*

 

Sopro e sono

no cais do corpo.

Relógios úmidos.

Sístole

diástole

contagem regressiva:

 

explosão esquiva

dispersão e números

vapor no prazer

que é véspera.

 

Amor

sem ponteiros.

 

 

 

 

 

 

*

 

Ser mínima.

 

Cortar cabelo

unha pele

mas sem o cálculo da cutícula.

 

Despir-me de tudo

o que não dói.

 

Ultrapassar toda a carne

e roer osso —

canina —

roer o rabo.

 

Roer, ainda,

os próprios dentes

agudos

rentes

 

 

 

 

 

 

*

 

Sempre o mesmo movimento

sobre o lago de espelho

 

a mesma nota

de cor

a volta a esmo

ao redor de si

o mesmo si

lá sol -

giro agudo

corpo extremo.

 

São os teus dedos

que põem a bailarina

de pé

ao som do mínimo

ruído

do talvez.

 

A bailarina, não vês.

Os teus sentidos só sabem

o ventre da engrenagem.

 

Sob a túnica, a caixa

já desliza uma falha

no compasso bate-estaca

o sangue

urgente bate

escapa

e a bailarina

roda roda          

 

O coração,

à corda

caixa de música

contra o espelho

caixa preta

ao avesso.

 

E a bailarina, esticada

roda e roda

e não anseia

senão

o fundo da caixa

uma noite aveludada.

A tampa fechada.

 

 
 
 

 

 

*

 

Rasgos

no ponto-cheio

do meu corpo

contra teu corpo

alinhavado.

Tecido suturado

ponto-cego do desejo.

 

Agora, desabotoa-me a pele

atravessa-me.

 

Veste-me teu corpo

de seda e silêncio.

 

 

 

 

 

 

*

 

e, agora,

aguardar a floração

(senão

em cada galho

           [ e galha

do pulmão;

nos quatro vácuos

do coração)

músculo

e s t i r a d o

em toda poça que se volve

até destilar a seiva escura

no poço fundo,

oco

     [ a cada inspiração;

e, na volta, um soco

(ou sopro, saída

de emergência)

aorta

que destoa das filhas:

carótidas

poluídas

nas vagas do pensamento.

 

A flor ecoa no peito

murcha

escoa —

e tudo

que cala

expira:

o prazo, a válvula,

a galha que não pare

asas;

e tudo que dói, fibrila

                      purifica —

 senão:

 

 

 

 

 

 

*

 

O peixe que ontem

sugava transparências

amanheceu morto de excesso.

A morte é leve

e pesa a superfície.

 

Encheu-se o aquário

de vazios

e rastros esparsos sobre o vidro

confundem memória e silêncio.

 

O peixe que ontem

mastigava a ausência

destilou-me a espera.

A vida breve

dispensa a superfície.

 

Encheram-se de vazios       

os meus restos —

iscas dispersas entre as águas

confetes que não me alimentam.

 

O peixe que ontem

distraía o absurdo

enfeitou amor e luto.

 

A vida é febre   

e ferve, e agora

é recriar o aquário oculto

limpar vidro, excesso

líquido.

 

Limpar o peixe: comê-lo;

e transbordar

o vazio.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Boneca de porcelana

souvenir de viagem —

branca

falsa —

como a memória.

 

E, cada lágrima,

plástica,

sorriso de babushka —

presa

na primeira casca (ou casa)

curvas exaustas

 

(um não gordo

que se debruça sobre o sono;

tamborilando).

 

O corpo, um fio

para a lanterna de papel japonês.

 

Se o nós, desatado

o fio volta

ao cordel de um deus.

 

A cabeça roda

rola, flutua

                [ até o teto da sala

num céu de palavras:

algumas mortas

almas penadas

outras, as águas —

e o teto, não há.

 

Basta um furo

e a lanterna

se destoa de si

                      

e fica ali,

à-toa

na estante —

longe dos jornais

dos diagnósticos;

costurando pórticos

               [ e um minúsculo deus.

 

 


Boneca

Incômoda

réquiem de uma lembrança —          

na gaveta do amanhã.

 

Trançado opaco

de peso de papel.

 

Babushka oclusa

recorte                              

borda de algum segredo

no quase destampar-se —

 

um mínimo totem

a cada encaixe —

e o susto nenhum.

 

O que há de vida,

quinquilharias

azul

cadente,

talvez;

aquém do que se lê.

 

Além do que se

quer.

 

 

 

 

 

 

*

 

No quarto, a luz desliza

afoga a menina

no olhar de labirintos.

Na curva

o canto

abriga

flores de meia fina —

beleza sem perguntas.

A cama, a escuta

(sussurros da penumbra)

a noite em abandono.

 

Há sombra nos contornos

há busca por estrelas

quebrar parede e teto

(destroços do concreto)

redescobrir o outro

disparo amparo guerra.

 

E entre lume e treva

amar quem observa.

 

Ser lago.

E ser terra.

 

 

 

 

 

 

*

 

A noite

liberta sombras

e seu passeio invisível.

 

Estrelas adormecidas

cintilam um desfile

lasso.

 

A lua

irônica ri

com seu escalpo roubado.

 

A noite é dela

o céu é dela

sua luz falsa

brilha

e arde.

 

 

 

 

 

 

*

 

Alma

entre grades

de ossos.

 

Tremor

refratado

nas vértebras.

 

Garras rasgando

a garganta

estreita.

 

 

 

 

 

 

*

 

Olhos abertos

no quarto escuro.

Esqueletos de lâmpadas

indagam-me.

O interruptor

grita na treva;

desvela

a luz possível

no invisível.

 

 

 

 

 

 

*

 

A um átimo

do amo-te

temo-te.

 

A um istmo

do íntimo

mente.

 

De cor, somente

o silêncio:

continente.

 

E a linguagem,

cortejo

(périplo).

 

Mas o amor:

arquipélago.

 

 

 

(imagens ©ryan mc vay & stockbyte)

 

 

 
 

 

 

Mônica de Aquino (Belo Horizonte-MG, 1979). Sístole, seu primeiro livro, foi lançado em junho de 2005 pela editora carioca Bem-te-vi, e faz parte da coleção Canto do Bem-te-vi. No mesmo ano, foi convidada para integrar a antologia O achamento de Portugal, organizada pelo poeta Wilmar Silva e publicada pela Anome em parceria com a Fundação Camões. Participou, também, da antologia catalã Panamericana, poetas americanas nascidas a partir de 1976, organizada pelo poeta espanhol Joan Navarro e publicada na revista eletrônica sèrieAlfa em 2006. Já teve poemas publicados em páginas eletrônicas do Brasil e do exterior e em periódicos como o Suplemento Literário de Minas Gerais e a revista Poesia Sempre, da Biblioteca Nacional. Participou de vários eventos apresentando seus poemas, dentre eles o Terças Poéticas, realizado pela Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais, a Primavera dos Livros em São Paulo e a Feira do Livro de Porto Alegre. Vive em Belo Horizonte.