A GAROTA DO ANDAR DE CIMA

 

Sua calça jeans estalava

Quando ela se sentava.

 

Resultado da dilatação

De suas formas

No espaço curvo.

 

Sua voz também era um fenômeno,

Bem como seus olhos.

 

Até seus pés impressionavam,

Embora fossem a última glória

Dos fracos.

 

Um dia dois caras brigaram

Por causa de suas axilas...

 

Eles estão mortos.

Ela viva.

 

 

 

 

 

ELEGIA

 

Teu rosto posto no meu...

 

Que incrível sonho o teu,

Fundi-los.

 

Que incrível!

 

Agora que te foste,

E só eu vivo, sinto-o...

 

 

 

 

 

ÁLBUM DE FAMÍLIA

 

Aos oito anos, ela pediu ao pai

Livros. E nem sabia ler ainda.

 

Aos doze, chorava pelos cantos,

Envolta num lençol encardido.

 

Aos quinze, discutiram muito:

Forte sério violento,

Como num acidente de trânsito.

 

Aos dezesseis, descobriu fotografias

De uma mulher que não sua mãe

E jurou ferrar o pai...

 

Aos dezoito,

Era ela quem estava na cama,

No lugar da mãe.

 

 

 

 

 

RECOMPENSAS

 

Foi ontem

Que aprendi a andar...

 

Hoje mesmo,

Pela manhã,

Que comecei a escrever...

 

Agora, à tarde,

O primeiro livro.

 

E mais tarde,

À noite,

O travo azedo

De ter sido.

 

 

 

 

 

NOTURNO DA PEQUENA OLARIA

 

Abandonada ao nada

À beira da estrada

Sob a noite de cada

A pequena fábrica de tijolos sonha

Que foi um dia tamanha.

 

 

 

 

 

DISSOLUÇÃO

 

Muitas vezes morri nos sábados.

A morte mais dorida, a sós, à caída do sol.

 

Era simples e infeliz.

Era jovem e já sangrava.

 

Onde eu estava? Em mim.

E então perdi-me...

 

Agora nem o espelho me devolve.

Fui-me — como no céu as nuvens...

 

 

 

 

 

POEMA SOLTO NO ESCURO  

 

O lado vazio da cama

É a presença humana

Que mais atemoriza...

 

 

 

 

 

INSCRIÇÃO NO CIMENTO FRESCO

 

Viver é

descansar o pé

onde se quer.

 

 

 

 

 

CAIS  

 

Minha mão entre tuas pernas, descansando,

De toda uma atribulada vida poética...

 

 

 

[Poemas do livro Recordações de andar exausto (Aboio Livre, 2005)]

 

 

 

 

 

ENCANTOS DO SOL

 

Nossa cidade, litorânea, tinha três mil habitantes no inverno e trinta mil no verão. A situação era tão grave, que faltavam água, luz, leite, feijão e drops Dulcora... Não raro, íamos às cidades próximas, fazer compras, eu e meu pai. Verdadeiros milagres: a paisagem do trem, uma policromia nova, gente, agitação, meu pai só para mim. Minha mãe nunca nos acompanhava, ficava cuidando do meu irmão, que ainda era de braço, um ratinho com dois olhos enormes.

Meu pai tinha uma ocupação que me agradava muito e que me parecia justa, adequada à sua natureza: trabalhava só quando dava na telha e o tempo permitia. Às vezes, ficava em casa lendo, ouvindo música, brincando com o gato. Outras vezes, não ia trabalhar porque estava chovendo. Ele possuía um barco e transportava turistas para as ilhas. Dois hotéis de luxo recebiam a carga. No verão isso desovava dinheiro; no inverno, quase nada. Então meu pai em casa, com a gente. E dificuldades, que ele resolvia com idas semanais à capital. O trem se distanciando nas tardes nubladas. Um ponto minúsculo, preto, sob o céu sem luz. Eu muito triste. De medo que meu pai morresse ou sumisse ou nos abandonasse. Mas achei um jeito para que ele sobrevivesse: colocava em sua carteira um bilhete: papai não nos deixe, papai não morra, papai eu te amo. Eu acreditava que isso era motivo suficiente para ele continuar conosco, e vivo. Deus querendo ou não. E ele jamais me tocou senão por afeto, ainda que eu quisesse mais. Homem bom. Na capital, acertava a venda de terrenos e casas em toda a costa de Lus. Comissões mais gordas que o esperado e que animavam o nosso estômago. Mamãe de bem conosco, rindo e brincando. Meu pai lendo tranqüilo na sala de estar.

