O livro lançado recentemente pela San Floro Editora, Kislansky, o Eterno e o Moderno é três: a obra de escultura de Israel Kislansky, as fotos de Edu Simões e os textos de Enio Squeff. Vejamos como se articulam, tomando inicialmente como eixo os textos de Squeff: como de praxe, eles vêm escritos naquele seu estilo arguto e inconfundível, que é parte crítica de arte (evidentemente, sem o ouropel das nomenclaturas afetadas e passageiras da crítica de arte), e parte a saborosa conversa cujo fio condutor é tanto a obra de Kislansky quanto uma história, do ponto de vista do artista (e portanto, também social), da pintura e da escultura através de punti luminosi da relação artesanal do autor com a obra, para descrever o mesmo processo evidenciado no trabalho de Kislansky.

Isto é, seu estilo de escrita tem a medida justa do equilíbrio entre o conhecimento e a exposição agradável e até estética, o que revela um caráter oficinal de crítica, aliás em consonância com seu objeto no livro, a escultura de Kislansky, baseada em princípios artesanais e na experiência de ateliê. E busca, assim, um esclarecimento feito de dentro para fora: o texto se desenvolve rapidamente, expõe fatos, opiniões combinadas a anedotas e a um conhecimento prático muito desenvolvido, levado a uma depuração por vezes filosófica. É o exemplo do que deveria ser a crítica de arte, e a literária também.

Disse que era social também, porque percebemos a linha que se estende da prática artística à cidade, a uma idéia de convivência e compreensão do espaço dividido. Squeff aponta a destruição urbanística de São Paulo, já existente e acelerada pela combinação extremamente danosa de governo militar e "industrialismo irresponsável" (p.55). Essa é a definição do exílio social da arte e do artista, não porque se busque o "belo" hegeliano (que é apenas um velho romantismo), mas porque se subtrai, com isso, uma dimensão inteira de sentido artístico e de refinamento intelectual. Por oposição, pode-se pensar em Vitrúvio e no De Architetura, por exemplo, ou Luca Pacioli e o De Divina Proportione. Troca-se um nexo ético de convivência pela lógica maquinal e ansiosa do "não pode parar" (p.56).

Selecionaria dois pontos para registrar o temperamento do livro e das obras: Squeff nos apresenta aquela idéia muito interessante da materialidade intrínseca da escultura, tornando-a moderna avant la lettre, fornecendo um distanciamento que já de início a propõe como objet d'art: "Diante de um mármore ou de um bronze não haveria nada que nos conduzisse a uma outra idéia além da pedra ou do metal", o que já durante a Renascença italiana fazia com que as antigas estátuas descoradas e mutiladas ganhassem um status especial, substituindo o fato de que eram fragmentos pela noção que passa a aceitá-las e propô-las como monumento: "De um momento para o outro aceitavam-se os torsos agredidos pelo tempo", (p. 28).

Outro aspecto fundamental é o desenvolvido na primeira parte da entrevista com Kislansky: a concepção da escultura figurativa como um equilíbrio formal abstrato, ao invés da idéia comumente expressa de, como chamou Kislansky, "fidelidade mimética" (p.128), no sentido de que ela se serve da figuração para compor a forma. Evidente que, no caso da obra de Kislansky, o que indica isso é a fixidez dos semblantes, a precisão milimétrica do desenho e das proporções anatômicas, que reiteram o fato daquele objeto ter sido ser efetivamente pensado como escultura, alheio a um critério "expressivo" romântico, porque, por outro lado, suas figuras não correspondem também a um ideal clássico, exatamente como escreve Squeff: "são bem de nosso tempo os corpos de suas mulheres, nos quais jamais se disfarçam os espartilhos da existência urbana" (p. 151).

