A
Graça
Porque os corpos se
entendem, mas as almas não. Manuel Bandeira
Como
pode alguém escrever sobre o corpo amado? Fazer da pele páginas?
Transformar em texto as marcas mais secretas, a geografia dos poros, a
arqueologia das cicatrizes? Embalsamar as pernas em letras? Não. As
palavras mamilo, coxa, mão, bunda, dorso, ombro, lábio, buceta, pêlo,
umbigo, pescoço, é preciso esquecê-las para não turvar este corpo. Como
pretender que os pequenos abismos das consoantes possam acolher as
superfícies desta paisagem, com seus tremores e nervuras? Como nomear,
descrever, narrar este corpo que entre lençóis se esconde e se anuncia?
Sequer ouso tocá-lo. Olhar me basta. Como um menino doente que, às
escondidas, abre a janela do quarto e, mesmo quando a chuva e a noite
dissolvem a cidade, imagina velocípedes, pique-bandeira, bilosca,
carrossel, piscina, passeio de mãos dadas, cinema... A visão do corpo
amado é minha hora mais silenciosa. Para que tocá-lo? Para que
escrevê-lo? Ainda em febre, olho através da chuva. Tremores ínfimos
parecem ventos, o rumor dos lençóis faz tremer as nuvens, os olhos
fechados não prometem menos que o sol. Afinal, não é um corpo o que vejo
assim distante, mas os volumes de uma inteira biblioteca, jamais
escrita. Como traduzir o barulho dos cabelos na fronha, as cintilações
do escuro acenando nas unhas, a linhagem das orelhas, a prosódia líquida
da perna esquerda? Afinal, não é um corpo, mas uma minúscula tempestade,
um oceano encolhido no aquário — e qualquer mão brusca pode entorná-lo.
Por mais que estenda o braço, não consigo tocar o corpo que amei. Amo.
Por mais palavras que tenha, não posso escrever este corpo que me dá as
costas e se oferece. Como todas as coisas bem guardadas, ele soube se
perder na região difícil desta cama. As palavras nada podem, vacilam
entre o espelho e a penumbra. Quando muito, as minhas mãos estremecem e
recuam com medo das sombras. Desde e para sempre nu, como cobrir de
palavras este corpo que parece dançar nas poças d'água e abrir a janela
para a chuva, senão quando súbito estremece e grita sob os relâmpagos e
tapa os ouvidos para o trovão e se encolhe na cabeceira da cama? Um
animalzinho só susto: músculos encolhidos, excesso de olhos. Para o
banquete do medo, enfim o corpo banal, diário — da cadeira, da mesa, da
rua, do vestido. Agora poderia descrevê-lo, nomeá-lo. Talvez narrar o
ricto, o ridículo da dor menor, este mundo infantil e hospitalar
escondido debaixo dos lençóis. Mas não. Sorrio, rio, gargalho. Fico
alto. Ela se levanta da cama e me olha, nua como nenhuma mulher ousara.
Enorme e física, os olhos numa altura que não alcanço. Enrola-se no
lençol e desaparece na porta do banheiro. Volto a ser aquele menino
doente. E já não há janela.
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Conto selecionado para compor a antologia
Coletânea de Contos Osman Lins — Volume 1, como
resultado do Concurso Osman Lins de Contos, promovido pela Fundação de
Cultura
Cidade do Recife, em Pernambuco,
2005.
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outubro,
2005
FERNANDO Fábio FIORESE Furtado. Poeta, prosador e ensaísta. Professor do Programa de
Pós-Graduação em Letras/Teoria da Literatura e da Faculdade de
Comunicação Social da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), tem
publicados Dançar o nome, (antologia poética bilíngüe
português/castelhano em parceria com Edimilson de Almeida Pereira e
Iacyr Anderson Freitas, Juiz de Fora: EdUFJF, 2000), Corpo
portátil: 1986-2000 (poesia, São Paulo: Escrituras, 2002),
Dicionário mínimo: poemas em prosa (São Paulo/Juiz de
Fora: Nankin/Funalfa, 2003) e Murilo na cidade: os horizontes
portáteis do mito (ensaio, Blumenau: Edifurb, 2003), dentre
outros. Mais aqui. |