A que horas você sai do escritório?

Às cinco

E entra na faculdade?

Seis e meia, sete.

Pode chegar um pouquinho atrasada hoje?

Um pouquinho dá

Eu também não posso demorar, tenho um jantar chato às oito com a delegação comercial alemã...

O senhor é ocupado, entendo.

Senhor, não, me chama Paulo.

Está bem, Paulo

Até que enfim, hem? Arranjou uma folguinha pra mim

Acontece que eu tenho namorado e...

Aquele que não casa?

É.

Minha cara, uma moça tão inteligente, fica aí perdendo tempo. Tem que pensar na carreira, enfim nós cuidaremos disso, sempre fui um bom amigo, não fui? Mas você também precisa colaborar...

Eu sei

Está bem, deixa pra lá, sabe o endereço?

Sei

Então em princípio às cinco e meia, se você chegar primeiro me espera no corredor. Farei o possível pra não atrasar, estou louco pra te ver.

É...até lá, um abraço.

Outro, outro.

Ela desligou o telefone, pensando eufemismos como aquela frase do Júlio César, alea jacta est. Distraía-se pensando em coisas como não estar preparada, quer dizer, a roupa de baixo, precisaria de um banho, antes. Para quê? Fazer das tripas, coração. Fazer a coisa o mais rápido possível (um a mais, um a menos, este ao menos traria mais vantagens mas isso posteriormente), o que muda um pouco a configuração.

Profissão: secretária em ascensão. Havia lido não sei onde que a secretária era uma instituição chauvinista, donde que sua vida se tornou um deserto humilhante, por isso agora, quando não mentia, racionalizava para os colegas da faculdade, aliás todos intelectuais e artistas, que era só um trampo, um lance provisório, que trabalhar numa instituição sem fins lucrativos era como não ter patrão, etc., etc.

Funcionária — parecia uma cuspida. Mesmo com fome, frio e seis meses de aluguel atrasado, ainda assim teria que se desculpar, suportar aqueles olhares de heróico desprezo. Eles imaginam que todo esse meu papo de arte e cultura não passa de frescura, bile recolhida, que mais? disritmia verbal, catarse (ora, ora), hobby que cultivo nas horas livres enquanto me empenho na brilhante carreira de superyuppie executiva, que merda.

Fechou os olhos. Lembrou aquele velho nu: terrível! Pálido e baixinho, um composto de flacidez miúda e pelancas giratórias. Atrás dos óculos, olhos azuis de cobiça recorrente e o cheiro de pão amanhecido com cerveja morna. Se ao menos ele fumasse. Não. Pior. Lembrou o cheiro que impregnara o quarto do seu avô após a morte. Definhara de pleura, catarro e fumo de palha. A pele escamara: uma trilha de neve fina e esbranquiçada que começava dentro dos chinelos ao pé da cama, atravessava o corredor, passava sob a porta do banheiro e se extinguia no vaso. Batia-se os lençóis pela janela e no quintal nevava calidamente: meu avô levado pelo vento.

Distraía-se pensando, sentada nos degraus do prédio na Praça Roosevelt, bunda geladíssima, sobressaltando-se com o zumbido contínuo do elevador, fiuuuuuuuuuuu, números vermelhos, 1, 2, 3, fiummmmmmm, 2, 1, T, ainda não era. Ruídos ocasionais, passos, bater de portas faziam-na levantar-se num pulo e apertar o botão, representando (mal) a confusa estudante enganada de prédio e andar. Servilmente o elevador surgira por duas vezes, escancarando-se, vazio e cirúrgico. Então apertava o térreo mandando-o lá para baixo, buscar esse velho que não chega, saco. Morrendo de medo do namorado, seu ver-da-dei-ro amor. E se ele descobre? Remorsos? Por aquele que não casa? Engraçado como essa frase banaliza o melodrama mexicano: tudo é relativo, darling. Lembrou: título de um velho filme com Julie Christie, piranha que acabou princesa nas capas da revista Elle. Mas nem piranha, nem Darling, nem princesa, nem revista Elle, nem remorsos: só o velho senador chegando, fiuuuuuuuuuu, às seis e meia.

         Pequeno, distinto, o velho senador de distintivo na lapela, sutil condecoração pregada no irrepreensível terno cinza grafite de Versace? Hugo Boss? Valentino?  Naturalmente para impressionar a delegação comercial, sua kumpf também, eu sei, eu sei.

Examinava consternado meus sapatos de kraunt (que ironia) pesados, afivelados, de plataforma, última moda? Dos paraplégicos?  Examinava meus cabelos desgrenhados, calça jeans & collant de balé... Meu Deus, nem parece uma secretária, minha filha, mas, afinal, qual é sua idade? Muito jovem, realmente, você mudou, há dois anos era mais discreta, deve ser a faculdade, enfiando maluquices na tua cabecinha.

Decepcionado, abria a porta que parecia de cofre ou presídio: sala e kitchinete, litro de Martini pela metade na pia, três copos emborcados, geladeira desligada.  No banheiro, caixa de papel Yes, lata de talco vazia e um pente. Sofá-cama cor de fundo de lata de lixo, a meia-luz avermelhada, o poster da coelhinha Playboy descolando na altura do rabo, persianas cerradas  de pó. O indispensável. Pra lá de ótimo. E eu. E esse velho. Não é nada bobo. Está confuso. Pressente algo errado. Eu. Mas ele disfarça.

Não deve ter-lhe ocorrido pensar em Lolita de Nabocov e muito menos esta espécie de Lolita invertida que se configura no presente momento, comigo no papel  de Humbert-Lolito observando o senador de biquíni gingando na minha frente, enquanto tomo meu scotch de chinelo e roupão, na chaise-longue de um jardim mexicano.

