as mãos de a. b. do rosário

 

 

um

 

devo fazer um muro no fundo

da casa, uma porta. arriscando

ao mesmo tempo outra

vez o lugar

 

 

dois

 

fita sobre madeirinha

rente ao cimento aos cacos

de vidro, armaria

uma aqui. um vagão de

espera, de volta, a mim no último

sopro de fôlego. nas vitrines

as garrafas de coca-cola as moedas

o plástico canetas velhas

isqueiros o penso (tudo sobra

do mundo se numa escolha: as

vassouras um rodo: material

disponível perto da mão)

 

 

três

 

num beijo dado mais

tarde a única pergunta, antes

numa profanação encontra

raspas de arte em restos

humanos —

objetos herdados aos

contornos  de confidência

incompleta —

para qual lado olhar para

qual lado olhar para qual lado

olhar

 

 

quatro

 

nunca desligou o sorriso

nem o rádio, feito cego o horizonte

através da mão outra vez outro

lime retira os pés os joelhos

qualquer sentido

de permanecer, apodrecimento

de cada palmo do corpo nesta

rama aqui onde não há sono onde

não se dorme. convir a Hosana

uma última coleção ao gesto:

mumificar ou colorir o céu

 

 

cinco

 

capacho serve para os dias

de chuva, tirar a lama da sola

dos sapatos na entrada da porta,

no batente bem no meio

os molambos

o anúncio:

 

no dia 22 de dezembro de 1938  Eu vim

 

assim entrar o quintal começar

a varrer vinte garrafas

vinte conteúdos 8034 butões

para palitó sobretudo

capa pereline

 

 

seis

 

a única pergunta, depois

quem seria deus para tanto luxo?

 

 

 

 

 

 

as fotografias de outro lugar

 

 

                                               pra júlia studart

 

 

na parede, entre duas janelas de vidro
e uma cortina azul. ali, restadas, quase
mortas, ao léu, três fotografias. sem
ver, nenhuma imagem do presente,
sempre de passagem, paradas, em
preto e branco o menor caco de
um lugar: os dela.

 

desvia o aceno de olá, tô indo: sem
retorno, remorso, mas aquilo que
torce inteiro ao abandono. de branco
e vermelho. e branca, sem voz: eu ainda
sempre moro aqui
, ouvimos alto. isentas,
mole-moles, las fotos (y la isla):
ricordo una vecchia città, rossa
di mura e turrita, arsa su la pianura
sterminata nell'agosto torrido, con il lontano
refrigerio di colline verdi e molli
sullo sfondo

 

um fio vermelho do colar nos
seios, o anel no polegar da mão
direita, a sandália nova: e ela não disse
mesmo do vermelho
. nem diria a dor no pé, no
pé esquerdo, pro lado pro mato sem
beira e sem mundo, meu amor.

 

 

[Ouça/veja este poema aqui]


 

 
 

 

esperando léo

 

 

as paredes são desta sala

mas podem ser da outra

também que fica aqui do

lado no meio deste ganzá

de gente sentada nuns

bancos de madeira e

chão que se move

 

o chão desta sala que

é também o mesmo chão

da sala que fica ali do lado

move rápido o que

ninguém ninguém ninguém

 

ninguém

 

é esta a sala que aqui e

ali como a outra se

escorre na linha reta do

soalho / numa nesga sem

espaço e quieto, não

se mova, não se mova

olhe até onde ?

onde não há, não havia

este jamais esta outra vez

 

tudo isto ainda é

desvinculação dos lados

deste corpo / do quanto

sim das linhas de

soalho às paredes desta

sala daquela outra ao lado

desta e uma areia branca

no chão a dançar outro

corpo nesta nesta

promessa sem volta

 

 

 

 

 

 

se ele disse hopper, ele disse

 

 

ele voltou a deitar no meio da

sacada. e ninguém se aproxima

tão rápido, ele ouve. menos 

o murmúrio, você disse, repetindo

que ele  sempre deita no meio

da sacada, outra vez. 

lembramos os desertos: lugar

de repetir o infinito. ele também

perdeu um amigo por

atropelamento. quase não respira,

ofega. o que nos prende a ele? o que

nos faz confiar nele? precisamos

voltar a arrumar os desertos, como

nos dissesse. ou encenasse um

desvio de hopper: o cão  deitado e

o sol. quem sabe a quem aqui, quem

sabe o que. a palavra a palavra

e a falta: lejos.

