POUSO DA
SENHORA G.
Ao saltar do mustang
seu
corpo cresceu
feito o pouso A
dos supersônicos na
pista:
o trabalho de mil salões
mil shampoos
mil ondas do
mar
mil horas de sol
foi inaugurado pobremente na
calçada
sob os olhos leigos dos motoristas,
dos operários da
telefônica
e de um cego que apenas
sentiu o seu
cheiro
dentro do luxuoso silêncio
que repentinamente se
fez.
ESTUDOS
SOBRE O MEDO
1.
Só a carne ferida
nos faz
recuar
em silêncio, como os célebres
homens-rãs, ou
reles
homens reais.
Quantos ataques evitados,
pelo medo
que ninguém viu,
entrariam na farta folha
dos falsos e
trêmulos
homens bons?
Só o sangue, soltando
seu escândalo
sem farsa,
interrompe a curta e casta aventura
dos que
sonham vencer,
de longe,
sua própria luta.
2.
Empunhando o mais novo
e leve
modelo
da metralhadora Ina,
arrisco-me a contemplar,
ó
primeira ou última cidade,
tua clara e abandonada
noite de
luar.
Assim armado, teu exército
crescente de
infelizes
pensará duas vezes
antes de me atacar.
Assim
armado,
ó imprevisível cidade,
é até possível
que possa
um dia
conhecer teus escuros
e, excitado, te
amar.
3.
Na primeira vez
que nos armamos
riram
muito de nós
e de nossas armas,
mas não sabíamos que
eles
pretendiam, apenas,
nos desarmar.
Quando enterramos
nossos rifles,
eles riram e bateram
em nossos corpos
desarmados.
Agora, temos medo
de revolver a terra
para
salvar os ossos
e as armas
dos primeiros mortos.
4.
Do medo, só conhecemos,
mesmo, a
vergonha
no dia seguinte.
O resto foi o alvoroço
da vida,
cheia de dedos,
querendo continuar.
No dia seguinte, o
medo
começa a cobrar
da vida envergonhada
os tristes
dividendos.
A cabeça parece
querer sepultar-se
antes do
corpo e do perdão
dos seres amados.
5.
Se os bons não tiverem medo,
os maus só
atacarão
se os bons celebrarem cedo
a vitória de estarem
vivos
sem os matar.
As festas precoces
desarmam a
alegria:
pois ela, como fêmea,
só canta segura
cercada de
ferro,
fogo e atenção.
INTERRUPÇÃO
TEÓRICA
Os miseráveis
(de Victor Hugo
ou do Brasil)
são interessantíssimos
à distância:
como
percentual estatístico,
ou erudita discussão
em bar
fechado
com leão-de-chácara na porta;
isso até eles
sabem;
por isso, ficam lá fora,
de emboscada,
e nos pedem
um dinheiro,
um cigarro, um olhar,
interrompendo,
(miseráveis),
uma interessantíssima
discussão sobre o
grau
de conservadorismo de Kant.
SERRA,
SERROTE, SERRITA
Para
o violeiro Jó Patriota, de São José do
Egito,
que disse num repente e eu gravei: "Eu vi a
lua
morrendo
/ numa agonia de prata".
Faz muito tempo, em
Serrita,
Vi nascer um grande povo,
Feito estrela que se
agita
Rachando um cósmico ovo,
Ou vida, moça
bonita,
Dirigindo um carro novo.
Era uma raça bendita,
Com luz
correndo nas veias,
Estirpe, que ninguém cita
Nos anais das
coisas feias,
Toda coberta de chita,
Faca, revólver e
correias.
Ali nasceu a vindita
Do
grande Chico Romão
Contra a brabeza catita
De inimigos do
sertão,
Ali, quem cospe se irrita
Se o cuspe cair no
chão.
Macho ali não usa fita
E
caatinga não é mata,
Moleque apanha e não grita
E uma lua de
pragata
Cobre de nuvens, aflita,
Sua bundinha de
prata.
Para esse lugar, ó
Rita,
Vamos levar violeiros.
LÚCIFER
"Recebi um comunicado de Deus para
matar
o primeiro-ministro" — Yigal Amir,
que
assassinou Yitzhak Rabin, em 4.11.95.
Não se enganem:
ele é
belo
como o degelo do pranto
inundando os vazios,
como
uma árvore alta
vigiando um deserto;
belo como o
pousar
magistral de um anjo
na ponte de cristal;
belo
como a coleção
completa de horizontes
nas prateleiras dos
sois;
belo como a beleza
escultural das galáxias;
belo
como um ímã
incrustado no abismo,
como um vulto
amarelo
no fundo do mar;
belo porque sabe
que é um resto
de Deus.
CONSELHO
Para
Silvana Guimarães
Faz de conta
que você
tem
o dinheiro suficiente
ou a miséria absoluta
para
ouvir esta chuva,
alegrando as árvores
e dando, de certo
modo,
alguma dignidade ao crepúsculo;
faz de conta que está
chovendo
apenas para você.
FORMAS DE
ABENÇOAR
Fique aqui mesmo, morra
antes
de mim, mas não vá para o mundo.
Repito: não vá para o
mundo,
que o mundo tem gente, meu filho.
Por mais calado que
você
seja, será crucificado.
Por mais sozinho que
você
seja, será crucificado.
Há uma mentira por aí
chamada
infância, você tem?
Mesmo sem a ter, vai pagar
essa viagem
que não fez.
Grande, muito grande é a
força
desta noite que vem de longe.
Somos treva, a vida é
apenas
puro lampejo do carvão.
No início, todos o
perdoam,
esperando que você cresça,
esperando que você
cresça
para nunca mais perdoá-lo.
INFLUÊNCIA
DAS VOZES
Nunca fiz um poema limpo
como
o avental de minha mãe:
sempre os outros e o pó dos
Outros
puseram em mim sua presença.
Como na infância, há sempre um
vulto
emergido de algum silêncio.
Para ajudar-me a
escrever,
vem segurar na minha mão.
Mas rasgo tudo, rasgo o que
amo
e vejo tudo realizado
nas outras mãos, enquanto
fico
desconfiado de minha força.
Às vezes mostro a meus
amigos
estas flores, peço-lhes água.
Eles sorriem, são meus
amigos,
mas também estão no deserto.
Já não preciso ser
autêntico:
sobre uma só realidade
eis-me na terra como os
outros,
sou os outros, e morro só.
[ imagens ©misha gordin ]