Esses dois pontos são muito importantes, porque estruturam todo o discurso que percorrerá o livro, investindo na concepção de formação, ateliê e artesanato, contraposta à velocidade mecanicista que não fixa, fornece apenas breves vislumbres do que poderia, eventualmente, ter sido uma hipótese de obra de arte, e é o que hoje se vende como arte, com um monte de nomes esforçados e estratagemas pseudo-intelectuais de autovalidação.

É até certo ponto uma tese, no sentido de que as proposições que se extraem de seu pensamento sobre a ordem — ou a desordem — atual do trabalho artístico revertem o comodismo crítico assentado nas já velhas e inúteis repetições das vanguardas do início do século XX. Inúteis porque as condições que geraram a necessidade daquilo já eram; porque, também, era coisa previsivelmente pontual, com o intuito de superar a estagnação improdutiva da maior parte da arte produzida anteriormente, e não se tornar, por sua vez, a própria estagnação.

Se, por um lado, as vanguardas tinham e exploravam seu necessário potencial destruidor, traziam igualmente um poder de renovação que reinterpretou o legado cultural da civilização do Ocidente. Por exemplo, Picasso, Braque, Matisse, Balthus, Mondrian, Maliévitch na pintura; Ezra Pound, T.S. Eliot, Lorca, Cocteau, Apollinaire, Maiakóvski, Fernando Pessoa, na poesia; Giacometti, Epstein, Brancusi, Boccioni na escultura; Joyce, Hemingway, Svevo, Lewis, Proust, na prosa; Stravinsky, Schoenberg, Satie, Alban Berg e Antheil na música, etc. todos operaram da mesma forma demolição & reconstrução.

Squeff faz notar como o lado da demolição não só se sobressaiu para os diluidores, como também se autonomizou para tomar o lugar quadrado de arte oficial. É muito interessante perceber esse núcleo analítico no texto de Squeff, porque apesar de ser coisa, no fundo, notória, é também o tipo de coisa sobre o qual ninguém fala ou escreve, acomodados no esquema tácito de aceitar o oficial. Por oposição, estamos diante de um livro que repropõe a liga não de todo perdida entra a arte e o artesanato, entre a arte e a experiência do ateliê, da figura e do conhecimento que leva algum tempo adquirir.

O que temos aqui? Temos a curiosa disposição, que em algum momento futuro será necessário considerar, que fez o oficialesco seqüestrar os nobilitantes da arte moderna (novo, conceitual, liberdade, abstrato, concreto, ousado, radical, vanguarda, conciso, etc.) para si, e fez o lado que oferecia o próprio significado da arte, que é a cultura, ficar imerso na sombra. A ruptura se instalou, autônoma, reproduzindo os mesmos clichês sem ter agora, na verdade, com o que romper. Squeff flagra um efeito de inércia nessa reprodução sistemática dos estilemas modernos.

E esse é o fio de sua argumentação: por oposição à arte oficial recente, a escultura rigorosamente figurativa de Kislansky vai ganhando seus contornos durante a leitura. Compondo esse desenho do aspecto social da arte que virou um artefato que mistura, numa combinação acéfala, o comércio tout-court e a carolíssima arte oficial, Squeff nos fornece seu objeto como contraponto. Não é necessário que se adote o mesmo ponto de vista do autor (e ele não nos pede isso) para com a escultura de Kislansky em termos de valoração crítica para se observar que é uma obra estruturalmente oposta ao esquema agora oficial. Por outro lado, não se opõe propondo uma ruptura assertiva e contundente — ou um rearranjo da percepção estética da escultura —, mas traz em si o suficiente para um princípio de discussão: se oferece como um análogo da experiência do silêncio após uma seqüência profusa de sons.

