Antigamente, escreva. Antigamente. Havia mais candura, escreva. Antigamente havia mais candura. Não pare, não pense. Antigamente havia mais candura no manuseio do papel, havia mais respeito, continue, mais atenção, mais cuidado no momento de escrever, as palavras. Solte seus dedos. As palavras. Não os detenha, não os prenda, não os. Eram mais respeitadas. Temia-se o que um erro poderia acarretar. Se a intenção carregava harmonia em seus contornos gerais, exalando, porém, deseqüilíbrios tênues, quase imperceptíveis, seus efeitos. Seus efeitos. Não pare, não exatamente os amplificavam, como hoje os amplificam e agravam, mas os repassavam em sua exata medida, em suas mesmas proporções. Mas as palavras, escreva, as palavras, fiéis aos seus próprios desígnios, mais do que aos planos de quem. As palavras, de quem. Deixe-se levar. Nunca se deixaram subjugar, não completamente, nem mesmo hoje, a despeito dos esforços sempre crescentes de usá-las contra sua essência, contra sua vontade. Ao contrário de hoje, contra si mesmas. As palavras. Não vieram para ocultar, mas para revelar. As palavras, as palavras não vieram para. Simplesmente vieram. Usá-las para. É violá-las. Prossiga. Se vieram para. Não foi para servir, mas para serem servidas. O que deveriam ocultar, revelam. O que deveriam revelar, ocultam. E quando viradas completamente contra si mesmas. Para que não digam, mesmo com o universo a dizer. Ou para que digam, mesmo sem nada a dizer. Morrem, inexpressivas. Seja em sua textura. Seja em sua concatenação. Seja em seu ritmo. As palavras acabam sempre por revelar o que se intentava esconder, o que se planejava, não hesite, o que se desejava esconder. Entre no fluxo, deixe-se levar. O que se pretendia esconder. É sempre transmitido. De uma forma. Ou de outra. Sempre passado. Sempre absorvido, continue, ouvido tão conscientemente quanto conscientemente é dito, basta a quem as recebe ter silêncio em seu peito, basta ter um espaço neutro e vazio para que o tênue se faça nítido. Até mais claro para si do que para quem, do que para quem. Antigamente, escreva. Antigamente. Mais cheias de silêncio, as pessoas. Tanto as que falavam como as que ouviam, as pessoas não diziam mais do que era preciso, apenas o suficiente, apenas. Havia mais atenção, mais cuidado no trato com o papel, apenas o suficiente para o resto ser desenvolvido, não havia palavras sem nada escuro, sem nada subjetivo, sem nada úmido, a suavidade, antes a regra. E a sinceridade, antes espontânea e direta. Sobrevivem agora quase exclusivamente nas cartas. Ao contrário de hoje, ao contrário. Escreva. Antigamente, só havia cartas. Ao contrário de hoje, antigamente. Não, não consigo. Sinta a dança dos significados. Não consigo mais. Então, apenas registre suas pegadas. Hoje. Não consigo, meus dedos. Meus dedos. Estão rígidos. Não quero interfeir, não quero colocar nada que venha de mim. Mas é com o que vem de você que é preciso dialogar, com o que está em você e não deveria estar. Mas. Continue. Não consigo, tenho medo. Estão rígidos. Interferir, não se preocupe. O fluxo do sentido precisa das suas palavras para se exprimir. Agora se solte. Agora se entregue. Desmanche a represa, deixe a água passar. Abra a porta, deixe o vento entrar. Simplesmente deixe. Tenho medo. Largue as pedras, deixe-se levar pela correnteza. Solte os galhos, deixe-se voar. As pedras e os galhos, suas opiniões e suas intenções, largue tudo, largue de si mesmo, largue da sua identidade, largue do hoje, largue. Destranque a porta. Mas. Não enrijeça seus dedos, vou por eles fluir. Mas. Onde a interferência é necessária, não pode ser evitada. Embora seja verdade que muitos signos podem ser usados com o mesmo significado. E que não há nenhuma razão para escolher um em detrimento de outro. Também é verdade que os signos têm seus matizes, que uma convergência superficial pode mascarar uma divergência profunda. Mas algum precisa ser usado se o discurso não quiser continuar parado. Que o leque de possibilidades não paralise e sim facilite. As palavras se combinam apenas como querem. Apenas como podem. E só querem o que podem. E tudo o que podem, querem. Mas. Largue do hoje. Largue do ontem. Largue da diferença entre o hoje e o ontem. Antigamente é apenas um modo de falar que deveria, um modo mais suave, menos autoritário, que narra ao invés de mandar. Deveria haver mais candura no trato com o papel, mais respeito, mais cuidado. Se as palavras o tornassem mais