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Quando "Cantoria 2" foi lançado, em 1984, eu andava muito entretido com o trabalho e não percebi. Fui descobrir o CD uns cinco anos depois, e imediatamente tornou-se um dos meus preferidos. Era um CD da "Karup" produzido pelo Mário Aratanha.

Me acompanhou por todo o início dos anos 90, em noites particularmente solitárias, naqueles tempos de incerteza de final de governo Sarney e de início de governo Collor. Me traz à lembrança o apartamento da rua Pamplona e as derradeiras visitas de minha mãe — que faleceu pouco tempos que nos mudamos do prédio em que ela morava, no bairro do Paraíso.

Juntava um time esplêndido de cantadores, da Bahia até Pernambuco. O guru maior, Elomar, mais Geraldo Azevedo, Vital Farias e Xangai. A grande fase da música popular brasileira tinha terminado. Foi uma grande correnteza que começa com a bossa nova, e passa pelos festivais. Os últimos músicos a entrar no barco foram o alagoano Djavan e seu som universal, e o pernambucano Alceu Valença, com todo o colorido de Recife.

Por aqueles tempos, o nordeste começava a se consolidar como um centro significativo de produção da nova música regional, menos baião, menos coco, mais voltado para uma espécie de lirismo medieval de cantadores, desenvolvendo alguns caminhos que Gilberto Gil havia sugerido em seu primeiro LP, em meados dos anos 60, onde havia clássicos como "Água de Menino".

Os cantadores foram captando os sinais da nova Lírica e se desenvolvendo em uma constelação de capitais, Maceió, Natal, João Pessoa, orbitando em torno da onipresente Recife.

Ainda nos anos 70 surge o grupo dos cearenses, com Belchior, Fagner e Ednardo, um físico da USP, compositor talentoso, que explodiu com a música "Pavão Misterioso" e que nem sei se seguiu carreira. Belchior compôs a música que permitiu a Elis Regina uma das maiores interpretações da sua carreira — o "Como Nossos Pais".  Houve também um grupo de belos compositores trazendo o som do norte de Minas e sul da Bahia, como Guttemberg Guarabyra, que criaria um trio clássico com Sá e Rodrix.

Desse grupo nordestino que gravitava em torno de Recife, Elba Ramalho acabou se projetando como o primeiro nome mais conhecido. Durante certo tempo, fizeram sucesso aqui pelo sul também Amelinha e Zé Ramalho e seu estilo soturno, espécie de drácula tropical. Nos anos 90, explodiram as estrelas de Lenine e Zeca Baleiro. Hoje em dia, em todos os festivais brasileiros, o som do nordeste é preponderante.

Mas tenho cá para mim que o momento de afirmação definitiva desse novo som, dos cantadores líricos da caatinga, foi com os dois shows de "Cantoria", além do "ConSertão", que juntou Elomar, Heraldo do Monte, Arthur Moreira Lima e Paulo Moura.

O lirismo do "Cantoria 2" era permanente, não tinha baixos. Podia se sair da rusticidade épica de Elomar para o lirismo das melodias de Vital Farias e suas letras de belas imagens — embora nem sempre de clara compreensão.

Em comum, havia o acompanhamento de violões em arpejos e baixarias. "Era Casa Era Jardim", "Veja Margarida", de Vital Farias, ou a quase toada de Geraldo Azevedo em "Sabor Colorido" e "Moça Bonita". Ou ainda o estilo mais de moda de viola de Elomar em "No quadrado das águas perdidas".

Mais à frente esses cantadores do nordeste se juntaram aos cantadores paulistas — Renato Teixeira, Rolando Boldrin, Sérgio Reis —, aos cantadores de Minas — Pena Branca e Xavantinho —, ao som de Mato Grosso de Almir Satter e Paulo Simões.

É curiosa essa saga hispânica, um som com grande influência árabe que passa pelo sertão do nordeste, desce por São Paulo, envereda-se por Mato Grosso e penetra na Argentina, em movimentos de mão dupla.

Bem que, em homenagem aos 21 anos de "Cantoria 2", o Mário poderia reconstituir novamente o grupo, e aqueles momentos de franca emoção em que um país sem rumos, mergulhava nas raízes do sertão, para tentar encontrar a alma brasileira, forte e renovada.

 

 

agosto, 2005
 
 
 
 
Luís Nassif é economista e colunista do jornal Folha de São Paulo. Exímio tocador de bandolim.