1.

Naquele dia, a água perdeu o fundo e a margem se afastou. Da vertigem, restou-lhe apenas os cabelos, o inequívoco futuro anterior do que terá se tornado vida; da queda, a miragem, um espectro entre folhas de mangueira; do cadáver, uma ausência, a catacrese do impensável; do vôo, a levitação, o sonho do movimento correspondendo ao desejo; da velocidade, apenas a flor sem geometria. Mas veja. A morte penteando seus longos cabelos castanhos, de uma beleza de encostar a cabeça no seu colo, senta-se junto da mesa e conta histórias antigas, imemoriais. Silêncio, é preciso ouvi-la, a ela apenas a palavra morde, a ela apenas o destino aprecia. Não basta vida. Começa no fim a origem da arte a que chamarei vitalidade.

2.

Arqueologia dos genes. O arco do crânio saltado para frente, os olhos caindo pelos lados, à espanhola, os visigodos rondando, o nariz mergulhando para o chão num salto caprichoso, encorpado, os lábios de pouca carne, o corpo cheio de pêlos, vermelho e amarelo, uma cicatriz portuguesa sobre o pé direito, um orgulho calabrês rasgando a orelha esquerda, uma veemência de morrer sentado. Sinal particular: a análise ponderada do futuro de suas células e do poço escuro do passado. Uma oliveira vive cem anos, e os figos, los higos y los hijos, e os filhos? Hoje, a última já estava morta, e uma nota de dissonância cobre a terra branca onde ainda esperam os olivares. Vejo um morro ao pé do monte, onde os fantasmas arrastam lembranças não vividas, e estas ligadas a nossas vidas, em forma de corrente. A quem o direi, você me diria. Ou melhor, os fantasmas são as sombras das oliveiras, das laranjeiras, vastas construções. Agora nos sentamos, de frente para o antigo casarão valenciano. Você me escuta? Aperte-me contra sua boca, mais. Para distraí-la, trançarei o dia com versos do alcoorão e elogios de príncipe. Até quando? Pelo tempo em que se sustente a ficção de raiz e nela se reconheça o intervalo entre mar e montanha que agora nos dá abrigo.


3.

Quando a discrição se casa ao espalhafato, em um casamento ibérico como este, não existe propriamente segredos de família. Como se o tempo fosse um vasto segredo que nos enuncia e a demanda de sentido a ele se opusesse. Como se o tempo fosse um vasto campo de leveza que nos embala e o sentido a ele contrariasse. Dessa falta de segredo, dessa ausência de herança, apenas o fundo compartilhado de mistério. A quem entregarei a chave desse acontecimento tão decisivo, a quem segredarei o que mais quero. Vou lhe dizer finalmente o que me toma nessa estrada ondulada, de velho asfalto, que me restitui o valor daquilo que valho. Esta nota de dissonância estirada sobre a terra vermelha que cobre a planície e leva ferrugem às goiabeiras. Esta é a última vez que me dirijo a você, literatura, à sua fala macia de puta, ao seu ludíbrio morno, à sua verdade lúbrica. Deixaremos o antigo velho procurando o norte do sul. Seu segredo será uma história resgatada, clandestinamente, atrás de portas brancas e azuis, de convivência frágil e sem cuidado.

 


 

 


Tantas gerações nos antecederam, tanto saber foi maior que a ciência, tanto afeto e ópio fizeram acreditar no homem, tanta morte gloriosa coroou a convicção, tanta morte violenta conferiu realidade à combinatória das piores probabilidades, tantas cabeças cortadas e enroladas em verso metrificado e no fluxo informe do bom senso, tanta arbitrariedade e tanta sutileza reunidas no fio do relho e da frase tensa, tanta chuva e tanta laranja, e com as mãos secas, aqui estamos — nus, mudos, indigentes, como se tivéssemos acabado de nascer. Nosso pecado de origem foi o de não ter nascido antes, antes da história, antes da conversa, antes do banho. Giramos em torno de tudo, até que tudo passe a girar em torno de nós e refaça a sangrenta marcha na direção do passado. (Hoje dispensei os chinelos, desci descalço na direção da porta do prédio. Tudo me levava à comunhão com o solo, a um espírito de precisão. Mas nunca na sola dos pés percebeu-se um tamanho embaraço. E a razão do próximo passo feriu-se à sombra amarela da repetição. Olhei bem direto no metal e no vidro da porta, queria derretê-los, mas minha força se dividiu em duas. Uma delas partiu em direção à rua, levando o lixo, fiel à sua humana pista, e desfez-se, pó de dias. A outra aqui ficou, ciência sem método, acumulação sem dono, direção sem rumo.) O que esperam é que os leve pela mão e sirva o café ou que a ambigüidade os libere do desconforto do sentido. Os que chegarem a tempo, verão. E nada além de uma prosa, limpa prossegue.










Marcos Siscar é poeta, crítico e tradutor, professor de Teoria da Literatura na Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de São José do Rio Preto.
Principais livros publicados: A rosa das línguas, tradução e apresentação de Michel Deguy, com P. Glenadel (São Paulo/RJ: Cosac & Naify/7 Letras, 2004), Metade da Arte, poemas (São Paulo/RJ: Cosac & Naify/7 Letras, 2003), No se dice, poemas traduzidos por A. Cristobo (Buenos Aires: Tsè=Tsè, 2003), Jacques Derrida: Rhétorique et philosophie (Paris: L'Harmattan, 1998), Os amores amarelos, tradução e apresentação de Tristan Corbière (São Paulo: Iluminuras, 1996).