poema

 

o potengi me naufraga:
eis-me devorado
por seus crepúsculos
seus mangues
suas mulheres
rosas dos ventos
e outros alentos
memória que me faz igapó
como se potengi eu fora o rio
barra nova ou seridó
entre a ribeira e a redinha
o itans e o poço de santana
a aurora e o espanto
noite sol extremoz e luar
nas madrugadas do amanhã
com as putas do wunder-bar
e as cores silenciosas da manhã

 

 

 

 

antipoema da gota serena

 

com as palavras
        borogodó
                 califon
        descontramantelo     rapariga
                    bangalafumenga           imbuança
        cruviana                balandrau      xibiquititaquinha
                baitola                 mandureba
             infuluído              champorrião
        resmelengo

 

e mais

 

uma garrafa de malhada vermelha
um crepúsculo de caicó
um poema de chico doido
um potengy de natal
um dengo de uma camila qualquer
um texto de jomard muniz de brito
uma saudade braba do sertão

 

construiremos o antipoema da gota serena:
                temperado em azeite de dendê
                cozido em temperatura alta durante 69 segundos,
                estará pronto para ser servido.
                o poema
                deverá ser saboreado em panela de barro
                ao som de um xaxado arretado.

 

 

 


poema

 

eis o poeMa aloprado
para melhor vesti-lo
é preciso devorar
                        o país de são saruê
           o romance do pavão misterioso
para melhor bebê-lo
é preciso conhecer
                       um crepúsculo de caicó
                     um poema de chico doido
para melhor sonhá-lo
é preciso desenhar
                  a palavra bangalafumenga
                        a madrugada cruviana
para melhor rasgá-lo
é preciso alvorecer
                  com o poema/processo
                 com o poema possessssso

 

 

 


isadora, aos 14 anos, hoje

 

Filha, omundoestádifícil, eu sei.
O teu anti-americanismo é justo
e compreensível, eu sei.
Há crianças morrendo de fome:
na África e nas Américas.
Também na Ásia
e nos bairros da periferia.
Vi as tuas lágrimas de revolta
quando os jornais
anunciaram os bilhões de dólares
que as guerras contra a humanidade
consumiram em 2003.
Por quê?, por quê?, por quê?,
indagavas.
Mas as minhas explicações
de nada adiantavam. Eu sei, eu sei.
Os pássaros azuis da madrugada
sonham com os teus sonhos
rebeldes.
E choram.
Eu sei:
há a poesia.
Mas para que serve a poesia
diante da miséria humana e social?
Há a beleza da vida.
Mas para que serve a beleza da vida
diante das impunidades e dos assassínios em massa?
Eu sei, eu sei:
omundoestámaiscrueldoquenunca,
e só tenho algumas auroras
prateadas pranteadas
para te oferecer de presente.

 

 

 


recomeço

 

                       Sei do sonho:

procuro tua sombra na

       penumbra

             da memória líquida

e nada encontro.

                A lua não é vermelha

                                não é violeta

                        não é verdecoisa

                                       mas

                         os loucos da madrugada

anunciam as primeiras águas da manhã.

                                                Sei do sonho?

                                        Tua sombra pagã

                              é um corpo que me foge

             das mãos cansadas de espantos

        e abismos.

               A árvore sonolenta

                              anoitece os meus delírios.

               Não te vejo na claridade

                                       do silêncio.

                               O sol é um pássaro ferido

                       na solidão

              de meus gestos        de meus gritos

                                       e a hora cruviana

                               é uma graviola

                                        grávida

                        de aromas e carnes

         pronta para ser saboreada.

                     Sei.

                Não foi um sonho.

 Como encontrar,

                        então,

                          na

                arquitetura fluvial

            de meus quereres,

                as linhas

         e curvas

de teu corpo barrento-canela?

                               Ah, não! Ah, sim!

                                       Existe

                                         um

                                     grande sertão

                  nas veredas da minha paixão.

E eu sei do sonho.

        Procuro tua sombra líquida

                              e nada encontro.              

                                     A lua não é verdeluã

                                               mas

                                       tua sombra pagã

                                  anoitece os meus delírios.

                                              Como encontrar,

                                       sol e solidão,

                            a arquitetura colonial

                           de teu corpo fluvial?

                         Como encontrar,

                      no silêncio de meus gritos,

             tua sombra teus aromas tuas carnes?

                                               Sim,

                                               não.

                                               Tua memória vermelha

                                               é uma sombra grávida

                                               de morenezas e reentrâncias

                                               azuis.

                                     Docemente azuis.

 

                                                      Barrentas e azuis.