Ele pressente uma catástrofe, salvo melhor juízo de Vossa Senhoria. Mas como? Confusão. Ele disfarça, agindo como em circunstâncias ditas normais. Traz os copos lavados e o Martini, falando do trabalho (tira a gravata) das sessões no Senado (desabotoa o paletó) da política no Planalto (as abotoaduras) de Fulano e Sicrano (tira a cinta) inserindo-me generosamente em projetos futuros de grande progresso, afagando meu rosto, deslizando uns dedos furtivos até brecar (ops!) em seios (os meus) sem sutiã.

Por detrás do lenço-rápido-perfumado-vermelho-inspeção-conjugal, solta um leve arrotinho: Martini, naturalmente, com o estômago vazio...Dentes pontiagudos mordem meus lábios, mordo os dele de volta, às raias do exagero. Depressa. Ele parte para a ignorância: tesão! (ótimo, agora é rápido) Em pé, na frente dele, devo parecer o monte Everest em chamas. Talvez, um banquinho. Mulherão. Não. Homenzinho. Não. Figurão. Rápido!

Vou despindo o collant, abaixando a meia-calça, tão prática, o mais-que-perfeito-abaixa-pau-mundial, ele ri (de acordo, não levanta mesmo) pelas estatísticas estéticas abaixo o fetichismo das ligas e rendas negras e Vetivér, viva o suor! Ele ri amarelo (essas idéias loucas, né?) e na obrigação (que diabo!) despe-se, dobrando o finíssimo terno Versace-Boss-Valentino com infinitos cuidados enquanto vigio, meio de pileque e divertida, seu traseiro caído, indefeso, empenhado em não amassar a delegação comercial alemã, a sua reputação. De repente, alça-se na ponta dos pés (que diabo!) espremendo-se contra mim, a respiração estertórea, e insiste agora deitado e debatendo-se por entre enormes colunas de basalto (minhas coxas morenas e grossas) avançando em meio a um dédalo de emoções inúteis, forcejando arquejante contra o negramente eriçado altar de sacrifícios. Bruscamente se levanta, dispara até o banheiro onde se tranca.

         Fumando e descrevendo espirais com a brasa do cigarro, ao longe ouço-o vomitar. Enfim o barco chegara a salvo na praia e, como eu esperava, deserta de salvação. Suas marés há muito haviam recolhido todos os verdes consigo, o que os idiotas chamam esperança.

         Voltou: uma toalha envolvia-lhe o cadáver avermelhado à luz dessa morgue maluca. Tinha sido o Martini, o estômago vazio, a preocupação, a delegação alemã, que horas são? Já? Passou depressa, desculpe, benzinho, você vai compreender, mulher vivida, pois é, essas coisas acontecem nas melhores, não, não precisa, sonrisal, melhorando, obrigado, vá se vestindo, prefere ir só? então não insisto, muito conhecido, minha mulher é fogo, adeusinho, olha, aquele negócio, o lugar já é seu, sai no Diário Oficial depois de amanhã, tudo acertado, isso, o resto no fim do mês, ora, ora, dá um beijinho no titio, vai, filha, vai.

Na faculdade, ligo para o namorado:

Oi, bem

Oi

Estou ligando pra dizer que te amo.

É? Onde você está?

Na faculdade 

Muito bem, estuda direitinho

Diz que me ama também

Amo, mas não fica ligando só pra encher o saco, estou assistindo um filme na televisão

Que filme?

Puta filmão, A Noite dos Generais, depois te conto, mas não interrompe mais, poxa

Ok, então um beijo

Tá, tchau.

       

       Aquele que não casa? Suspiro, esmagando o cigarro:  na chuva, fiquei entre os pingos. Em suspensão. Remorsos? Bobagem. Essas caras não têm um pingo de sensibilidade.

 

Da antologia 18 Contos de Corrupção (São Paulo: Ateliê Editorial, 2003)

 

(imagem ©maria beatriz soares)

 

 

 

Márcia Denser é solteira, paulistana de quatro gerações, geminiana dupla de 23 de maio, escritora e pesquisadora de literatura brasileira contemporânea. Pós-graduada em Literatura e Semiótica pela PUC-SP, trabalha há dez anos no Idart-Centro Cultural São Paulo como pesquisadora responsável pela área de literatura brasileira contemporânea. Entrou no jornalismo pela porta da literatura, quando aos 24  passou a assinar a coluna Nova Lê Livros, editora Abril. É jornalista, publicitária e editora, com passagens pela Folha de São Paulo, Interview, Vogue, Salles Interamericana de Publicidade. Tem obras traduzidas para o alemão, holandês e inglês, publicadas na Alemanha, Suiça, Holanda e Estados Unidos. Incluída entre os cem contistas brasileiros do século, é conhecida como a escritora favorita do Paulo Francis e musa dark da literatura brasileira.
 
Obras principais
Caim (romance, a sair pela W11 em 2005); Diana Caçadora/Tango Fantasma (contos eróticos, reedição 2003, Ateliê Editorial); Toda Prosa (inéditos e dispersos, 2002); Os Apóstolos (organização, antologia, 2002); O Animal dos Motéis (novela e contos, 1981), Exercícios para o Pecado (novelas, 1984); Diana Caçadora (1986); A Ponte das Estrelas (romance, 1990);
Cronologia da Literatura em São Paulo 75/95 (ensaio, 1996).
 
Organizadora e co-autora das antologias de contos eróticos femininos Muito Prazer (1982) e O Prazer É Todo Meu (1984) — publicada na Alemanha e Suiça com o título de Tigerin und Leopard (Amman, Zurique, 1988 e Rowoholt Verlag, Suiça, 1992), reeditada em 2003 pela Unionsverlag.

Participou de dezenas de antologias no Brasil e exterior.