©enio squeff
 
 
 
 
 
 
 

 

 

André, André pequeno, Andrezim, parto difícil, até o último respiro a "tia" Maria Zoccoli suava ao alembrar: dos que chegaram pelas suas mãos e vingaram, o pior, nasceu sentado, embora doessem-lhe quantos inascidos!, abortos horrendos, monstros, aleijados, anjinhos semeando o-lado-de-trás, o das bananeiras, das casas das fazendolas nos derredores de Rodeiro, quantos! Andrezim não, vicejou, quase afadigando de vez a Micheletta velha, mulher efêmera, sempre dessangrada, azul-clara de tanta brancura, atrofiada na cama, "doente" todo ano, embarrigada, esvaindo a mocidade pelos baixios, vinte anos de gravidezes, um estupor, treze rebentos — oito filhas-mulheres —, os "Paineiras", na boca envenenada da gente da Rua, espigados, cabelos algodão tão louros, bochechas avermelhadas engordando vestidos de bolinhas, caras apimentadas enchendo calções. Prático, o Pai, o Micheletto velho, costumava apascentar os nenéns: seis, sete meses passados, se o raio continuava a berrar na hora de mamar, encilhava o cavalo numa sexta-feira, e, terno-gravata, ia na Rua registrar o novo Micheletto, nomes brincando na cabeça. Frente ao tabelião, à pergunta, "Como é que vai chamar?", acabrunhava-se, e, para não se vender xucro, sacava o primeiro parente e o homenageava, aliviado. Domingo de tardinha apeava no terreiro seu metro-e-oitenta, fazia festas para as crianças, mãos cheias de balas, e para os cachorros, e ia deitar, palmilhando o sono esquecido nos quartos adamados da Rua do Quiabo. E eram tantos os nomes, tantos os rostos e tão pouca a ciência, que renunciou a singularizar a fisionomia de cada um daqueles bichinhos que habitavam os corredores da casa. Quando necessitado, ordenava, "Filho, isso assim e assim", "Filha, isso assim e assado", e candeava suas afeições, mais pelas criações e pela lavoura que pela prole, que aquelas dão trabalho, mas alegrias, e essas decepções apenas.

Desdobrou a família, entre machados e queimadas, arados e enxadas, no fundo do fundo de uma barroca enquistada meio caminho de Rodeiro para a Serra da Onça, por detrás, cruzando enviesado pelas Três Vendas, pouco mais ou menos coleando as águas nervosas do Rio Xopotó, uma grota adquirida com o sol amontado nas costas nos encabritados cafezais do Piau, solto no mundo, desmamado de pai e mãe, enfezado na empreita da limpa das "ruas" até a panha dos grãos maduros, para depois, orgulhoso, nota sobre nota, escriturar aquele mataréu vassalo de bicharia selvagem, uma imundície de jaguatiricas e jararacuçus gordas como braço de homem-teba, veados-mateiros e cachorros-do-mato, sapos-cururu e tatus-galinhas, macacos-prego e lobos-guará. Estreou derribando árvores e alastrando fogo nos tocos, puxando água de uma mina com engenharias de bambus-gigantes, marretando pedras para soldar as bases do corpo central da casa seis-cômodos, as mãos febris de calos, os ombros empapados de sangue pisado. Aprumou paredes na amarração de caibros e cumeeiras, recobriu o teto, tijolos e telhas-cumbuca trazidos em lombo de burro da olaria do "tio" Antônio Finetto para industriar aqueles fins de tudo. E, presidiário de sua obsessão, comeu sete meses de sua vida na ampla solidão do paraíso, labutando de em-antes do sol espantar a roncaria da madrugada até os dedos formigarem de sono, pois urgia o tempo: à luz de lamparinas caprichava na carapina, mesas, banquetas, baús, bancos, guarda-roupas, guarda-comidas. Quando deu por finda a faina convulsiva, compareceu, fosse uma visão, na Rua, socado dentro de um terno-gravata marinho mandado feitiar no Singulani, asas imensas na senjeiteza dos modos, pés escalavrados no pelourinho da bota rinchando de nova, de casa em casa da "colônia" caçando a eva que iria povoar aquele mundo virgem de vozes. Demorou um nada para preferir uma menina-Bicio, Chiara, recém-moça, catorze anos, que, pela largura das ancas, mostrava-se boa parideira, embora magra e intimidada, corpo forrado de sardas, e fraca da cabeça, como descobriria depois, já fora-de-hora para desfazer o negócio.