A entrevista mostra um escultor intelectualmente muito sereno e equilibrado, que estrutura um discurso muito semelhante às qualidades de seu trabalho: não se inflama, adota uma simplicidade rigorosa e demonstra conhecimento sem necessidade de exibição. É perceptível que organizou uma compreensão de todo o espectro de sua arte com a dificuldade de quem não encontraria esse conhecimento localizado em lugar algum como coisa a se oferecer (o que também aparecerá, no livro, em seu ensaio sobre a fundição no Brasil). Um ponto a se destacar é justamente o fato de que abarca todas as etapas de seu métier, e não apenas um rascunho geral da idéia, que é tudo o que a maioria dos artistas oferece a seus fundidores.

Se, por um lado, é notável seu rigoroso conhecimento da transposição da figura, raríssimo atualmente como formação, é não menos notável o pouco desenvolvimento propriamente transformador que imprime a suas estátuas, mais fácil ainda de verificar quando consideramos composições de grupo, como Trio IV (pp. 101-102), que são composições separadas e postas juntas de um modo que tenta lhes dar alguma coerência estrutural.

O Julgamento de Páris (pp. 94-95), muito melhor resolvido como composição, ainda retém certa dificuldade em adaptar as figuras umas às outras: a que segura o pomo e a outra que se lhe opõe funcionam bem juntas, mas a terceira, sentada, parece ter se acrescentado sem fornecer necessário contrapeso visual a uma dupla já bastante bem solucionada. A que segura o pomo é a única, no entanto, que oferece (além da maçã), em sua sinuosidade contorcida e laboriosamente sensual, um componente psicológico que a faz transcender a condição de peça representativa do corpo. Não se supõe a partir das figuras, à exceção daquela que leva o pomo — e que deve ser portanto Vênus — o ethos de deusas. Interessante que essa Vênus é meio cobra, com seu corpo graciosamente contorcido, talvez numa ilação possível com a serpente do Éden?

Curiosamente oposto a essa rigidez de suas figuras curvilíneas e perfeitamente imitativas, sobre as quais não se deve deixar passar também o aspecto decorativo (como a foto da página 2 sugere) está seu desenho solto, fluido e desejoso de apreender a mobilidade, quase que numa poética do movimento: suas linhas se arriscam, se sobrepõem, parecem dançar (ver os esboços das páginas 124, 144 e 147), ganham mais espessura com o peso redondo das nádegas, com as reentrâncias agradáveis do contato de um braço com o corpo, e deslizam nas partes distendidas, num verdadeiro amor pela forma, o que inclui, é certo, o discreto erotismo do nu em si mesmo, como se esquecido do olhar e liberado mesmo da própria auto-consciência, e portanto os rostos são suprimidos para o registro da energia dos músculos, a maciez dos seios e a doçura de uma barriga magra que ligeiramente protubera entre os ossos do quadril.

Kislansky é um evidente e enorme passo adiante em relação à obra que o antecede, a de seu professor Van Acker (para o qual aliás há a homenagem das Vanackerianas I e II), e isso é seguro, mas ainda não ofereceu respostas suficientemente sólidas — o que parece quase uma contradição em se tratando de esculturas de bronze — a uma reinvenção da arte da escultura figurativa, se pensamos que nem há tantos anos assim ainda havia artistas muito completos e com uma obra muito poderosa que reelaborava as noções do figurativismo escultórico, como Victor Brecheret, Alberto Giacometti, Louise Bourgeois. Entretanto, sua preciosa iniciativa de constituir um ateliê, em pleno funcionamento, que tem formado diversos artistas na arte da escultura em todos seus aspectos práticos, permite supor que é um processo ainda não terminado, mas, ao contrário, em franca construção, mesmo para o próprio Israel Kislansky, jovem e no pleno domínio da técnica.