Se houve um verão que nunca esqueci foi aquele em que achei Simone. Nem mais claro, nem mais cheio, nem mais quente. Mais doce, porém. Mais cruel. Nesse aspecto foi diferente de todos os outros, de antes e depois. Uma bicicleta laranja, ano 69, e uma garota em cima dela: short, blusa, rosto redondo, nariz pequeno, cabelo castanho escorrido que lhe caía nos olhos. Eu jamais havia olhando assim para uma garota. Sua pele, levemente bronzeada, misturava-se ao tom laranja da bicicleta. Uma massa compacta que eu percebia à distância. Sua presença me roubava tudo, a paisagem, o assunto, o dia. As noites também. De manhã só queria vê-la, sem demora.

Meu erro foi me desabafar com Lúcio. Ele riu e disse que ela se chamava Simone. Cimone e siúme. E até me levou à porta de sua casa. E vi a bicicleta parada no quintal, à espera de suas coxas, do meio quente de suas pernas. E Lúcio explicou que a conhecera na casa do Mauro. Mauro, um pateta que dava em cima de mim e me agarrava no corredor da escola. E ali ficamos, do outro lado da rua, a espreitar aquela bicicleta antiga e laranja.

"Posso te apresentar", disse.

"Não!", quase gritei.

Talvez tivesse sido melhor.

Durante boa parte do verão, Lúcio me acompanhou àquelas vigílias em frente à casa de Simone. Ficava comigo, sentado na calçada, paciente.

"Seus olhos são negros", ele disse, um dia.

Olhei para ele, perturbada.

"Como cê sabe?"

"É fácil. Mesmo de muito longe se pode ver. Fossem de outra cor, a gente não veria".

Fazia sentido. Por isso prestei bem atenção quando ela atravessou o portão com a bicicleta. Negros talvez, talvez não. Só ilusão, sugestão. Então arrisquei:

"Não são negros".

"São", ele retrucou.

"Não são", insisti.

"São!"

Mas aí ele olhou de novo, viu de novo, antes que ela pulasse na bicicleta e partisse, ou apenas ponderou sobre a situação, e concordou comigo:

"Não, não são negros".

Mas eram. Subimos em nossas bicicletas e começamos a rodar. Lentamente. O silêncio nos acompanhou, foi entre nós como um muro. Ao nos separarmos, perto de minha casa, ele me deu um seco até-logo. Mais nada. E não combinamos coisa alguma, nem para depois nem para o dia seguinte. Entrei em casa com a cabeça hesitante entre o travesseiro e a água. Queria afastar a qualquer custo aquele ar de desilusão e impasse, de rompimento, de fenda. Ou pelo sono ou pelo banho. Em ambos: longe de mim mesma.

Por algum tempo, não sei quanto, não voltei a rever Lúcio. Minhas vigílias continuavam, em frente ao portão, do outro lado da rua. Eu sofria. Com a indiferença de Simone e com a ausência de meu único amigo. Um mistério: o seu sumiço. Outro mistério: o silêncio daquele dia, o último em que nos vimos. Passado um tempo, fui à sua casa. Sua irmã mais velha disse que ele estava doente. E não me deixou entrar. Que eu voltasse no sábado, já estaria melhor. Simone continuava a mesma: subia na bicicleta e partia. E continuava sem me ver. Não me veria nunca. Algumas vezes cruzei com ela pelo caminho, no bairro mesmo ou em outros lugares. E nenhuma diferença. Só sisudez. Encantos do sol.

Uma semana inteira sumi. E tanto que nem me lembrei da visita a Lúcio. Nesse período trabalhei com meu pai, no barco. Metia-me entre os olhares e os motores. Às vezes só de biquíni. Homens me comendo. Gratificante, sensação de poder. O poder da mulher, embora eu não passasse de uma menina. Muito bom, me ergueu, e quase me esqueci de Simone. Mas não de Lúcio. De volta, fui procurá-lo. Do cais mesmo, rumei de bicicleta para a sua casa. Para a minha surpresa, vi Simone saindo, correndo em direção à bicicleta laranja e deixando que ela estourasse no chão antes de montar. Se ao menos eu tivesse passado em casa... Mas não passei e só soube do que acontecera ali, naquele momento, diante do meu amor.

