conhaque

Conhaque, pinhão,
e no pilão,
as mãos da Maria,
a diarista.

Enquanto, da tela, Amarcord,
fugia-me a vista
e fugiam-me os ouvidos
dos comentários e obituários
de pretensos videomakers
e otários
empunhando cigarros.

Preferi o trabalho e o cantar da Maria.

Deixei Fellini, entre outros,
que me perdoem,
também o póstumo mau humor
pr'outro dia
ou pr'outro eu
que então suporte
demagogia
papo furado
tabaco forte.

 


ninguém perdoa meus sonhos

ninguém perdoa meus sonhos

mas perdoam
sangue
lágrimas
mentira
.

quadrado mundo
que moribundo
gira

 


spandaemonium

o mundo todo me vigia
ninguém me vê
na idade mídia

web cams
globos negros na rua xv
nem no elevador posso mexer no nariz

já tenho um código de barras
sou produto não cadastrado
mas alvo
por satélite
seguramente localizado

(virtual até nos nervos
já penso em me desconectar)

ah
ontem recebi um e-mail
era você
me avisando dos novos tempos
agora obsoletos

: deletaram-me os dedos

mas talvez minha avó
ainda saiba de um chá
que seja bom
para defeitos

 


labirinto

labirinto
o próximo passo
no máximo
passo atrás

ademais, o que vier,
será implícito na causa
incluso no mais ínfimo
desejo de cova rasa

"não se meta com estranhos
 e volte direto pra casa"
— refrão do sermão da mãe
dando afago aos meus pés

e piso na brasa
ao invés
de dar asas
às asas

 


e o padre

e o padre
confessou tudo
latim por latim

otário
caiu no conto
do vigário

 


poemas goela abaixo

poemas goela abaixo
tequilam-me
acho

 


enfim

enfim
minha face
verdadeira

:

vivo a vida toda
esperando uma vida
inteira

 


sol nas costas

Sol nas costas,
avermelha casca pálida
e pá na terra.

Paz?

(Pés juntos,
e eu nem gostava desses sapatos!

Quem me pôs essa gravata
com cheiro de barata
vai pagar caro!)

 


*

muralho meus sonhos
com fino
concreto

quem dera eu fosse
anarquiteto

 


welladay

na passagem
para a passagem
noiteadentro

ab                           

sinto

e se alguém souber de cronos
que mande-o pra cá
provar de minha espada
manchada do sangueterno
das horas passadas

sem volta
noiteadentro

ab

sorvo

cada megamicroinstante

se deliro
bem que faço
renasço

     corvo

e só me dou conta
de quanto dela passei
quando o Simão
dono do bar
diz não ter troco
pra nota de cem

 


*

num galho
do pomar

a pipa enroscada

só falta
cantar

 


trêmulo

trêmulo
à voz da lua
perambulo
procurando
a tua

e eis que o frio
frio me faz
entender

: certas noites
findam muito
muito antes
de amanhecer

 


pantomínima
 
argumento,
motivo do conflito:
antes não reflito
me divido
 
sou perda
sou passado
sou bogart
no mesmo noir
irrevogável reverso
 
nem há como caminhar
pois sou pedra
jurada de vida
pelo universo

 

 

Lucas de Meira (Curitiba-PR, 1978). Poeta, escritor, ator, vocalista da Banda Sounder. Escreve o Antes Fosse Agora.

 

(back ©sergio cury)