Uma demonstração disso é o próprio texto de Kislansky sobre a fundição artística no Brasil, chamado "A Fogo Lento". Breve e interessantíssimo ensaio que é um estudo histórico dos aspectos particulares à fundição de peças artísticas no Brasil: retraça seus princípios da transferência da coroa portuguesa para o Brasil, aponta um fato que impediu o desenvolvimento das fundições (isto é, evitar que se cunhasse moeda brasileira, antes da independência), e explica o desenvolvimento até seu ápice de sofisticação, a estátua eqüestre do Duque de Caxias, por Brecheret, em 1955, "na época, a maior escultura eqüestre fundida em bronze do mundo" (p.82), e o posterior declínio da técnica. Kislansky registra a história, mas é propositivo: pede a atenção para se conservar e desenvolver esse conhecimento, e faz um elogio dos fundidores, tão importantes, e que trabalham muitas vezes em condições muito aquém do ideal.

A respeito disso é também necessário assinalar: livro muito bem impresso, que transmite a precisão plástica dos corpos da escultura de Kislansky, é bem concebida sua estrutura de tríptico, que balanceia muito bem o situar o escultor, o ouvir dele as próprias opiniões e o fornecer as peças e o trabalho nelas em apurado ensaio fotográfico. Sim, apurado: o texto que biografa Simões é exato quando diz que seu trabalho "tem uma força narrativa que transcende a informação e avança para um discurso interpretativo" (p.153).

É preciso ressaltar o registro fotográfico de Edu Simões flagrando, também plasticamente, o processo de fatura das peças por seus colaboradores, soldando, raspando, montando as esculturas, em pleno movimento. Simões também captura e enquadra momentos singulares, como o da peça compósita, resultado da junção de pé e mão e outros pedaços, que permanece como uma estranha beleza e um comentário quase auto-irônico às idéias desenvolvidas pelo livro; a cabeça e o tronco da mulher dourada que jazem sobre a mesa da oficina como se sobre uma mesa de autópsia; o impassível e gritante fundo mostarda da oficina, que rima visualmente com a mão estendida da escultura sendo desbastada pelo artesão, ele próprio apenas um frenético movimento; e os retratos dos "fazedores", etc.

Kislansky, o Eterno e o Moderno ultrapassa então seu objetivo mais imediato, o registro da obra de escultura de Israel Kislansky, surgindo como um livro de arte muito peculiar, que oferece uma posição ao mesmo tempo visual e textual para questionar o estado atual das artes e repropor caminhos, reunindo três importantes artistas brasileiros da imagem.

 

 

IMAGENS DO LIVRO – FOTOGRAFIA DE EDU SIMÕES

 

 

 

 

 

 

 

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Kislansky, o Eterno e o Moderno. Textos de Enio Squeff. Fotos de Edu Simões.

São Paulo: San Floro Editora, 2006.

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novembro/desembro, 2006

 

 

Dirceu Villa. Poeta, tradutor, ensaísta e professor de literatura. Publicou MCMXCVIII (São Paulo: Selo Badaró, 1998), Descort (São Paulo: Hedra, 2003) e tem inédito o novo livro de poemas, Icterofagia. Apresentou o programa da rádio CR37, da Casa das Rosas, na internet, sob direção de R. H. Jackson, e editou a revista Gargântua (1998-1999); foi publicado na antologia nova-iorquina Rattapallax 9 (2003); tem poemas publicados nas revistas Ciência & Cultura e Ácaro, na qual publicou também traduções de e.e.cummings e Ezra Pound; traduziu e anotou Lustra, de Ezra Pound, para o mestrado (2004); tem ensaio sobre Fernando Pessoa publicado no "Dossiê" da revista Cult (2005); fez o roteiro e desenhou a HQ "O Entardecer de um Fauno", baseada em poema de Stéphane Mallarmé, e recentemente prefaciou os Contos indianos, do mesmo autor (São Paulo: Hedra, 2006), além de A trágica história do Doutor Fausto, de Christopher Marlowe (São Paulo: Hedra, 2006). Traduziu Imagens de um mundo trêmulo, de John Milton (São Paulo: Hedra, 2006). Leciona no curso de extensão universitária da USP (Poesia – 2003/2004/2006) e faz parte do corpo editorial da revista Cadernos de Tradução, FFLCH-USP.
 
 
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