©levko
 
 
 
 
 

 

 

A

 

A batalha era feroz, ataques e contra-ataques, marchas e contramarchas, e, quando tudo silenciou, é que os comandantes, observando os monitores, em seus seguros e confortáveis bunkers, constataram, horrorizados, não haver sobreviventes de ambos os lados, motivo pelo qual foi convocada reunião urgentíssima em nível de chanceler, no fim da qual as altas partes envolvidas assinaram documento desculpando-se pelo humilhante inconveniente, comprometendo-se, no entanto, a recomeçar em outro dia, se deus quiser, claro, e o demônio não atrapalhar. Pois, afinal, não foi o bispo, que estreava lindas meias vermelhas, chiquérrimas, quem abençoou os fuzis do pelotão de fuzilamento nos campos de concentração dos arredores de Salamanca? Por não suportar o peso de tal revelação tardia, o hippie acionou os motores de sua autonave e, beijando a margarida, decolou para nunca dantes navegadas imensidões psicotropicais.

 

 

I

 

Tanto podia ser meia-noite como meio-dia, eu não estava em condições de discernir. A escuridão era total, não essas trevas nascidas da mera ausência de luz material, mas a escuridade interior, anterior a todo desejo de luz. Vindos do outro lado, na contra-mão, chocavam-se comigo detritos estereotipados de estranhos sons, restos mortais de sinfonias e marchas nupciais jamais executadas, implodindo meu cérebro pré-humano e violando meus tímpanos atordoados. Eu estivera deitado por uma eternidade! Do meu berço ancestral, monologando solitariamente com meu próprio umbigo, contemplara a involução do universo em mim. Antes eu não existia, mas isso deve ter sido bom, porque nunca me preocupara. Eu ainda não tinha preconceitos e brincava de esconder comigo mesmo. Às vezes brincávamos de faz de conta e podíamos ser tudo: eu me tratava cerimoniosamente de Sapiens, e o antepassado primata em mim xingava o meu outro eu de Eva.

 

 

B

 

Sai dessa janela, que emoldura o teu desalento, pois a tarde é breve e o tempo não pára. Antigamente, aqui era pracinha de conto e a gente brincava de roda, sem o peso insuportável da infância perdida. Sonhar era bom, sonhar com banquetes na quinta imperial. Marcelina já foi modelo de virtude, quem conta é a sempre vizinha do lado. Antonio, o ex-marido, era um puro, demorou pra se ver uni(pluri)córnio no espelho. Feliz foi Adão, que não teve sogra nem sofreu traição. Ah-rá!, mas, em compensação, com as primeiras intempéries, esvaiu-se na própria lama da sua criação. Cá pra nós, Aleijadinho foi mais previdente e melhor artista, criava em pedra-sabão. No fundo, no fundo, não existe a bondade: somos apenas um pouco mais ou menos maus. Quem é aquele que vai chorando atrás do caixão da vítima? A suave brisa vespertina de ontem, por onde andará? Que antigamente era diferente não é apenas rima, é o desabafo dessa infeliz que oferece flores no semáforo que ninguém quer comprar. E este rosário tão cheio de contas? Neste armário, que recende naftalina, há contas até da prostituta dos tempos outros. Quem pode dizer que está preparado para o Juízo a-Final? Haverá, enfim, quem não morra de medo da "Indesejada das Gentes", a "Dama Branca" que leva os nossos pais, e que um dia nos levará a todos, não para Pasárgada, terra de poesia, mas para um outro não-lugar medonho, onde não teremos nem um amigo nem a mulher dos nossos sonhos? Na dúvida, aceita a opção da  morte mais que absoluta. Prepara-te solenemente para A Morte depois da morte. Aleluia! Antes da Travessia, porém, é preciso, é totalmente necessário, é indispensável, que algum sonho se torne realidade, para que todos tenham pelo menos uma estória com final feliz para ser contada. Senão, cadê o sentido da Coisa? De que terão valido todas as leis, decretos e medidas provisórias, da Física e do Universo?

 

 

II

 

A escuridão me oprimia o peito e as entranhas, mas eu nada mais tinha para vomitar. Uma mulher gritava e ninguém parecia lhe dar atenção. E eu ouvia passos furtivos e gemidos abafados e ruídos de ferros cirúrgicos, mas não acreditava: estava louco e era inútil preocupar-me com coisas tão sérias.

