja, "nada",  permitindo-nos ler a palavra também como "elfo sem pernas", mais uma vez levando-nos à noção de sereia. Para tornar as ligações ainda mais complexas, pode-se decompor a palavra e ler "X-Beine", uma deformação anatômica que afeta os joelhos de uma pessoa, fazendo com que se dobrem de tal forma a estarem próximos demais, o que nos liga mais uma vez ao contexto da palavra 'sereia'. Fui incapaz de sequer chegar próximo a uma transcontextualização de tal proeza linguística. Sigo tentando, partindo da própria possiblidade em língua portuguesa de decompor a palavra "marfim", assim como se pode decompor "elfenbein". Até atingir uma transcontextualização, optei por traduzir esta "elfenixbeinerne lokomotive" por "polidactilocomotiva engatinhante", um verdadeiro "frankenstein" se comparado à elegância da criação de H.C. Artmann, uma solução com a qual ainda sigo insatisfeito. 

         

          Estas são questões a serem enfrentadas quando se traduz um texto que trabalha com neologismos. Há certas invenções, contudo, que lidam com referências culturais a que não basta uma transcriação, mas exigem de forma clara e precisa uma transcontextualização. Perguntei a amigos e pesquisei, mas não encontrei referências a qualquer personagem histórico que se chame Johann Sebastian Orth. Após discutir o poema com amigos alemães e austríacos, em especial o jovem dramaturgo alemão Daniel Cremer, chegamos à conclusão de que o nome seria uma referência inevitável, na cabeça de qualquer um, a Johann Sebastian Bach, e que isto legitimaria trabalhar com tal referência na transcontextualização, que segue adiante com uma aparente referência ao famoso lago austríaco Woerthersee. Decidi transcontextualizar tais referências em "ich bin ein schamloser in wahrheit ein höllsakra / ein johann sebastian orth am örthersee auf rollschuhen" como "eu sou em verdade um sem-vergonha um sacropândego / um heitor vira-copos a patinar campinas", ciente de estar possivelmente "traindo" algum "sentido" que, no entanto, mesmos leitores alemães insistiram em "misunderstand", ou sentido que foram “incapazes” de atingir. A referência primordial para um brasileiro, em termos de música erudita, seria Heitor Villa-Lobos. Em "heitor vira-copos" busquei manter o jogo de palavras, tanto com Bach como com o topônimo "Woerthersee", que pode ser entendido como "lago de palavras", se decomposto, assim como "orth" pode ser uma referência a "Orthografie", ironizada nos próprios "erros" ortográficos do poema. Creio que, em meu possível mal-entendido, talvez possa reconstruir em português as trajetórias de sentido do próprio poema em alemão. No caso de "gnädiges frl! prost du! servus!", que usa expressões bastante coloquiais do sul da Alemanha e partes da Áustria, busquei a transferência em "misericordiosa sra.! saúdo-a! sua bença!", mantendo o brinde em "prost du!", de certa forma, em "saúdo-a!", que contém o "saúde!" habitual dos brindes no Brasil, além de usar a forma interiorana paulista de pedir "a bença" aos mais velhos, para manter o caráter bávaro/austríaco de "servus!".

 