Domingo, o Micheletto velho reservava para, além de assistir missa na Igreja de São Sebastião, revolver pendengas, ferrar o cavalo, comprar mantimento no Maneco Linhares, miudeza na loja do Turco, cascar arroz na máquina, tomar uns goles no Pivatto, tratar da berganha de um garrote ou de um cachaço, levar uma encomenda de ovos de pato, um marrequinho-d'água, uma besteiragem de mulher, um troço, outro. Os olhos de André iluminaram o Pai num dia assim: dois enormes braços compridos guindaram-no aos ombros do gigante, que, meio bêbado, desfilou pela praça, orgulhoso, apontando nas grimpas das árvores o bicho-preguiça, servindo pipoca para os sagüis ariscos, chutando os vira-latas sonados. O ranço do fumo, que, exalando dos bastos bigodes ruivos debruçados por sobre a boca, impregnava os já ralos cabelos louros, os olhos azuis, a roupa de algodão ordinária, os poros, tudo, mais o ácido cheiro da cachaça, zonzearam-no, sua vista emudeceu, quantos anos tinha então?, dois?, três? Quantos afagos ainda lhe faria aquele homem?, tão alto que temia fosse bater a cabeça nas nuvens, tão calado que assustava-se quando reboava sua voz, tão esquisito que ao cruzá-lo no calçamento os conhecidos, garimpando os chãos, soltavam um muxoxo, que era um cumprimentar não cumprimentando, tão sistemático que o evitavam na estrada, cujo capricho reservara ele todo para seus alqueires cercados de achas de braúna e arame farpado, porteira adentro onde antes sujeiras de matas, pedras, voçorocas, cupins, agora pastos de guzerá e gir, pomar de limas, limões, tanjos, laranjas, sidras e mexericas, roças de fumo, milho, café, cana, horta, arroz, abacate, manga, jaca, frangos, patos, cachorros, gatos. Mais tarde, André recordaria as madrugadas em que, desperto pelo zunzunzum da noite, espiava, pela greta da janela do quarto que dava para a vargem, o Pai de pé, envolvido pela friagem, esticando a vista treva adentro para consultar cada planta, cada bicho, cada broto, cada filhote, macho o suficiente para abandonar a soca e guerrear contra uma onça que rasgou o Nego, um bostinha de cadelo espojador, bobo, interesseiro, covarde, mas registrado entre seus haveres, e enérgico o tanto que capaz de enfieirar os anos sem se dirigir à pessoa de sua esposa, desdenhando-a até na missa de corpo-presente, por entendê-la inapetente para gerar filhos-homens, ou, parindo-os, para administrá-los vivos, pois, dos cinco meninos, só dois sobrevieram no tempo. Os restantes foram-se, caídos um a um pelos sete palmos, o de três anos ofendido por urutu-cruzeiro; o de doze, estrepe no pé, que nem emplastro de língua-de-vaca com azeite-doce sujigou, morreu preto, feito o lombo luzidio de um negro no eito; o de dezoito, macambúzio, com as vísceras corroídas pela formicida. Entretanto, as meninas, que não serviam para nada, essas engordava e encaminhava para os casamentos, enjeitando-as logo que regravam, receio das desgraças vindouras que toda mulher carrega escondidas na intimidade das roupas, como aquela, cujo nome não se pronuncia, mas cujo infortúnio até a poeira dos atalhos sussurra. Tempos idos, um cometa varreu a região, nariz bem falante empombado num terno-gravata só-poeira, escandindo uma língua mais enrolada que as rugas da italianada antiga, sobraçando duas malas de papelão, de onde nasciam, mágicos, bingas e cestinhos-de-agulhas, retroses e botões, misses e véus, carretilhas e rolos-de-cabelo, uma porqueira de coisa miúda, e, confiado, impingia suas bobagens, O patrãozinho não tem dinheiro? Vai deixar as meninas aguadas? Ô patrãozinho!, molhando a ponta do lápis nos lábios garranchava encomendas numa caderneta cheia de orelhas e, quando não se dava mais por ele, alguém novidava, O cometa chegou!, O cometa chegou!, feriado nacional. O Pai amuletou-se no cabo da enxada mirando a fumaça que a chaminé assoprava, especulou pela mais-velha, Viu ela não? Desceu do milharal à sete-léguas, mandou aprontar os cavalos, espremeu a garrucha no cós da calça, amarrou a espingarda e um enxadão na sela e, com os dois agregados, desafiou os silvos da noite estradeira. Diz-que, verde em verde, atocaiou os renegados numa pensãozinha em Astolfo Dutra, mas o estrangeiro, saltando pela janela do quintal, fugiu a nado, atravessando o Rio Pomba e desaparecendo rumo ao Rio de Janeiro, enquanto a moça ele arrancou de dentro do quarto, arrastou pelos cabelos, enlaçou numa corda e saiu puxando, ele montado, ela, nem pio, a pé, olhos recurvos, até que na encruzilhada da cidade alcançou-o o delegado, dois soldados. O Pai, tirando o chapéu, Se mete não, seu doutor, é distúrbio meu, vale a pena não, e o homem, atemorizado, dirigindo-se à moça, questionou, Você é filha dele?, e ela, casmurra, balançou a cabeça positivamente, e o Micheletto velho, É uma chaga, doutor, É sina, e comandou o baio e os dois agregados, Vamos, minha gente. Na subida da Serra da Onça, apeou, meinho do dia, amarrou o cabresto num pé-de-pau e levou a madalena amarrada para o alto do pasto, sol a pique, desatou o nó, Vai, desgraçada, vai embora, vai pra bem longe, anda!, berrou, empurrando-a por entre touceiras de capim-gordura, ela, chorando, Pai, ele, apontando a espingarda, Vai, desgraçada, estou mandando, ela, Pai, me perdoa, Pai, ele, encostando o cano no seu rosto, Vai, desgraçada, estou mandando, ela, Pai, e pôs-se a correr, desesperada, quando então a explosão de um tiro suspendeu os barulhos da tarde e os dois empregados, assustados, viram o Pai retrocedendo calmo na direção do cavalo, pegando o enxadão, Façam uma cova bem funda, pros bichos não comerem, é carne minha, e botem uma cruzinha em cima, é carne minha, espero nas Três Vendas, e quando, lusco-fusco, lá aportaram, acharam bêbado o Micheletto velho, escorado na densa fumaça azulada do cigarro-de-palha. Fosse essa a única morte inscrita em sua testa, já estaria condenado para o todo e sempre, mas não, afundou o punhal no peito de um compadre litigante, que, apaniguando um negro tirador de lenha em terra sua, mostrou ele mesmo sua cobiça, e ainda outra, um meeiro fuinhoso, que enquizilou na partilha de uma ressoca, ele mais um filho graúdo, e vieram batendo cabeça estrada enfora até o rapaz pegar um fueiro e acertar o flanco direito do Pai, que, tirando a garrucha, mandou dois tiros no homem e um no moço, que sumiu, gotas escuras na poeirama.