 

 

C

 

A vaselina está na terceira gaveta à direita. Pois a primeira é sempre a vez mais dolorida, é o que dizem. O maníaco conta em detalhes como estuprava e matava as criancinhas indefesas, e já se movimenta em seu benefício toda a piedosa engrenagem criada para garantir os divinos direitos dos poderosos e das celebridades. Não me atires a segunda pedra, antes dá-me a primeira face, porque desse pecado coletivo eu sou inocente. Ontem, o hoje passado, amanhã, quem sabe o que te espera? Aquele mendigo ali pode tanto ter sido sempre um mendigo mesmo como um tísico parnasiano, repara nas suas polainas. O verme rói o corpo desquitado da alma. Sonhar pra quê, se sonho e meu sonho nem é sonho? Pensar traz pensamentos aleijados. Bem-aventurados os pobres de espírito, que não terão problemas de consciência. Espia: a flor da manhã abrindo as perninhas para o sol! Indecência ou simples metáfora? Complexada é a centopéia sem uma sequer mãozinha para se masturbar. E esta aquarela, quem não pintou? Tão vulgar, aquela mulherzinha de nadaquine no outdoor. Jessica! Não suportava a idéia de ser homem, pulou do vigésimo! Agora, sorte teve o leão, vomitando as esporas do domador. Morreu a cadelinha da embaixatriz, olha as manchetes. To be or not to be uma ova, chega de frescura! Ter ou não ter, esta é a eterna questão. Quem me dera ser como aquele imponente cruzador dos sete mares, que tem em cada porto uma escuna a esperar. Toda infância tem um circo nunca esquecido. Onde estarão todos que se diziam teus amigos, de tantas jornadas companheiros? Gira mundo, gira-i-mundo! É engraçado como a saudade só acontece depois, quando todas as hipóteses foram descartadas e todas as teses superadas e toda esperança perdida. Jorge, o ex-mortal, foi o mais Amado. Neste demolível sobrado, um fantasma ouropretano. O elevador almoçando filas!

 

 

III

 

Os gemidos ficaram mais dolorosos e os passos mais furtivos e o ruído dos ferros mais impessoal. Judas nasceu e até hoje, dois mil anos depois, ninguém entendeu nada. Sou como Judas, sou povo, há séculos carrego em meu peito este anátema terrível. Mas quem sou eu? Onde estou? Para onde vou? Eu estivera deitado por uma eternidade! Minha cabeça dói terrivelmente, explodir é apenas uma questão de segundos. Sinto que sou carregado por estranhos e úmidos corredores e monstros horríveis me espreitam pelas frestas do tempo. Eu poderia com um simples gesto fazer com que tudo se iluminasse. Mas quem garante que à luz do sol meus fantasmas serão menos apavorantes?

 

 

D

 

Foi lá mesmo no sofá da sala sim senhor seu Delegado. E foi ela quem praticamente me obrigou, eu mesmo nem queria muito, pra dizer a verdade. O trem apitando, foi gol? Vai ver que o fim sempre é definitivo. Por exemplo: não existem mais centauros no Olimpo. Não, ninguém te chamou, eu não disse Olímpio. Houve o choque com o iceberg da rotina conjugal e ela mergulhou num turbilhão de desamor, afogando-se na tsunami de suas lágrimas inúteis. Saíra de manhã, tão jovem ainda. Pois eu vos digo: bem-aventurados aqueles que, em se julgando donos da verdade, não permitem que esta seja contestada, pois deles será o reino da terra.

 

IV

 

Eu estivera deitado por uma eternidade! Quem são esses seres insensíveis, para que insondáveis lugares me arrastam? Inútil gritar, implorar ajuda. Sinto-me fraco demais, toda a revolta se acomoda em mim, e deixo-me levar manietado por esses túneis biológicos. Por um momento, atropelam-se em minha memória todas as minhas recordações e frustrações futuras, e só então me vem a plena certeza! O último grito, doloroso, agônico, de mulher, confunde-se com o meu, de puro pavor. Mãos enluvadas largam o fórceps e me agarram, e me magoam, e me desunem, e me dividem, e me separam, e me erguem, como troféu, em triunfo, e sinto na carne que a luz é mais terrível do que as trevas. Eu estivera deitado por uma eternidade e não tenho mais forças para lutar. À minha volta, os vultos de branco contemplam o corpo agora sereno e inerte (e inútil) da mulher sem vida e se ressentem da humana e humilhante limitação que os impede de vencer todos os confrontos. Mas isso foi só por um fugaz instante, um breve momento de fraqueza reprimida, e logo se refazem, e fazem questão de comemorar, à sua maneira, contidamente, cônscios de que, graças à sua incontestada técnica e competência, tudo acabou como deveria acabar, e o final da história fluiu verdadeiramente feliz, pois o importante é que a vida seguiu seu curso e eu nasci forte e saudável.  É inútil protestar e chorar e gritar a minha agonia.  Só eu, oh Deus, compreendo a verdade: estou começando a morrer!  Mas meus olhos estão secos e meu choro já não quer dizer mais nada.

 

 

 

dezembro, 2007

 

 
 
 
 
Danilo Fernandes Rocha (Belo Horizonte/MG). Advogado, roteirista, cineasta e escritor. Autor de Mortemática (poesia, Editora Nativa, 2004) e Viagem ao fundo do poço (romance, no prelo). Escreveu, sob encomenda, o roteiro para longa-metragem intitulado Lagartas também voam, em fase de pré-produção. Escreveu e dirigiu os curtas Sic transit gloria mundi e Em terra de cego. Possue vários prêmios em concursos literários pelo Brasil e exterior.
 
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