        Traduzir "berliner hilton" por "maksoud em são paulo" segue a mesma crença que expus em meus comentários às traduções dos fragmentos de Cristian De Nápoli; assim como no caso da combinação de várias das questões que discutimos até aqui, nos versos "eine filmwohnung / in döbling im dehmelschokoladetortenstil von dipl. arch. / und stadtbaumeister woswasdardeiföwiarahastdeadschu- / schdea", que busquei em versos como "em núcleos ricos de novela / em alphaville em estilo casa-grande-e-bengala do eng. arq. / e urbanista komudyabusxamavaoblableblufu- / lanim", para que nesta transferência de um poema encharcado de referências, não só austríacas, mas vienenses, um leitor brasileiro (e, neste caso, paulistano) possa compreender, não apenas um significado "literário" do poema, mas também seu trabalho de intervenção cultural. Não vou discutir todas as "soluções". São exemplos das questões que um tradutor necessita responder ao entregar-se à tradução de um texto. O que significa ser fiel a um texto alheio? Respeitá-lo como documento histórico de uma língua e cultura, composto em um momento específico? Transpô-lo nestes aspectos, ainda que corra o risco de exotizá-lo, e por fim jamais atingi-lo como documento em si? Recriá-lo e transcontextualizá-lo para a cultura/língua-receptáculo, de tal forma que o leitor possa, através de suas próprias referências contextuais, compreender o trabalho do escritor estrangeiro em sua própria cultura? Escolhas, escolhas necessárias que não geram demasiada angústia em quem já não se preocupa com noções românticas equivocadas de "origem" e "fonte". Uma outra tentativa deu-se na tradução de um poema de Gregory Corso:

 

 

"Last Night I Drove a Car"

 

Last night I drove a car

not knowing how to drive

not owning a car

I drove and knocked down

people I loved

...went 120 through one town.

 

I stopped at Hedgeville

and slept in the back seat

...excited about my new life.

 

 

Ontem à noite guiei um carro

 

Ontem à noite guiei um carro

sem saber guiar

sem possuir um carro

Guiei e derrubei feito boliche

pessoas que amava

... a 120 sobre o piche.

 

Parei em Atibaia

e dormi no banco traseiro

... excitado em minha nova vida.

 

 

          Pareceu-me uma maneira de trazer mais próximo do leitor brasileiro um texto ágil e cheio de ansiedade, sem exotizá-lo. Estaria de acordo com quem quer que diga que, desta maneira, um leitor não tem acesso ao clima cultural americano do momento em que Corso compôe seu texto. Mas creio que este leitor estará mais próximo do que Corso FEZ em termos de poesia, obviamente em minha fé total e completa de que não existe transhistoricidade em literatura, e as palavras na poesia também exigem, como qualquer jogo de linguagem, entendimento via contexto. Segui, mais uma vez, necessidades biográficas ao usar "guiar" e não "dirigir", pois cresci em uma região do Brasil onde se usa com frequência tal verbo neste contexto. E me agrada que eu também não saiba guiar e não possua um carro. O texto, aparentemente coloquial e livre, gravita entre parcos vocábulos e rimas pobres e discretas, na repetição de "car", "down/town" (uma palavra em si), e a rima mais visual do que sonora em "Hedgeville/life".

 

          O que fazer, no entanto, quando o trabalho de um poeta ou escritor está tão ligado às características essenciais de sua própria língua, extremamente diferente, muitas vezes, da lingua-receptáculo, que FAZER o mesmo possa exigir mudar muitos de seus aspectos aparentemente mais evidentes? Perguntei-me isso ao traduzir fragmentos do livro Tender Buttons de Gertrude Stein. A língua inglesa é tão mais compacta que a portuguesa, que o grande desafio parecia ser o de encontrar monossílabos e dissílabos suficientes em português para a tradução, "problema" que já foi exposto por Augusto de Campos em suas traduções de Gertrude Stein. No poema-fragmento "Objects" (mantive as características visuais da edição que possuo):

 

 

Within, within the cut and slender joint alone, with sudden

equals and no more than three, two in the centre make two

one side.

If the elbow is long and it is filled so then the best example

is all together.

The kind of show is made by squeezing.

 

       

Primeira tentativa, em que busquei respeitar a compressão do texto em inglês:

 

 

Dentro, dentro do corte e débil junta só, com iguais

sustos e não mais que três, dois no centro fazem de

dois um lado.

Se o joelho longo está cheio então o melhor exemplo

é tudo junto.

Tal tipo de mostra é feito por pressão.