Na tarde em que avistou, do alto do estreito caminhinho que, abandonando a estrada de chão que liga Rodeiro à Serra da Onça, levava àquele fundo de grotão, a casa seis-cômodos náufraga no fundo da perambeira, a ampulheta da vida de Chiara Bicio, a Micheletta velha, inverteu-se: ela começou a morrer. E esgotou-se hora a hora, a saúde murchando na sangria estúpida de partos, e o juízo escapando por entre as fímbrias das úmidas árvores que uivavam nas noites intermináveis. De começo, pensava, pelo menos a visitaria a família, mas, desatinou, o Pai rompeu com os Bicio, assenhorando-se de que parente nenhum viria rondar coisas suas, algemando-a nos cordões umbilicais de gravidezes sem-fim, largando-a desamparada, minguando num quarto de portas e janelas trameladas por fora, de onde saiu, trinta e cinco anos, rija, enrolada numa toalha-de-mesa, tão pássara que até o vento insistia em carinhá-la em sua derradeira viagem de carro-de-boi cantador até a Igreja de São Sebastião, quando, para comparecer decente à missa de corpo-presente, vestiram-na em madeira, gente havendo que desacreditava, É ela mesma?, É ela?, sussurrando na delonga do cemitério, vinte e um anos encafuada, Era doida, precisava deixar ela trancada, murmuravam todos, Ah, coitadinha... A mãe, os olhos de André iluminaram, manhã de sol, ele acocorado brincando de boizinho com melões-de-são-caetano atrás do quarto proibido, junto a um barranco de mais de dois metros de altura, o mundo entretido nos seus afazeres, um sibilo escoou da greta da janela, Psiu, Psiu, levantou-se assustado, Psiu, Psiu, e deparou-se com um olho enterrado na escuridão do "lado-de-dentro", Ê menino, um cadáver, a voz, Ê, menino, ar mastigado, Me ajuda eu, abre aqui, paralisado farejou, onde os irmãos e irmãs?, onde?, só aboios distantes, Êêêê, Ôôôô, Mexe aí não, menino, te sento a mão, te arrebento você!, o Pai, sobrerralhando, Abre não!, Abre, menino, me ajuda, forçou a tranca, É duro, Destramela a porta, então, menino, menino bonzinho, ciciou, Vai, menino bonzinho. Volteou a casa, atravessou a cozinha e a despensa, as mãozinhas giraram a madeira e um bafo pustuloso impregnou para sempre suas vestes, até na hora-má aquele cheiro pântano lhe causaria engulhos, e quando as vistas costumaram com o negror do cômodo, viu, sentada sobre o colchão-de-capim, berço de percevejos, a Louca, debruçada sobre si mesma, uma estufada barriga emoldurada por braços e pernas só-ossos sobrando de uma camisola ordinária, esdrúxulo bizorro, olheiras maquiando a escassa cabeleira lêndea, lençol pontilhado de pulgas esmagadas, sangue vazando para o chão irregular, Pega água pra mim, tomou a bilha, encheu a caneca, Tem um inferno me secando os dentros, mais não houve, a mão árida do Pai assobiou seu rosto, mais não houve. E quantos outros roxos no corpo de André ainda desenhariam aquelas mãos? Uma birra, uma cisma, um desgoverno, um escorregão, uma chuva, um desando, uma febre, um sumiço, um descontrole, uma desinteligência, tudo dava nos nervos do Micheletto velho, que, cego, usava o que estivesse à frente, acha, porrete, corrião, vara-de-marmelo, bambu, relho, chicote, cacumbu, até quando?, revoltava-se, até quando?

