FAZENDA NOVA

 

Perto dos cem, Antônio Melo,
meu avô materno, em seus linhos,
tornou-se, em seu sítio, o primeiro
segurança de passarinhos;

 

de uma cadeira de balanço,
lá na varanda, sem descanso,

 

vigiava um Pau d'Arco e brandia
a bengala contra os garotos
que atiravam nas cotovias;

 

já morto (dizem) nas visões,
lutava contra os gaviões.

 

 

 

 


POETAS

 

 

            Para Ivan Junqueira

 

 

Somos tantos... quem nos germina
pelos asfaltos e ladeiras
onde a agonia vira cinza
anônima, vão da madeira

 

mais vagabunda do quintal,
vaga fatura no hospital?

 

século a século semeados
pelos demônios de Platão,
somos por eles vomitados

 

nesta República: martírio
que não vale uma dose, um lírio.

 

 

 

 


ANÔNIMOS

 

Bem-aventurados os muitos,
em seu tranqüilo anonimato,
que sequer se sabem anônimos,
como a moldura de um retrato

 

que vi numa aldeia esquecida
do semi-árido, a subida

 

do inferno cíclico da terra:
uma moldura de madeira
queimada, despojo de guerra

 

havida no sertão sem nome,
quando o nome de tudo era fome.

 

 

 

 


THEY SHOOT HORSES, DON'T THEY?*


 

                        (Ao modo de Eliot)

 

 

Sim, e não se matam cavalos,
se fraturados, na corrida,
e por que a deixam se arrastar
sangrando, na dança perdida?

 

Era um filme com Jane Fonda...
Bolsa afogada pela onda

 

de ambição, entre duas guerras,
quando a fila de ovelhas negras
se curva, na Corte da Terra:

 

o filme acaba com um tiro,
o mundo (Eliot) "com um suspiro".

 


*"E  não  se  matam  cavalos?":  filme  dirigido   por  Sydney  Pollack,

sob o título brasileiro "A noite dos desesperados". Olinda, 22.04.2004.

 

 

 

 


PEDAGOGIA

 

Ter filhos
e deixá-los gritar
para saberem que o grito
não resolve,
é isso razoável?
Ter filhos
e deixá-los beber
para saberem que o álcool
não resolve,
é razoável?

 

É razoável
ter filhos que não bebem
nem gritam?

 

 

 

 


AFORISMO

 

O astrólogo quer ser leiteiro
mas a moça da caixa
quer apenas que o soldado Pedro
não esteja de serviço esta noite.
Os homens não se medem
pelo tamanho de seus horizontes,
mas pela insistência em alcançá-los.

 

 

 

 

POUSO DA SENHORA G.

 

Ao saltar do mustang
seu corpo cresceu
feito o pouso A
dos supersônicos na pista:
o trabalho de mil salões
mil shampoos
mil ondas do mar
mil horas de sol
foi inaugurado pobremente na calçada
sob os olhos leigos dos motoristas,
dos operários da telefônica
e de um cego que apenas
sentiu o seu cheiro
dentro do luxuoso silêncio
que repentinamente se fez.

 

 

 

 


ESTUDOS SOBRE O MEDO


1.

 

Só a carne ferida
nos faz recuar
em silêncio, como os célebres
homens-rãs, ou reles
homens reais.
Quantos ataques evitados,
pelo medo que ninguém viu,
entrariam na farta folha
dos falsos e trêmulos
homens bons?
Só o sangue, soltando
seu escândalo sem farsa,
interrompe a curta e casta aventura
dos que sonham vencer,
de longe,
sua própria luta.

 


2.

 

Empunhando o mais novo
e leve modelo
da metralhadora Ina,
arrisco-me a contemplar,
ó primeira ou última cidade,
tua clara e abandonada
noite de luar.
Assim armado, teu exército
crescente de infelizes
pensará duas vezes
antes de me atacar.
Assim armado,
ó imprevisível cidade,
é até possível
que possa um dia
conhecer teus escuros
e, excitado, te amar.

 


3.


Na primeira vez
que nos armamos
riram muito de nós
e de nossas armas,
mas não sabíamos que eles
pretendiam, apenas,
nos desarmar.
Quando enterramos nossos rifles,
eles riram e bateram
em nossos corpos desarmados.
Agora, temos medo
de revolver a terra
para salvar os ossos
e as armas
dos primeiros mortos.

 

 

4.


Do medo, só conhecemos,
mesmo, a vergonha
no dia seguinte.
O resto foi o alvoroço
da vida, cheia de dedos,
querendo continuar.
No dia seguinte, o medo
começa a cobrar
da vida envergonhada
os tristes dividendos.
A cabeça parece
querer sepultar-se
antes do corpo e do perdão
dos seres amados.

 

 

5.


Se os bons não tiverem medo,
os maus só atacarão
se os bons celebrarem cedo
a vitória de estarem vivos
sem os matar.
As festas precoces
desarmam a alegria:
pois ela, como fêmea,
só canta segura
cercada de ferro,
fogo e atenção.