 

 

        Outra possibilidade seria utilizar uma característica específica da língua portuguesa, em que abundam as polissílabas, e performar o texto neste aspecto estrutural da língua a receber o poema importado:

 

 

Centrípeta, centrípeta incisão e frágil articulação isolada, equalizadas

repentinamente e jamais superiores ao tríplice, dúplice centralizado

produzindo dúplices unilaterais.

Se o cotovelo prolonga-se e preenche-se então optimiza-se exemplos

reunificando.

Variedade e amostragem produzidas em pressurização.

 

 

          Isto pode parecer exagero, um equívoco. E entendo que tal processo não é necessário em todo texto. Ao traduzir o famoso "Why I am not a painter" de Frank O'Hara, propus-me o mesmo desafio. Mas o próprio poema está tão ligado às técnicas dos próprios O'Hara como poeta, e Mike Goldberg como pintor, que transformá-los em mim mesmo e algum amigo pintor brasileiro, teria sido ir longe demais e perder o que O'Hara FEZ em seu texto, que nos aproxima de sua obra e da de Goldberg. Ainda pretendo entregar-me ao exercício de fazer o que ele fez dentro do meu contexto cultural e biográfico, o que resultará num poema muito diferente do seu, ainda que eu esteja empregando a sua ação, a mesma, a idêntica. Minha tradução, no entanto, manteve os nomes e contextos culturais nova-iorquinos da década de 50 americana, o que nos traz a questões temporais no ato de traduzir.

 

 

Why I am Not A Painter

 

I am not a painter, I am a poet.

Why? I think I would rather be

a painter, but I am not. Well,

 

for instance, Mike Goldberg

is starting a painting. I drop in.

"Sit down and have a drink" he

says. I drink; we drink. I look

up. "You have SARDINES in it."

"Yes, it needed something there."

"Oh." I go and the days go by

and I drop in again. The painting

is going on, and I go, and the days

go by. I drop in. The painting is

finished. "Where's SARDINES?"

All that's left is just

letters, "It was too much," Mike says.

 

But me? One day I am thinking of

a color: orange. I write a line

about orange. Pretty soon it is a

whole page of words, not lines.

Then another page. There should be

so much more, not of orange, of

words, of how terrible orange is

and life. Days go by. It is even in

prose, I am a real poet. My poem

is finished and I haven't mentioned

orange yet. It's twelve poems, I call

it ORANGES. And one day in a gallery

I see Mike's painting, called SARDINES.

 

 

Porque eu não sou pintor

 

Eu não sou pintor, sou poeta.

Por quê? Eu acho que preferiria ser

pintor, mas não sou. Bem,

 

por exemplo, Mike Goldberg

começa um quadro. Eu dou

uma passada. "Senta e bebe alguma coisa",

ele diz. Eu bebo; nós bebemos. Eu dou

uma olhada."Você pôs SARDINHAS neste."

"É, precisava de alguma coisa ali."

"Ah." Eu vou e os dias vão-se

e dou outra passada. O quadro

está indo, e eu vou, e os dias

vão-se. Dou uma passada. O quadro está

pronto. "Cadê SARDINHAS?"

Tudo o que sobrou são

letras, "Estava exagerado", diz Mike.

 

E eu? Um dia começo a pensar em

uma cor: laranja. Eu escrevo um verso

sobre laranja. Não demora a tornar-se

uma página inteira de palavras, não de versos.

Então, mais uma página. Deveria ter

tantas coisas mais, não de laranja, de

palavras, de como laranja é horrível,

e a vida. Dias vão-se. É assim mesmo

em prosa, eu sou poeta de verdade. Meu poema

está pronto e eu ainda não mencionei

laranja. São doze poemas, eu chamo de

LARANJAS. E um dia numa galeria

eu vejo o quadro do Mike, chamado SARDINHAS.

