©antónio ramos sepulveda
 
 
 

 

 

 

A Graça

 

 

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
Manuel Bandeira


 
        Como pode alguém escrever sobre o corpo amado? Fazer da pele páginas? Transformar em texto as marcas mais secretas, a geografia dos poros, a arqueologia das cicatrizes? Embalsamar as pernas em letras? Não. As palavras mamilo, coxa, mão, bunda, dorso, ombro, lábio, buceta, pêlo, umbigo, pescoço, é preciso esquecê-las para não turvar este corpo. Como pretender que os pequenos abismos das consoantes possam acolher as superfícies desta paisagem, com seus tremores e nervuras? Como nomear, descrever, narrar este corpo que entre lençóis se esconde e se anuncia? Sequer ouso tocá-lo. Olhar me basta. Como um menino doente que, às escondidas, abre a janela do quarto e, mesmo quando a chuva e a noite dissolvem a cidade, imagina velocípedes, pique-bandeira, bilosca, carrossel, piscina, passeio de mãos dadas, cinema... A visão do corpo amado é minha hora mais silenciosa. Para que tocá-lo? Para que escrevê-lo? Ainda em febre, olho através da chuva. Tremores ínfimos parecem ventos, o rumor dos lençóis faz tremer as nuvens, os olhos fechados não prometem menos que o sol. Afinal, não é um corpo o que vejo assim distante, mas os volumes de uma inteira biblioteca, jamais escrita. Como traduzir o barulho dos cabelos na fronha, as cintilações do escuro acenando nas unhas, a linhagem das orelhas, a prosódia líquida da perna esquerda? Afinal, não é um corpo, mas uma minúscula tempestade, um oceano encolhido no aquário — e qualquer mão brusca pode entorná-lo. Por mais que estenda o braço, não consigo tocar o corpo que amei. Amo. Por mais palavras que tenha, não posso escrever este corpo que me dá as costas e se oferece. Como todas as coisas bem guardadas, ele soube se perder na região difícil desta cama. As palavras nada podem, vacilam entre o espelho e a penumbra. Quando muito, as minhas mãos estremecem e recuam com medo das sombras. Desde e para sempre nu, como cobrir de palavras este corpo que parece dançar nas poças d'água e abrir a janela para a chuva, senão quando súbito estremece e grita sob os relâmpagos e tapa os ouvidos para o trovão e se encolhe na cabeceira da cama? Um animalzinho só susto: músculos encolhidos, excesso de olhos. Para o banquete do medo, enfim o corpo banal, diário — da cadeira, da mesa, da rua, do vestido. Agora poderia descrevê-lo, nomeá-lo. Talvez narrar o ricto, o ridículo da dor menor, este mundo infantil e hospitalar escondido debaixo dos lençóis. Mas não. Sorrio, rio, gargalho. Fico alto. Ela se levanta da cama e me olha, nua como nenhuma mulher ousara. Enorme e física, os olhos numa altura que não alcanço. Enrola-se no lençol e desaparece na porta do banheiro. Volto a ser aquele menino doente. E já não há janela.

 

 

 

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Conto selecionado para compor a antologia Coletânea de Contos Osman Lins — Volume 1,
como resultado do Concurso Osman Lins de Contos, promovido pela Fundação de Cultura

Cidade do Recife, em Pernambuco, 2005.

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outubro, 2005
 
 
 
 
FERNANDO Fábio FIORESE Furtado. Poeta, prosador e ensaísta. Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras/Teoria da Literatura e da Faculdade de Comunicação Social da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), tem publicados Dançar o nome, (antologia poética bilíngüe português/castelhano em parceria com Edimilson de Almeida Pereira e Iacyr Anderson Freitas, Juiz de Fora: EdUFJF, 2000), Corpo portátil: 1986-2000 (poesia, São Paulo: Escrituras, 2002), Dicionário mínimo: poemas em prosa (São Paulo/Juiz de Fora: Nankin/Funalfa, 2003) e Murilo na cidade: os horizontes portáteis do mito (ensaio, Blumenau: Edifurb, 2003), dentre outros. Mais aqui.