 

 

 

 

 

 

de polir com areia

 

 

a água dorme no fundo

da casa. mas tudo dorme

no fundo da casa. se uma

esfera de papéis

avulsos, o grampo do fundo

da esfera desfeito.

o exílio encostado ao lado

da janela, uma ou

duas árvores, alguém conversa

o tempo inteiro e fala alto

sobre desertos sem

qualidade —

uma linha muda, o que

se refaz.

 

 

 

 

 

 

aqui

 

 

reler o livro, insones,

fiar a justa do quem não sabe?, como

a espera

um poema que sempre: o desconforto

do velho, que bufa! e agora

humpf! e agora plaf!

 

trazer uma vez o lugar do íntimo, voltar

a imagem do sertão — porque é nela

a dor, a cisma — no diário, um

não ao perdido. o limite não troca

a quem olha dentro: onde

vinca o deserto onde o nome

se apaga

 

alguém continua mentindo o abismo        

 

de Antonio Sant'Elia, Cittá Nuova.

a cada uma a cada tempo. a linha

de um outro Vicente — o avô

índio — o vento e algum outro

Joaquim

 

tudo é buraco na paisagem    

 

aqui a Lapônia — Alvar Aalto — ou o centrinho

de Säynätsalo, à escavar a lama com

a mão, com o braço. com a vida e o

esbugalho do olho. com o que arranca

o ombro: onde vinca o deserto onde

o nome se apaga e também dói

 

o Acre, a nós, um longe

lá não se inscreve um livro, outra silhueta
 
 

 

 

 
 

 

meus amigos falam muito

 

 

Um: Lvóv.

Dois: O que disse?

Um: Lvóv!

Dois: Isso é um nome?

Um: Sim, um nome. Um lugar.

Dois: E onde?

Um: Ucrânia, acho.

Dois: Acha?

Um: ...

Três: Pode ser, é um nome. Parece rusga, mas é nome. Como se diz?

Dois: A paisagem está sem rasura, aqui. Desaparecendo. Olha, lá, branco branco branco.

         E amarelo.

Três: Não, não isso, de desaparecendo. Como se diz Lvóv?

Um: Até chegar, é isso? Escolha. Escolha também é um nome. Conheci uma cadela, uma

galgo, que chamava Escolha. Era antes, depois. Mas é nome. Ninguém sabia como chamar a cadela, a família inteira, em grito: Tuta, Jonas, Mirtes, Viela, vários outros. Não houve acordo. Ficou Escolha. Jonas era nome de cão.

Três: Pensei também: deserto. 

Dois: Como um nome?

Três: Deserto é um nome.

Um: Escolha!

       Parece um campo de algodão, a areia. Andar sobre o campo de algodão. Na areia funda.

       Este boiler, esta cangalha, esta paciência. Esta alegria, a do vento.

Três: Como se diz? Lvóv, é assim? É assim que se diz Lvóv?

Um: É! Acho que é.

Dois: Acha?

Um: ...

 

Um: Esta conversa! Os otomanos, os ibos, os boimés ... não entendo isso. Os quíchuas.

Dois: Dainichi!

Um: É um nome, um nome a Buda. Mas não.

Dois: Não. Não.

Três: L'viv! Lehmberg!

Um: Os prédios de lá?

Três: Não. Variações do nome, Lvóv. Acho.

Um: Acha?

Três: ...

 

Dois: Chintz!

Um: Com qual estampa?

Dois: Flores, sempre, coloridas e coloridas. E é do algodão: areia funda, andar sobre a areia

         funda. 

Um: Mas nome?