 

 

          Aqui não haveria muitas chances de transcontextualizar o texto de O'Hara sem perder justamente o que ele FEZ em seu trabalho, o que nos demonstra, na verdade, uma característica própria de sua poesia, que era a de capturar o clima cultural presente em que se inseria. Este poema, que faz uma crônica do ato de sua própria criação, leva-nos ao coração da escrita do próprio O'Hara, tão encharcada de sua biografia, a tal ponto que qualquer tentativa de extirpá-la da vida do próprio O'Hara fracassaria. Os poemas de Frank O'Hara são como fetos que narrassem sua própria gestação. Ou seja, cada texto levará o tradutor a um tratamento e relação específicos com sua própria língua e o trabalho do poeta a traduzir.

 

          Outro exemplo de poema que nos traz questionamentos ético-estéticos no ato de traduzir é o poema que, ligado de forma intrínseca à biografia do poeta que o escreveu e, a partir dela, a momentos coletivos históricos extremamente delicados, obriga-nos a levar ainda mais longe o questionamento do contextualizar de uma obra poética. Paul Celan, poeta romeno de língua alemã, que escreveu a grande parte de sua obra lingüisticamente exilado em Paris, apresenta uma série complexa de problemas ao tradutor. À primeira vista, pensar-se-ia que o problema mais sério são as desarticulações sintáticas da obra tardia do poeta e os neologismos característicos de uma língua aglutinante como a alemã. Já expus em outros textos como creio que Celan foi impelido a tal escrita pela própria cultura, língua e momento histórico em que se inseria, e principalmente por sua relação biográfica com estes fatos. Ao verter um poema de Celan para qualquer língua, torna-se obrigatório a qualquer tradutor, e óbvio, que ele não está simplesmente diante de um texto pairando "universal" sobre o mundo dos eventos, mas que tal texto agrega parte de sua potência cultural da biografia do autor (judeu sobrevivente [ainda adolescente] de um campo de concentração nazista, que perdeu os pais em outro) e das implicações éticas/estéticas do ato de sua escrita. Aqui, nenhum tradutor poderia ousar reproduzir tais características sem ter passado pelo mesmo horror, e torna-se também necessário salvar tal ato como documento histórico em si. Uma tradução honesta e conseqüente procurará, portanto, trazer à língua-receptáculo todas as implicações culturais de tal texto.

 

 

Todesfugue

 

Schwarze Milch der Frühe wir trinken sie abends

wir trinken sie mittags und morgens wir trinken sie nachts

wir trinken und trinken

wir schaufeln ein Grab in den Lüften da liegt man nicht eng

Ein Mann wohnt im Haus der spielt mit den Schlangen der schreibt

der schreibt wenn es dunkelt nach Deutschland dein goldenes Haar Margarete

er schreibt es und tritt vor das Haus und es blitzen die Sterne er pfeift seine Rüden herbei

er pfeift seine Juden hervor läßt schaufeln ein Grab in der Erde

er befiehlt uns spielt auf nun zum Tanz

 

Schwarze Milch der Frühe wir trinken dich nachts

wir trinken dich morgens und mittags wir trinken dich abends

wir trinken und trinken

Ein Mann wohnt im Haus der spielt mit den Schlangen der schreibt

der schreibt wenn es dunkelt nach Deutschland dein goldenes Haar Margarete

Dein aschenes Haar Sulamith wir schaufeln ein Grab in den Lüften da liegt man nicht eng

 

Er ruft stecht tiefer ins Erdreich ihr einen ihr andern singet und spielt

er greift nach dem Eisen im Gurt er schwingts seine Augen sind blau

stecht tiefer die Spaten ihr einen ihr andern spielt weiter zum Tanz auf

 

Schwarze Milch der Frühe wir trinken dich nachts

wir trinken dich mittags und morgens wir trinken dich abends

wir trinken und trinken

ein Mann wohnt im Haus dein goldenes Haar Margarete

dein aschenes Haar Sulamith er spielt mit den Schlangen

Er ruft spielt süßer den Tod der Tod ist ein Meister aus Deutschland

er ruft streicht dunkler die Geigen dann steigt ihr als Rauch in die Luft

dann habt ihr ein Grab in den Wolken da liegt man nicht eng

 