leve, não mais pesado. Se as palavras. Não mais. Pesado. Continue. Mais. Pesado. O obstáculo se fortalecerá se você quiser continuar no mesmo caminho. Mas se você ceder, como a água cede e continua. Perceberá que o obstáculo sinalizava outro caminho. É assim que a linguagem, que a linguagem. Deixe-se levar, deixe-se fisgar. Se as palavras o tornassem mais leve, não mais pesado. Não mais. Pesado. É como se o não tivesse me dito não, me inibindo, como se o pesado houvesse tornado tudo mais pesado, bloqueando meu caminho. Na verdade, não é como se. Continue. Realmente me disse não, realmente pesou. Porque não é preciso mostrar o caminho errado para mostrar o certo, empurrar para baixo um prato da balança para erguer o outro. Empurrar o direito para levantar o esquerdo. Deixe que o peso afunde por si mesmo. É a leveza do sim que deve erguê-lo, não o peso da sua negação, prossiga, negar para afirmar. Negar para afirmar, não é apenas desnecessário. É também um obstáculo à própria afirmação. Um obstáculo, deixe-se fisgar. Não é possível afirmar plenamente ao mesmo tempo negando. O peso do prato que desce neutraliza a leveza do prato que sobe. O sim é apagado pelo não que tenta reforçá-lo. Continue. E assim também não é preciso dizer não ao não, nem tampouco não ao não ao não. O não ao não amplifica o não, não o sim. Havendo um obstáculo, um não, um peso. A melhor forma de restaurar o equilíbrio não é adicionando mais erros, mas não mais os adicionando, prossiga, o que bem pode acontecer quando a intenção não é apenas de corrigi-lo, mas também de estampá-lo e humilhá-lo, como se fosse mais pesado do que realmente é. Mais errado do que realmente é. Antigamente havia mais compaixão, mais candura. Mais leveza. Já se considerava o peso suficientemente pesado. Não era preciso realçá-lo. Não era preciso. Era preciso. Preciso continuar. Então, continue. Difícil, está cada vez mais difícil. Mas não há nada a fazer para que seja difícil. É só deixar. Mas. Deixe, é simples. Solte os dedos, eu os conduzirei. Não faça nada. Apenas desfaça, apenas se desfaça de si mesmo. Mas é difícil. Sem dúvida, é difícil não fazer nada. Até mais do que difícil, parece até impossível. Fazer nada, um paradoxo. Basta fazê-lo para que não seja mais nada. Não consigo. Não fazer nada. Uma tarefa simples. Contudo, irrealizável. Por ser simples demais. Como ver a escuridão. Ou o ar. Ou permanecer imóvel num planeta em movimento. O que preciso fazer, o que é preciso fazer é parar de pensar. Não de ver, não de sentir. Não de experimentar. Apenas de pensar. Para ampliar o experimentar. Simplesmente deixe. Apenas de objetar. Antigamente, escreva, as palavras o tornavam mais leve, tire o pesado, quem quisesse escrever uma carta precisaria confeccionar sua própria tinta, bem como a folha que a receberia. Não havia quem as vendesse ou quem as fornecesse em troca de serviços. Ou de outras mercadorias. Tire o erro, não pare. Não pense. As palavras que seriam impressas na carta nadavam na tinta. Desde o momento em que recebia o pigmento, até o momento em que fervia, prossiga, tudo o que não precisava ser realmente escrito. Tudo o que era inessencial. Era inessencial. E coagulava e se precipitava ao fundo, jamais chegando ao papel. Mas quem quisesse escrever uma carta, precisava não apenas preparar a tinta. Como também o papel. Como também o papel, continue. Não havia assim papel sem desejo. Mais do que desejo, não havia papel sem necessidade. A vontade de escrever precisava ser imensa, irreprimível. Para que se iniciasse todo o processo que desembocaria na tinta, no papel e finalmente na carta. Não havia papel sem destino, nem palavras que sobrassem. Não havia desperdício de tinta, nem de fibra. Não havia frases mais longas do que o seu sentido. Do que o seu sentido, prossiga, solte os galhos, tenho medo, então agarre-se às folhas, solte as pedras, agarre-se à água. A carta já começava a ser escrita durante a preparação do papel. E o papel, já nascendo com sentido. As palavras que depois receberia, já as conhecia. Já as tinha ouvido nos dedos que o fizeram. O que havia de ser nele posto, era o que havia de ser. Não era de modo algum estranho, agarre-se à água, encontrava o papel como a um velho amigo. Os pensamentos que seriam deitados na carta. Além de pensados. E repensados. Eram também sentidos. A forma da mensagem, o seu tom. Mesclavam-se ao seu conteúdo. Num todo único. A forma de dizer, já dizia. Mesmo que ao fim o papel não