Dois: Não, como paisagem desaparecendo sob a areia funda, andar a areia funda.

Três: Como se diz? Chintz? É assim que se diz, Chintz?

Um: É. Certamente que é.

Três: Chintz!

         Mas não, não isso, de desaparecendo.

Um: Uma camada de tinta extra que rachando até outra coisa, o primeiro nome, sob, na tela,

       na parede. Às escusas.

Dois: Qual o primeiro nome?

Um: Castelo. É este o primeiro nome.

Dois: Sei. Mas isto sim, é.

Um: Escolha, uma escolha. E aí o que desaparece é absoluto.

       Fica aqui, um pouco.

Dois: Fico aqui, sim, um pouco.

Um: Vergonha de sugerir mais e mais e todo o tempo os olhos dos outros, até acreditar que ia       

 mostrar a carta. E na carta, toda a carta, do começo ao fim, uma lista de nomes.

Dois: Era o diário íntimo, os nomes.

Um: E sabia que eu sabia que não?

Dois: Aham!

Um: Acho.

Um/Dois: ...

 

Três: Azul. É uma cor, mas é nome. E ninguém é obrigado a estar sozinho, é?

Dois: Não. Acho que não. O nome de quem?

Três: Do bolor nas paredes. Mas é verde, acho.

Dois: Mas se visto por fora, qual?

Três: ...

Dois: Se melhor, por fora, qual?

Três: Talvez não consiga, pode falhar a camada de tinta na tela, na parede, sobre.

Um: É, pode falhar. Perder o nome.

Dois: Encoste aqui, suprimir o tempo é assim: escolha, encoste aqui, diga outro nome.

Um: Se tirar o casaco, a blusa de seda crua, os botões de madrepérola, os braços cruzados no

        peito e tudo ficando amarelo, parece ironia.

Dois: Alanos! Olha só, Alanos.

Três: Os da Sarmácia, do mar de Azov, do Cáucaso, os Alanos?

Um: Para que serviria ele? Este todo, no nome?

Três: A camiseta amarela no meio do campo amarelo, a areia funda, andar sob a areia funda.

         Viver mais, agora.

Um: É muito.

Dois: É muito!

Três: Desta alegria?

Um: De vento?

Dois: De vento.

Um: Não há de cair, nunca.

Dois: Não, não há.

Três: Nem de haver, há. Uma desalinha de vento.

Um: Um zurzo, ou de cegos.

Dois: Nascer dessa condição horizontal?

Um: Não. E nem que, nem que.

Dois: Castelo e vento. Castelo, nenhum vento.

Um: Escolha, escolha, escolhas, encoste aqui, o peito.

Três: Como seria daqui, da porta, o campo de areia. De areia funda. De musgo branco.
 
 
 
(imagens©sena | ldazw | leszczu)
 

 

 

Manoel Ricardo de Lima (Parnaíba-PI, 1970). Professor de Literatura Portuguesa da Universidade Federal de Santa Catarina — UFSC, onde também faz doutorado em Teoria da Literatura, Textualidades Contemporâneas, a partir de Joaquim Cardozo e Ruy Belo. Publicou Embrulho (Rio de Janeiro: 7Letras, 2000); Falas inacabadas — objetos e um poema, com a artista visual Elida Tessler (Rio Grande do Sul: Tomo Editorial, 2000); Entre percurso e vanguarda — alguma poesia de P. Leminski (São Paulo: Annablume, 2002), As mãos (Rio de Janeiro: 7Letras, 2003) e Outra manhã, uma plaqueta, com Anibal Cristobo e Eduardo Frota (Ceará: Dragão do Mar, 2006). Do comitê editorial da revista de poesia Inimigo Rumor (Cosac Naify/7Letras) e da revista Ficções (7Letras). É colaborador como articulista de alguns jornais e revistas, e mantém uma coluna de crítica no jornal O Povo (Fortaleza-CE) desde 1997. Mais sobre Manoel Ricardo de Lima em Mafuá — Revista de Literatura, La Insignia, O Povo.