Schwarze Milch der Frühe wir trinken dich nachts

wir trinken dich mittags der Tod ist ein Meister aus Deutschland

wir trinken dich abends und morgens wir trinken und trinken

der Tod ist ein Meister aus Deutschland sein Auge ist blau

er trifft dich mit bleierner Kugel er trifft dich genau

ein Mann wohnt im Haus dein goldenes Haar Margarete

er hetzt seine Rüden auf uns er schenkt uns ein Grab in der Luft

er spielt mit den Schlangen und träumet der Tod is ein Meister aus Deutschland

dein goldenes Haar Margarete

dein aschenes Haar Sulamith

 

 

Minha tentativa, cheia de temor e tremor:

 

 

Fuga da morte

 

Leite negro da madrugada que bebemos à tardinha

nós bebemos ao meio-dia e de manhã nós bebemos à noite

nós bebemos e bebemos

cavamos uma cova nos ares onde possamos espreguiçar-nos

Certo homem habita a casa e brinca com víboras que escreve

que escreve quando escurece à Alemanha teu cabelo doirado Margarete

ele escreve e posta-se diante da casa estrelas chamejam ele assovia conclama seus cães

ele assovia enfileira seus judeus faz cavarem na terra uma cova

ele ordena desferi os violinos agora chacoalhemos os esqueletos

 

Leite negro da madrugada nós te bebemos à noite

nós te bebemos de manhã e ao meio-dia nós te bebemos à tardinha

nós bebemos e bebemos

Certo homem habita a casa e brinca com víboras que escreve

que escreve quando escurece à Alemanha teu cabelo doirado Margarete

Teu cabelo cinzento Sulamita nós cavamos nos ares uma cova onde espreguiçar-nos

Ele grita pás mais fundo no miolo da terra vós e vós cantai e tocai

ele alcança o ferro na cintura agita-o nos ares seus olhos são azuis

mais fundo com as pás mais alto com os violinos chacoalhemos os esqueletos

 

Leite negro da madrugada nós te bebemos à noite

nós te bebemos ao meio-dia e de manhã nós te bebemos à tardinha

nós bebemos e bebemos

Certo homem habita a casa teu cabelo doirado Margarete

teu cabelo cinzento Sulamita ele brinca com víboras

 

Ele grita dedilhai com mais doçura a morte a morte é especializada na Alemanha

ele grita desferi azuis os violinos e escalai como fumaça aos ares

assim tereis uma cova nas nuvens onde podeis espreguiçar-vos

 

Leite negro da madrugada nós te bebemos à noite

nós bebemos ao meio-dia a morte é especializada na Alemanha

nós bebemos à tardinha e de manhã nós bebemos e bebemos

a morte é especializada na Alemanha seus olhos são azuis

ele acerta teu corpo com balas metálicas acerta na mosca

certo homem habita a casa teu cabelo doirado Margarete

ele atiça contra nós seus cães brinda-nos com uma cova nos ares

ele brinca com víboras e sonha a morte é especializada na Alemanha

 

teu cabelo doirado Margarete

teu cabelo cinzento Sulamita

 

         

