Maiakóvski
A Flauta-Vértebra

(Prólogo)

A todas vocês,
que eu amei e que eu amo,
ícones guardados num coração-caverna,
como quem num banquete ergue a taça e celebra,
repleto de versos levanto meu crânio.

Penso, mais de uma vez:
seria melhor talvez
pôr-me o ponto final de um balaço.
Em todo caso
eu
hoje vou dar meu concerto de adeus.

Memória!
Convoca aos salões do cérebro
um renque inumerável de amadas.
Verte o riso de pupila em pupila,
veste a noite de núpcias passadas.
De corpo a corpo verta a alegria.
Esta noite ficará na História.
Hoje executarei meus versos
na flauta de minhas próprias vértebras.

De "V" INTERNACIONAL

Eu
à poesia
só permito uma forma:
concisão,
precisão das fórmulas
matemáticas.
Às parlengas poéticas estou acostumado,
eu ainda falo versos e não fatos.
Porém
se eu falo
"A"
este "a"
é uma trombeta-alarma para a Humanidade.
Se eu falo
"B"
é uma nova bomba na batalha do homem.

Lílitchka! (Em Lugar de Uma Carta)

Fumo de tabaco rói o ar.
O quarto —
um capítulo do inferno de Krutchokônin.
Recorda —
atrás desta janela
pela primeira vez
apertei tuas mãos, atônito.
Hoje te sentas,
no coração — aço.
Um dia mais
e me expulsarás,
talvez com zanga.
No teu hall escuro longamente o braço,
trêmulo, se recusa a entrar na manga.
Sairei correndo,
lançarei meu corpo à rua.
Transtornado,
tornado
louco pelo desespero.
Não o consistas,
meu amor,
meu bem,
digamos até logo agora.
De qualquer forma
o meu amor
— duro fardo por certo —
pesará sobre ti
onde quer que te encontres.
Deixa que o fel da mágoa ressentida
num último grito estronde.
Quando um boi está morto de trabalho
ele se vai
e se deita na água fria.
Afora o teu amor
para mim
não há mar,
e a dor de teu amor nem a lágrima alivia.
Quando o elefante cansado quer repouso
ele jaz como um rei na areia ardente.
Afora o teu amor
para mim
não há sol,
e eu não sei ondes estás e com quem.
Se ela assim torturasse um poeta,
ele
trocaria a sua amada por dinheiro e glória,
mas a mim
nenhum som me importa
afora o som do teu nome que eu adoro.
E não me lançarei no abismo,
e não beberei veneno,
e não poderei apertar na têmpora o gatilho.
Afora
o teu olhar
nenhuma lâmina me atrai mais com seu brilho.
Amanhã esquecerás
que eu te pus num pedestal,
que incendiei de amor uma alma livre,
e os dias vãos — rodopiante carnaval —
dispersarão as folhas de meus livros...
Acaso as folhas secas destes versos
far-te-ão parar,
respiração opressa?

Deixa-me ao menos
arrelvar numa última carícia
teu passo que se apressa.

1 Condecoração da Rússa czarista, concedida unicamente por ato de bravura em campo de batalha

2 Ígor Sievieriânim (1887 - 1942) representava o chamado ego-futurismo, combatido por Maiakóvski e seus companheiros cubo-futuristas como uma espécie de futurismo de salão.

A Vocês

Vocês que vão de orgia em orgia, vocês
Que têm mornos bidês e W.C.s,
Não se envergonham ao ler os noticiários
Sobre a cruz de São Jorge1 nos diários?

Sabem vocês, inúteis, diletantes
Que só pensam encher a pança e o cofre,
Que talvez uma bomba neste instante
Arranca as pernas ao tenente Pietrov?...

E se ele, conduzido ao matadouro,
Pudesse vislumbrar, banhado em sangue,
Como vocês, lábios untados de gordura,
Lúbricos trauteiam Sievieriânim!2

Vocês, gozadores de fêmeas e de pratos,
Dar a vida por suas bacanais?
Mil vezes antes no bar às putas
Ficar servindo suco de ananás.

A Mãe e o Crepúsculo Morto pelos Alemães

Mães brancas nos caminhos negros
estendem-se — brocados convulsos sobre féretros.
O inimigo derrotado, e elas lançam seus ais:
"Fechem, fechem os olhos dos jornais!"

Uma carta.

Seja forte, mãe!
Fumaça.
Fumaça.
Mais
fumaça!
Tua voz que lamenta
distante?
Veja — o ar se pavimenta
de balas como pedras ribombantes!
Ma-m-mãe!
Arrastam agora o crepúsculo ferido.
Resistiu quando pôde,
duro,
troncudo,
mas de súbito, —
abalando as espáduas sólidas,
o pobre
caiu chorando no colo de Varsóvia.
Estrelas estridulam
em lenços de chita azul:
"Morreu,
morreu
o meu amado!"
E o olho turvo do novilúnio
fita de soslaio
o padioleiro soturno, de inertes punhos.
As aldeias lituanas acordam numa chusma:
embutida na sombra, firme sobre os cotos,
marejando de lágrimas igrejas de olhos de ouro,
Kovno decepa os dedos de suas ruas.
O crepúsculo urra
— sem pernas, sem braços: —
"Não é verdade!
Ainda sou capaz
de
retinindo as esporas numa doida mazurca
torcer as minhas felpas ruivas!"