Ausentes braços-machos, o Pai levou a roça, enquanto pôde, com o adjutório feminil, embora lerdo o serviço das meninas, cozinhando e areando vasilha, carreando caldeirão-de-comida e café coado na hora, capinando e arando, aguando a horta e pajeando gado, ajeitando a casa e varrendo o terreiro, tirando leite e batendo manteiga, estalando fumo e tocando o macaco, colhendo milho e debulhando, lavando roupa e passando, embora, vira e mexe, tresandasse uma no altar de algum varão, menos um braço para puxar enxada, mas menos uma boca, noves fora nada, sem atentar que rendia-se às formigas-cabeçudas e cupins, às voçorocas e mata-pastos, aos pulgões e aos vermes, ao desmazelo que a tudo sufoca, onde o cercadinho de milho?, a plantaçãozinha de feijão?, onde o curralzinho?, o chiqueirinho?, onde o pastinho pras holandesas? Depois que enterraram a Louca, o Pai, besteiro, concordando na diáspora dos sobrantes, dispersos aos quatro-cantos Michelettos e Bicios, sitiou-se na fazendola, homiziando-se entre os animais, comendo, bebendo e dormindo com eles, bicho-ele-mesmo, conversas acaloradas em tardes agônicas, cadeiras espalhadas pelas calçadas de Rodeiro, pito de mães para exemplar criança espevitada, depois alusão, lenda, enfim nada, a barroca asselvajada, temida, submersa no silêncio primevo, encapsulada no esquecimento, suspensa na memória.