"Ei!", gritei para ela. Com uma coragem que não imaginava possuir e que só anos depois refinei.

Ela se voltou e quase deixou cair, de novo, a bicicleta. Estava chorando. De seus lindos olhos negros escorriam dois rios. Ela mordeu o lábio, virou o rosto e se foi, sem me dizer nada. Entrei para ver Lúcio e lhe perguntar se amávamos a mesma garota. Mas ele estava morto. Dois mortos em mim.

 

(Publicado originalmente no Correio da Bahia, em 24/09/2006)

 

 

 

 

 

 

A MOÇA RUIVA DE SCHIELE

 

Por algum tempo, aquilo chegou a irritar Agnes. Durante anos eles a convidaram para ir à casa deles ver o quadro. Um quadro de Egon Schiele, cuja moça (uma ruiva em trajes quase andrajosos) se parecia muito com ela. Pois Agnes nem sabia quem fora aquele pintor. A que pátria pertencera, que idioma falava, por que pintava. Nem mesmo a época em que vivera. Embora, de fato, o nome soasse bem: Egon Schiele.

A bem da verdade, as dúvidas que mantinha em relação ao pintor não eram diferentes das que a uniam ao casal. Quando se conheceram? Havia alguns anos. Em que circunstâncias? Literárias. Por que continuavam se vendo? Por acaso: apenas porque, assim como os espelhos refletem qualquer coisa que esteja à sua frente, pessoas encontram outras pelos caminhos. Gostavam-se? Provavelmente não: gostar excede qualquer razão e prolonga os verões. Mesmo assim viam-se com freqüência e conversavam, às vezes animadamente. Agnes era sozinha, mas nem sempre estava sozinha. Ainda assim eles não agiam de outro modo. Tratavam-na da mesma forma, gentil e educada, e lançavam ao seu parceiro de então olhares antes compassivos que reprovadores. Mas ela sabia que mais cedo ou mais tarde diriam: você não foi ver o quadro da moça que se parece com você; vá, você vai adorar; vamos ficar na cidade este fim de semana; escolha: pode ser no sábado ou no domingo, tanto faz, você decide; estaremos em casa, apareça. E voltavam a lhe fornecer o endereço. E voltavam a detalhá-lo, precisando tal ponto do bairro, a rua, a padaria além da qual ficava o prédio...

E vários meses se passavam até que voltassem a se reencontrar. E então o casal era o mesmo. E estava ali, naquele lançamento de livro ou em tal exposição de arte, no MAM. Ou talvez naquele concerto erudito e jamais esperado, que era como um óvni em praça pública. E voltavam a reiterar o convite. A comentar o quadro. A lhe dizer que fosse à casa deles. Que a moça se parecia muito com ela. Que a moça era bonita como ela, com um ar sensual, mas invulgar, e que o mais surpreendente de tudo era que suas roupas, embora presentes, pareciam não estar ali, tamanha a sensualidade. E então Agnes ficava apreensiva, ainda mais reticente, levemente constrangida e, claro, desconfiada. Sempre houve no mundo esses desejos, sempre houve no mundo essas vontades, tais insinuações, para as quais se encontram os mais ardilosos pretextos. Como aquele suposto quadro, que Agnes nem sequer tinha certeza de que existia. De um pintor à parte, abortado dos grandes influxos da pintura do Ocidente.

Houve um tempo em que ela passou a fugir do casal. A evitar os lugares e eventos aos quais os dois pudessem comparecer. Então praticamente não saía de casa, exceto para trabalhar e ir ao supermercado. Afinal, se os conhecera num evento artístico, e levando-se em conta que atualmente tudo era arte ("uma definição de idiotas"), ela os poderia encontrar em qualquer lugar. Houve igualmente um tempo em que Agnes, resignada, passou a lhes oferecer carona (eles nunca a recusavam, talvez esperançosos de que ela enfim subisse para ver o quadro) e inadvertidamente os deixava na porta de casa. Portanto, já conhecia o bairro, a rua, a tal padaria, o prédio, e poderia chegar ao casal e ao quadro, até mesmo de olhos fechados. Nem tanto, claro. Força de expressão, linguagem figurada. Mas, de certo modo, fizera aquilo com o propósito de avançar um pouco e lhes dar esperança, sem assumir necessariamente qualquer compromisso, nem ao menos de fundo psicológico. Reconhecia, no entanto, que superara um obstáculo, avançara um degrau.