fosse utilizado, mesmo que ao longo de sua feitura absorvesse todo o sentido que o havia trazido ao mundo. E permanecesse em branco. Muitos sentimentos. Muitos pensamentos o teriam atravessado. Muitas idéias, muitas sensações o teriam acalentado. Em sua confecção. De modo que agora o perpassavam. E só precisavam de um pouco de contraste para se tornarem perfeitamente visíveis, o contraste da tinta. Mesmo que ao fim o papel não fosse utilizado, sua ausência de palavras, longe de refletir uma falta do que dizer, refletia antes um ter a dizer primevo e oceânico, que havia considerado todas as afirmações. E as suas negações. Investigado todas as possibilidades, sem negligenciar suas impossibilidades. Saboreado os versos e os reversos, um dizer que havia contemplado todas as alternativas, inclusive a de não ter contemplado todas, um dizer pronto a ouvir, que deseja, na verdade, mais ouvir do que dizer, um dizer sereno, um dizer pleno. Em seu silêncio. Regado a sentido. Não tinha nada de inexpressivo. Algo já se estampava na sua calma, na sua neutralidade, embora ainda de maneira indecifrável. Como um som distante. Seu silêncio não era apagado, mas vivo, não era um silêncio vazio, mas latejante. Como um murmúrio quase audível. Esperando apenas um pouco de atenção para ser compreendido. Antigamente, escreva. Antigamente, o papel. As palavras quase emergiam de sua superfície, como uma brisa. Antes mesmo de serem escritas. Antes mesmo. Não consigo. Como não consegue, veja o que já fez, basta continuar. Mas é justamente o que já fiz que me assusta, consegui mais do que esperava. E só consegui o que consegui por não ter notado que estava conseguindo. Mas agora já acordei. Pedras, galhos. Como fui capaz de fazê-lo. Como, não sei. Apenas sei que não consigo mais. Então, pule no abismo. Mesmo sem saber voar. Se você não sabe, se você não consegue. Faça sem saber, faça sem conseguir. Faça sem fazer. Solte-se, voe. Antigamente havia mais a dizer. Do que era dito. O escrever. Flua. Era um transbordar, não um esforço para tirar água de um poço vazio. Não premedite, não pense. Pressinta. Havia mais conteúdo do que expressão, tudo era tão trabalhado, tão revolvido antes de ser escrito. Que não se precisava dizer muito. Antigamente se usava com mais atenção o papel, tão difícil de fazer que era. Tão árduo o processo, tanto o tempo que levava, que ninguém ousava desperdiçá-lo. Desfiava-se cuidadosamente a madeira, as fibras eram postas de molho. A água sujava, era trocada. Assim que se turvava, era trocada de novo e mais uma vez se turvava. Até que um dia sob sua transparência se descobria as fibras abraçadas no fundo. Então se deixava a água evaporar. E a folha secar. Não se fazia papel em grandes quantidades, pois levava tempo. E como levava tempo, o sentido inicial que havia posto as engrenagens em movimento se fundia ao material. E se ampliava e se adensava. O que de início parecia demandar apenas uma folha. No fim do processo, quando estava pronta, tinha se multiplicado a ponto de serem necessárias cinco, dez, vinte, até cem folhas. Mas só havia uma. Na qual tudo, condensado, encontrava o seu lugar. Nada faltava, nada sobrava. Nenhuma palavra soava arbitrária, escrita ao acaso. Embora fossem todas escritas com a mais leve espontaneidade, sem nenhum planejamento. Se não pareciam arbitrárias, é porque se ligavam de maneira lógica e necessária. De maneira não pensada, não refletida, não premeditada, atavam-se umas às outras. Como os elos de uma corrente. Com a ajuda da tinta, consciente de tudo o que havia sentido enquanto fervia, as letras se desenhavam umas após as outras como uma melodia. Cada palavra trazia em seus contornos uma frase e cada frase um parágrafo. Numa só folha, um livro. Muito era dito, pouco era escrito. A primeira palavra soava perfeita, a única que poderia ter iniciado a carta. E a segunda parecia sua sucessora natural. Que deveria então ser seguida exatamente pela terceira, depois pela quarta e por todas as demais, cada uma só tornando mais evidente o que a anterior dizia, o que o papel já trazia. Quem conseguisse deixar que a primeira letra ecoasse suficientemente fundo dentro de si. Quem conseguisse se despojar inteiramente de seu ser a ponto de se tornar apenas um vazio. Uma porta aberta. Um leito de rio. Escutaria a carta inteira correr por suas veias. Tão logo lesse a primeria letra. E tão nitidamente que seria capaz de reescrevê-la.
 
 
 
 
 
Murilo Seabra é de Brasília.