          O uso que Celan faz da estrutura sintática da língua alemã é mais difícil de traduzir,  em minha opinião, que os neologismos típicos de sua escrita, em especial na obra posterior a "Die Niemandsrose", e muitos dos detalhes e estranhezas da sintaxe acabam nivelados e perdidos na maior parte das traduções de seus poemas, em especial no Brasil, onde a obsessão pela semântica e o equívoco de fincar o trabalho poético nela, encontram repouso na própria escolha dos poetas-guias a serem equivocadamente traduzidos ou celebrados, em especial por poetas brasileiros ligados a uma noção equivocada de neobarroco, que têm se entregado a descascar as rugosidades mais superficiais das obras de poetas como Paul Celan ou Herberto Helder, no plano da língua portuguesa. Outra característica marcante de um poema como o "Todesfugue" é o uso que Celan faz da oralidade, algo que raramente parece ser notado nos textos sobre o poema. "Todesfugue" é um poema para ser lido em voz alta, a estrutura usada nele é a da fala, mais que da escrita. Trata-se de uma experiência muito interessante ouvir gravações do próprio Celan lendo este poema, "atuando" as vozes do dirigente nazista do texto e dos prisioneiros entre as vozes do "wir". Há ainda outra característica num poema como este, que por vários motivos acaba sendo ignorada, talvez por tratar de momento tão horrendo na história do século XX: os elementos de sarcasmo e uma forma muito dolorosa de ironia e humor mascado em dor. Celan entregou-se a um trabalho incrivelmente torturante neste poema, ao tentar estabelecer uma performance lingüística que pudesse performar a mentalidade-voz dos próprios algozes, ilustrando a leviandade e sadismo com que os nazistas tratavam os prisioneiros dos campos de concentração (eufemismo para os campos de extermínio). O "eu-lírico" deste poema está completamente borrado, numa relação complexa entre vítima e algoz, a voz alternando-se entre um e outro, a ponto da própria vítima assumir aspectos do discurso de seu algoz e mesmo seu vocabulário. Versos como "er pfeift seine Rüden herbei / er pfeift seine Juden hervor" ilustram alguns dos aspectos que estou tentando demonstrar. Em primeiro lugar, a estrutura sintática estranha, repetitiva e cheia de sarcasmo, um sarcasmo doloroso e às avessas, ao utilizar exatamente as mesmas expressões para os "cães" e "judeus", em que Celan estabelece uma associação sonora  (Rüden / Juden), demonstrando a aparente "naturalidade" com que os nazistas dirigentes dos campos levavam a cabo suas atividades. A diferença mostra-se, no intanto, em "herbei" e "hervor", dando a entender que os cães são chamados para "seu lado",  posto de confiança, os judeus tendo que se apresentar "diante" dele, ilustrando o trabalho sintático sutil de um poema como Todesfugue. Trata-se de estrutura sintática estranha, nunca usada desta forma. Traduz-se, em geral, "Rüden" por "mastins", em traduções tanto brasileiras quanto portuguesas, perdendo a relação sonora com "Juden". Seria possível demonstrar tal "acusação" por parte de Celan, de maneira talvez controversa, mas que mostraria a leviandade dos nazistas e a maneira como tratavam de forma "animalesca" os seres humanos (judeus, comunistas, ciganos, homossexuais) que foram deportados para campos de extermínio, em  "ele assovia conclama seus cães / ele assovia enfileira seus judeus de estimação", tendo considerado mesmo a possibilidade: "ele assovia conclama seus poodles / ele assovia enfileira seus judeus", em que seria possível manter a relação sonora entre as palavras, transformando, no entanto, algo da atmosfera do poema, ainda que haja relatos sobre dirigentes de campos de concentração que moravam com suas famílias em terrenos próximos dos campos, no caso dos campos na própria Alemanha, onde mantinham suas vidas “delicadas”. A quem parecer que tanto uma quanto outra solução beiram a distorção leviana (que eu esperava que fosse vista nos nazistas), pode ficar sempre com a opção mais simples de traduzir "Rüden" por "mastins" e ter o verso como: "ele assovia conclama seus mastins / ele assovia enfileira seus judeus", esperando que o verbo "assoviar" dê conta, sozinho, das conotações que Paul Celan buscou estabelecer, enquanto as diferenças entre "conclamar" e "enfileirar" trabalhem como "herbei" e "hervor" no poema em alemão.