 

 

 

 


INTERRUPÇÃO TEÓRICA

 

Os miseráveis
(de Victor Hugo ou do Brasil)
são interessantíssimos
à distância:
como percentual estatístico,
ou erudita discussão
em bar fechado
com leão-de-chácara na porta;
isso até eles sabem;
por isso, ficam lá fora,
de emboscada,
e nos pedem um dinheiro,
um cigarro, um olhar,
interrompendo, (miseráveis),
uma interessantíssima
discussão sobre o grau
de conservadorismo de Kant.

 

 

 

 


SERRA, SERROTE, SERRITA

 

 

                Para o violeiro Jó Patriota, de São José do Egito,
                que disse num repente e eu gravei: "Eu vi a lua

                morrendo / numa agonia de prata".

 


Faz muito tempo, em Serrita,
Vi nascer um grande povo,
Feito estrela que se agita
Rachando um cósmico ovo,
Ou vida, moça bonita,
Dirigindo um carro novo.

 

Era uma raça bendita,
Com luz correndo nas veias,
Estirpe, que ninguém cita
Nos anais das coisas feias,
Toda coberta de chita,
Faca, revólver e correias.

 

Ali nasceu a vindita
Do grande Chico Romão
Contra a brabeza catita
De inimigos do sertão,
Ali, quem cospe se irrita
Se o cuspe cair no chão.

 

Macho ali não usa fita
E caatinga não é mata,
Moleque apanha e não grita
E uma lua de pragata
Cobre de nuvens, aflita,
Sua bundinha de prata.

 

Para esse lugar, ó Rita,
Vamos levar violeiros.

 

 

 

 


LÚCIFER

 

 

                 "Recebi um comunicado de Deus para

                 matar o primeiro-ministro" — Yigal Amir,

                 que assassinou Yitzhak Rabin, em 4.11.95.

 

 

Não se enganem:
ele é belo
como o degelo do pranto
inundando os vazios,
como uma árvore alta
vigiando um deserto;
belo como o pousar
magistral de um anjo
na ponte de cristal;
belo como a coleção
completa de horizontes
nas prateleiras dos sois;
belo como a beleza
escultural das galáxias;
belo como um ímã
incrustado no abismo,
como um vulto amarelo
no fundo do mar;
belo porque sabe
que é um resto de Deus.

 

 

 

 


CONSELHO

 

                Para Silvana Guimarães

 

Faz de conta
que você tem
o dinheiro suficiente
ou a miséria absoluta
para ouvir esta chuva,
alegrando as árvores
e dando, de certo modo,
alguma dignidade ao crepúsculo;
faz de conta que está chovendo
apenas para você.

 

 

 

 


FORMAS DE ABENÇOAR

 

Fique aqui mesmo, morra antes
de mim, mas não vá para o mundo.
Repito: não vá para o mundo,
que o mundo tem gente, meu filho.

 

Por mais calado que você
seja, será crucificado.
Por mais sozinho que você
seja, será crucificado.

 

Há uma mentira por aí
chamada infância, você tem?
Mesmo sem a ter, vai pagar
essa viagem que não fez.

 

Grande, muito grande é a força
desta noite que vem de longe.
Somos treva, a vida é apenas
puro lampejo do carvão.

 

No início, todos o perdoam,
esperando que você cresça,
esperando que você cresça
para nunca mais perdoá-lo.

 

 

 

 


INFLUÊNCIA DAS VOZES

 

Nunca fiz um poema limpo
como o avental de minha mãe:
sempre os outros e o pó dos Outros
puseram em mim sua presença.

 

Como na infância, há sempre um vulto
emergido de algum silêncio.
Para ajudar-me a escrever,
vem segurar na minha mão.

 

Mas rasgo tudo, rasgo o que amo
e vejo tudo realizado
nas outras mãos, enquanto fico
desconfiado de minha força.

 

Às vezes mostro a meus amigos
estas flores, peço-lhes água.
Eles sorriem, são meus amigos,
mas também estão no deserto.

 

Já não preciso ser autêntico:
sobre uma só realidade
eis-me na terra como os outros,
sou os outros, e morro só.

 

 

 

[ imagens ©misha gordin ]

 

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Do livro O cão de olhos amarelos & outros poemas inéditos, que comemora os 40 anos

de poesia do poeta. Prefácio de Deonísio da Silva e posfácio de Hildeberto Barbosa Filho.

Publicado em 2006, pela A Girafa Editora, São Paulo/SP.

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dezembro, 2005
 
 
 
 
Alberto da Cunha Melo (Jaboatão/PE-1942 - Olinda/PE, 2007) — Poeta, sociólogo, jornalista. Publicou 15 livros de poesia. É considerado um dOs Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século, seleção de José Nêumanne Pinto (São Paulo: Geração Editorial, 2001). Mais no seu site oficial, no Plataforma para a Poesia e no blogue Trilhas Literárias.
 
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