 

 

 


poema/processo 1303

 

meu poema preferido
conterá
um van gogh renascentista
um miró barroco
um bosch cubanacan
uma aurora enlouquecida
um pixinguinha frevolento
um luiz gonzaga rocknauta
um tom zé bolerolero
uma tempestade expressionista
pois depois
minha poesia preferida
conterá
um poema de moysés sesyom
misturado com laranjas
e acácias
e mais nada
e tudo o mais

 

 

 


a praça

 

joão da paraíba oferece a alguém,
com
muito
amor
e carinho,
"lábios que beijei", na voz de orlando silva

 

 

 


a estrada

 

Sinto o primeiro impacto. De imediato, sou dominado por inesperada quentura nas costas. Mas consigo correr. E corro. Um segundo impacto me atinge. Preciso correr, mais ainda. Um rio me aguarda, à esquerda. Mergulho nele. Suas águas me envolvem com certa doçura. Mas de onde surgira aquele rio, em plena Glória, entre a Lapa e o Catete? Não importa; o que importa é que estou a salvo. O calor aumenta. Ouço os sinos da igreja mais próxima. Uma voz de rapariga me chama. Ambrósio, Ambrósio, cuidado com a ponte, não se deixe enforcar. O fogo me queima por dentro. Não sei nadar, lembro-me de repente. O que está acontecendo, então? Só sei que não existe mais qualquer sinal de rio; estou numa estrada de tijolos amarelos, familiar cena de filme antigo. Caminho com passos lentos; o calor que me domina é intenso. Pressinto que minhas roupas estão encarnadas. E encarnado é o meu cordão, em disputa contra o cordão azul. Sou uma criança apaixonada pela rainha do Encarnado na cidade da minha infância. Carlitos, o Gordo e o Magro me fazem companhia, sorrindo. Durango Kid aproxima-se: Não se preocupe, estou aqui para defendê-lo dos bandidos. Estou aqui para salvá-lo das balas perdidas. Confie em mim. Olho para o meu avô, com sua ternura sem fim. No caminhão da feira, cortando o cheiro da manhã carregada de mangas e esperanças, contamos os jumentos à beira da estrada, a mesma estrada de tijolos amarelos. À esquerda e à direita vemos jumentos tristes e honestos. São dezenas, são centenas deles. Estranho, parecem pássaros que não sabem voar. Quem ganhará a aposta? O feirante bêbado de auroras garantindo que à direita do veículo, beirando a estrada, maior seria o número daqueles pobres e inevitáveis animais? Ou vencerá o outro? O outro não sou eu; eu sou aquele que precisa mergulhar no Poço de Santana, no final da estrada. Mas o Poço está longe, muito longe. Nunca fiz um filho. Nunca plantei uma árvore. Nunca escrevi um livro. Nunca entrei num túnel tão comprido. E as coisas estão ficando cada vez mais nebulosas. Além, já noite, do alto do coreto da praça, Luiz Gonzaga acena para mim. Asa branca, assum preto, légua tirana. Baião-de-dois. Baião-de-três. Baião-de-cinco. O império submarino. Flash Gordon no Planeta Mongo. A volta do Aranha-Negra. Sansão e Dalila. Nunca houve uma mulher como Gilda. Os melhores anos de nossas vidas. Belinda. O barco das ilusões. Amar foi minha ruína. Dois palermas em Oxford. Paraíso proibido. Tarzan e as amazonas. O império das ilusões. O Aranha-Negra no Planeta Mongo. Sansão, Gilda, Belinda e Dalila. Nunca houve uma mulher como Tarzan. Estou cansado. O chão da Glória tem gosto de sangue e sertão. Preciso dormir.

 

Moacy Cirne: Segundo o horóscopo chinês, sou caba da peste, parente de Lampião e Maria Bonita: nasci em São José da Jardinense Bonita, ao lado de Caicó, Campina Grande, Olinda, Currais Novos, Galinhos e Martins, antes do descobrimento da Terra de Santa Cruz, pelo poeta Bocage, companheiro de Manuel Bandeira nos cabarés da velha Ribeira, em Natal, capital potengíaca. Compadre de vários gentios tapuias, lutei contra os bandeirantes do Sul Maravilha que nos invadiram em 1600 e lá vai fumaça. Mergulhei no Poço de Santana e fui sair no Rio Amazonas, entre uma talagada e outra de Malhada Vermelha, a cachaça preferida de Celso Japiassu, Nei Leandro e Luís da Câmara Cascudo. Conheci Marte, Júpiter e São Saruê nos anos 10 do século passado. Escrevi Os Lusíadas, falsamente atribuído a um tal de Luiz Vaz de Camões, em apenas 10 dias e 10 noites. Depois, tornei-me pescador de auroras azuis e palavras seridolentes. Hoje, pai de duas filhas e casado com uma natalense, não sou amigo do rei, mas sou amigo de muita gente boa. (Autobiografia com farinha e rapadura). Moacy Cirne vive no Rio de Janeiro. Em 1967, participou da fundação do poema/processo. Publicou seu primeiro livro em 1970: A explosão criativa dos quadrinhos. Ingressou na Universidade Federal Fluminense, no Departamento de Comunicação Social, em 1971. Publicou, ainda, entre outros livros de poesia, Objetos verbais (1979), Cinema Pax (1983), Docemente experimental (1988), Qualquer tudo (1993), Continua na próxima (1994) e Rio Vermelho (1998). Desde 1986, edita o Balaio, folha porreta. Mais no seu Balaio Vermelho.