Pegou-se um dia escarafunchando a internet em busca de informações sobre o pintor. Leu sobre sua vida, sua obra, as dificuldades que enfrentara, a relação com os parentes, com os amigos, a projeção de sua pintura, como desenvolvera seu estilo e como, pouco a pouco, seus trabalhos se impuseram e ganharam projeção. Nos vários museus virtuais que percorreu pôde conhecer e admirar quadros tão belos e sedutores quanto estranhos e ousados. Era de fato um pintor a um só tempo magnânimo e destemido. Ou você o amava ou odiava. Curiosamente ela o amou. Desde o início.

Agora vivia a procurar o casal nos eventos a que comparecia (e foram muitos). E até no cinema, onde jamais os encontrara, ainda mais cinemas de shopping centers, evitados por pessoas criteriosas (Agnes achava que o casal era muito criterioso). E nas praias, embora intuísse que eles jamais fossem à praia, que eram noctívagos, de se divertir à noite e dormir de dia, numa antecipação funcional a um sombrio futuro de providenciais inversões. Suposições apenas, pois sabia muito pouco a respeito do casal, que, no momento (ela tinha de reconhecer), estava sumido. Temeu que tivessem morrido, num acidente, porquanto ainda eram jovens e aparentavam saúde, e que o quadro tivesse sido recolhido a algum museu ou a uma galeria, das poucas existentes na cidade. Não, isso era impossível. Não era um quadro original, mas uma simples reprodução. Só então lhe ocorreu que não achara, nos museus virtuais, o mencionado quadro da garota que se parecia com ela...

Compreendeu, num fim de tarde, que não os veria nunca mais. Nem talvez ao quadro. Que perdera uma oportunidade. Que desprezara uma sorte. E por quê? Por nada. Por desconfiança, antipatia gratuita, receio. Por impaciência, falta de tempo, um cansaço que não era verdade, um incômodo que, embora genuíno, poderia facilmente ser compensado. Ou ela já não era adulta o suficiente para cuidar de si própria? Era, mas preferira a fuga ao envolvimento, a indiferença à educação. Agora sentia o peso da distância e o assomo ingrato da curiosidade, crescente como uma onda vindo.

Então, numa noite, voltando de uma apresentação teatral, pareceu-lhe que avistara a mulher, mas sozinha, sem o marido. Saía de uma farmácia da Graça e andava apressada, a olhar para um lado e outro. Agnes parou o carro e se acercou da mulher.

"Oh, é você!", a outra disse, sorridente e aliviada. O marido morrera meses antes, e ela estava de partida para a Europa. "O quadro? Bem, o vendemos. Era inevitável, a doença dele comeu todos os nossos recursos".

"Era original então?", Agnes riu, o olhar radiante.

"Claro que era! O que pensava? Jamais tivemos reproduções em nossa casa".

"E onde está agora?"

"Longe, infelizmente. Na Suíça ou na Holanda, não sei bem. Um grande colecionador o arrematou. Uma obra menor de Schiele, mas muito bonita, e a moça se parecia com você... Bem, vou indo. Até breve".

"Até. E minhas condolências", Agnes conseguiu ajuntar, apesar do bolo que lhe apertava o peito.

A mulher não parou, nem se voltou. Seguiu em frente como se não tivesse ouvido coisa alguma.

"Sim, isso, minhas condolências", repetiu para si mesma.

 

(Publicado originalmente no Correio da Bahia, em 11/02/2007)

 

 

 

(imagens ©egon schiele)

 

 

 

 

 

Mayrant Gallo (Salvador-BA, 1962). É poeta e contista. Publicou O inédito de Kafka (CosacNaify, 2003) e Dizer adeus (K, 2005), entre outros livros. Mora em Salvador, onde colabora semanalmente com o jornal Correio da Bahia, com contos, crônicas e ensaios. Edita o blogue Contramão.