Orgulhoso, aos catorze anos André já conduzia seu nariz às roças fronteiras de Rodeiro, alugando a enxada em jornadas para os lados do Diamante e para os lados do Corgo do Sapo, nunca para as direções da Serra da Onça, frangote espichado, pernalta, reservado e cinza, de dia esculachado em-dentro do brim e da camisa-de-manga-comprida riscada, bota dura no pé, chapéu-de-palha esfiado, cigarro-sem-filtro margando o céu de boca, mas, depois, lavados pés, cara, braços e as partes, virava outro, iludido em cima da sua Göricke espelhos retrovisores e campainha trim-trim no guidão, punhos com franjas multicoloridas, limpa-raios nas rodas, pára-lamas e capa de selim com escudos do Botafogo, farol-de-dínamo, muda de roupa limpa, dentes brilhosos, cabelos finos assentados com Brylcreem, perfume ordinário no cangote, enfiando-se pelas cinco ruas, Tarde!, Tarde!, os dedos à aba respeitosos, sapeando uma rodinha de conversa-fiada, outra de truco apostado, outra de cachaça, outra de maledicência, outra de bobageira, assuntando solitário por baixadas e pastos, no Alto do Cruzeiro e no estradão só-pó, uma charrete, uma Rural, um cavaleiro, um de-a-pé, ninguém, a solidão dos desertos silenciosos, aflito por dentro, uma tremedeira na flor da pele, uma estranheza, nos fins de semana pousando na casa das irmãs casadas, almoço aqui, janta ali, cafezinho lá, ciganado, divertindo com as moças nos arrasta-pés, com os velhos na malha, com os iguais nas peladas, nas brigas de galo, nas rinhas de canários, com o irmão nas visitas, "para ver", às zinhas da Rua do Quiabo, pé direito na igreja, esquerdo no botequim, suspiroso, um zumbido nos ouvidos, um dia encorajar, aventurar-se em Ubá, diz-que cidade grande, de amplas modernidades, espiava o ônibus resfolegante na praça, Cataguases-Ubá, janelas pintadinhas de olhos, baixava a canga, iria ainda, deixa estar, arrumava emprego numa fábrica de móveis, ganhava dinheiro, punha um implante de dente-de-ouro na boca, e, depois sim, caçava uma noiva, casava, pois, a que outro fim se destina a vida? E perseguia essa toada, decidindo, terça-feira, ir embora na segunda, já arquitetando o desfazimento dos trens, A enxada negocio, E a bicicleta?, E a bicicleta?, e, não deparando com a solução, catapultava a viagem para uma data mais adiante, aí esbarrava na compromissama, uma partida do segundo-quadro do Spartano, o batizado de um sobrinho, a crisma de um afilhado, uma pescaria, um enterro, um olhar buquê-de-promessas, quando, ao acabar de fisgar um sabonete numa barraca-de-pescaria, na quermesse da festa junina da Igreja de São Sebastião, o irmão tocou seu ombro, chamando-o para um canto, André, esse é o Salvador, disse, apresentando um homem mais velho que ambos, trinta anos, talvez, espessa barba preta, apertou sua mão sem calos, Salvador, seu criado, falou, simpático, André, balbuciou, Seu criado, repetiu, encabulado, Vou precisar muito de vocês, afirmou, infiltrando-se na multidão aglutinada em frente ao palanque, onde o Santo Chiesa leiloava as prendas, um garrote o maior lance, ouviu, ao passar debaixo do alto-falante pendurado no alto da árvore, Pedro, Pedro, falou, sôfrego, acompanhando com dificuldades os passos do irmão no meio do povo, Pedro, o quê que esse Salvador fez que vai precisar tanto assim da gente?, e o irmão, tentando não perder de vista o homem, respondeu, apressado, Ele não fez nada ainda... Vai fazer...

 

[Do livro Mamma, son tanto felice]

 

 

Luiz Ruffato (Cataguases-MG, 1961). Escritor, autor de Eles eram muitos cavalos (2001, publicado também na Itália, França e Portugal), e a série Inferno provisório, em cinco volumes, dos quais os dois primeiros saíram em 2005 (Mamma, son tanto felice e O mundo inimigo) e o terceiro será lançado em outubro de 2006, Vista parcial da noite.