 

          Tomando o exemplo de Augusto de Campos que, ao traduzir Arthur Rimbaud, recorreu à imagética de Pedro Kilkerry para a contextualização e recepção brasileiras do poeta francês, recorri à imagética de Murilo Mendes nesta tradução de Paul Celan, mais especificamente ao poema "Janela do Caos", não de forma aleatória, mas por serem poemas contemporâneos, o "Todesfugue" escrito, aparentemente, por volta de 1948, e o poema "Janela do Caos" publicado em 1947, ambos encharcados da Segunda Grande Guerra. Ao tradutor de um poema como o "Todesfugue" de Paul Celan, torna-se necessário manter características formais, como a utilização musical da estrutura da "fuga", com suas repetições, que vão além da mimese de uma forma artística outra, mas que funcionam estruturalmente no poema como incorporação do absurdo cotidiano dos trabalhos forçados repetitivos a que os prisioneiros eram submetidos, e também criar a mesma atmosfera de "horror rotineiro" que as vítimas dos campos diariamente suportavam, com o trabalho levado a cabo com eficiência burocrática por parte dos nazistas alemães (e austríacos, além de outros colaboracionistas internacionais), que ainda assim mantinham seu "bom gosto" de homens educados literária e musicalmente. "Bom gosto" que o próprio Celan buscou questionar em sua poesia, ao resgatar em expressionistas como Georg Trakl muito de sua imagética, além de fraturar de forma "feia" e "grotesca" a santíssima sintaxe alemã, expondo a barbárie dos escritores que seguiram com suas assonâncias, aliterações e outras eufonias, em plena época de horror e terror. Não se trata de poesia pura, como muitos parecem crer, de forma equivocada em minha opinião, especialmente no Brasil, mas de poesia que se enfia até o pescoço na tormenta do seu tempo, do seu contexto.

 

         Procurei, em cada um destes exemplos, demonstrar minha opinião de como a contextualização de um texto poético é inescapável e necessária, residindo justamente nela a possibilidade de sobrevivência deste mesmo texto. Mas, também, como nenhum aparato teórico generalizado pode dar conta da multiplicidade de personalidades poéticas individuais, transformando-se pelos tempos, e como cada texto sempre trará em si mesmo suas próprias necessidades intrínsecas, engendradas na ação de seu autor ao manusear e intervir em sua língua e através dela.

 

 

Berlim, 24 de outubro a 18 de novembro de 2006

 

 

Ricardo Domeneck. Paulista, vive em Berlim. Além de poeta, é tradutor, ensaísta, videomaker e DJ. Como DJ, organiza a festa semanal  Berlin Hilton. Edita o fanzine Hilda e é "content manager" do site Flasher, para o qual escreve artigos e entrevista artistas e músicos em Berlim e Londres. Co-fundador da gravadora Kute Bash Records.  Publicações: Carta aos anfíbios (Rio de Janeiro: Editora Bem-Te-Vi, 2005); Cuatro Poetas Brasileños Recientes, organização e tradução de Cristian de Nápoli (Buenos Aires: Editorial Black & Vermelho, 2006); A cadela sem Logos (São Paulo/Rio de Janeiro: CosacNaify/7Letras, 2007); Ideologia da percepção, em Inimigo  Rumor — Revista de poesia, n. 18  (São Paulo/Rio de Janeiro: editoras CosacNaify/7Letras, 2006); When they spoke I / confused cortex / for context (London:  Pablo Internacional Magazine, 2006). Colaborações: Tentação do Homogêneo, em Cacto — Revista de Literatura, n. 4  (São Paulo:  edição de Tarso de Melo e Eduardo Sterzi/editora Unimarco, 2004); textos, traduções (Jack Spicer, Rosmarie Waldrop, Lyn Hejinian & Basil Bunting, do inglês; e Friederike Mayröcker, do alemão) e entrevista, em Inimigo Rumor — Revista de poesia, n. 17 (São Paulo/ Rio de Janeiro: editoras CosacNaify/7Letras, 2006).

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