©sguimas
 

 

 

 
 

 

 

 

E o palhaço, o que é?



Ele é muito bacana sabe me enche de flor perfume camisola essas coisas e me leva também num restaurante lá na boca que eu nem sei o nome mas é lugar fino porque o garçom pergunta o tempo todo se a gente tá gostando da comida e é claro eu respondo que gosto mas não gosto é nada daqueles bichos dentro das cascas coisa mais nojenta que é aquilo vomito tudo no banheiro e depois desconto no vinho tinto e é aí que fico zonza converso alto e ele então me enche a cara de tapa diz que eu preciso aprender modos de mulher fina mãe é quem tem razão eu devia era dar graças a Deus de ter arrumado um homem bacana mas sabe como é dói sangra machuca só que depois ele fica tão arrependido mas tão arrependido que eu acabo pedindo desculpa de tanta pena que eu sinto coitado ele é muito bom não tem intenção de me bater é tudo culpa do nervoso de ver o nome no jornal com os jornalistas todos xingando ele de drogado corrupto assassino onde já se viu logo ele que todo ano coloca fantasia e dá brinquedo pra meninada lá do morro e é uma coisa linda de se ver todos os meninos gritando: OLHA O DEPUTADO! OLHA O DEPUTADO VESTIDO DE PALHAÇO! E o senhor acha que um homem feito ele que a criançada gosta tanto me bate de propósito? Eu é que sempre fui burra larguei cedo da escola e ele só quer me ensinar isso tudo é inveja desses políticos que inventam essas mentiras todas pra tirar ele de banda mas ele ganha e isto aqui nem é nada ele já pediu desculpa não quero dar queixa não ele é bom me enche de flor e um dia vai ser presidente e aí o senhor vai ver doutor o povo todo gritando de alegria: OLHA O PALHAÇO! OLHA O PALHAÇO VESTIDO DE PRESIDENTE!




No escurinho do cinema



Aos sábados brigávamos ele queria Bergman eu queria dançar mas o sueco sempre levava a melhor mais pela minha paixão recém-encapsulada do que para adquirir cultura cinéfila porque eu gostava mesmo era do Travolta e então  íamos ao cinema e por três intermináveis horas ele se mantinha estático movendo delicadamente os lábios no acompanhamento febril de cada corte de cena como se nada existisse além das imagens escandalosamente lúgubres daquela tela enorme e eu que nem era besta nem nada arriscava um carinho na  orelha ao que ele espantava como se fosse mosca num ato reflexo de coçar o  queixo mas o que é que o queixo tinha a ver com a orelha? eu ficava muito sem graça e em outra desastrada tentativa enfiava-lhe entre as coxas as minhas mãos sem vergonhas e novamente ele pedia-me silêncio com os olhos apertando-me fortemente os dedos numa fala muda "ei, sua aculturada, pres'tenção no filme" e eu abria a boca achando tudo aquilo muito cacete que afinal de contas cinema era lugar de amasso e beijo de língua oras eu só tinha de-zes-se-te anos e queria namorar coisa que fazíamos depois da fita quando ele me levava para a república onde morava com meia dúzia de comunistas e justiça seja feita ele era um diabo na cama e naqueles momentos quem dava as cartas era eu enquanto ele tratava de desordenar todos os meus pontos g a minha pele os meus cabelos a minha vida e eu já nem era mais eu virava puta gueixa professora mulher de bombeiro carmen amélia cecília e um dia ele sumiu e nunca mais voltou chorei por cinco noites seis dias e no sétimo fui a uma discoteca o tempo passou eu madurei namorei noivei casei pari dois filhos virei mulher de empresário e ano passado coloquei silicone nos peitos mas meu marido continua trepando regularmente duas vezes ao mês e nos outros dorme o sono dos inocentes enquanto eu assisto sozinha à alguma fita do Bergman e imagino-me aos gritos enquanto ele me come entre sussurros.




Asperezas



1


O menino aproximou-se do carro bacana como quem pede desculpas e a mulher ao volante, com cara de nojo, pisou fundo no acelerador e seguiu para casa. Sem ânimo, passou o resto do dia se entupindo de bombom, uísque e remorso. 





2


— Pode lavrar o flagrante, Pereira! 

— Seu Delegado, eu juro, foi necessidade.

— Doutor, está aqui a lista do que foi apreendido com ele: um frango, quatro latas de sardinha, um pacote de arroz e...

— Me dá essa lista! Hum... É só?

— Seu Delegado, pelo amor de Deus...

— Doutor, é furto famélico?

— Pereira lavra logo esse flagrante e mete no xadrez!

— Doutor...

— Não discute comigo, Pereira! Lavra logo essa porra, que eu tô atrasado pro jantar. Maria Sílvia preparou rabada com polenta.





3


A noite tinha sido ruim e ela estava morta de frio e fome. Reparou que do outro lado da rua um homem a olhava. Arriscou um "Tás a fim? Serviço completo, sem beijo na boca, por 50 contos". "Pega aí 60 contos. Mas é sem camisinha". "Sem camisinha?". "Pegar ou largar. Sem camisinha". Aflita, abriu a bolsa, não tinha nada, nem moeda pra média do dia seguinte. "Tem hotel ali na rua de trás". "Vamos logo, hoje tô com tudo". "Não esquece: sem beijo na boca".

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Mariza Lourenço. Escritora e advogada, vive em Campinas/SP. Participa de algumas coletâneas, entre elas em Dedo de moça — uma antologia das escritoras suicidas (2009), A poesia é para comer (2011) e Amar, verbo atemporal (2012). É coeditora da Germina — Revista de Literatura & Arte e editora de arte das Escritoras Suicidas e do site do escritor Rodrigo de Souza Leão.