JOÃO CABRAL VISITA O CEMITÉRIO MUNICIPAL DE JUIZ DE
FORA
I.
Fala menos de si
do que de quem o fez
tão à
mostra (em vitrine
de um não-museu, talvez).
Se vitrine, porém,
há muito anda fechada,
pois o
pouco que vende
não se compra com nada.
Não tem valor na praça,
não se conhece o
preço:
é produto que existe
quando visto do avesso.
II.
Melhor dizendo: quando
há somente embalagem
e o
que a ninguém se vende
fica esquecido, à margem.
E cada prateleira
esconde o peso bruto,
o valor,
a textura,
e até mesmo o produto
que (dizem) não terá
prazo de validade.
Desde
que, antes de tê-lo,
não se saiba a verdade.
III.
Diz mais de quem o fez
até sem ser vitrine.
Não
se vende um produto
sem que a alguém se destine.
Sem que estejam, no rótulo,
as instruções de
uso,
para que o comprador
seja o menor intruso
na caixa que o terá,
sem bula ou etiqueta.
Para
que nova vida
entre ambos se intrometa.
IV.
Não sendo, então, vitrine,
talvez palanque
seja.
Erguido para a fala,
em espiga ou bandeja.
Para uma fala cega,
sem corte, quase
estanque,
embora bem nutrida
de seu dizer palanque.
Embora não perdida
de uma incerta oratória,
com
seu luxo que esconde
(sendo ópera) escória.
V.
Se propenso a comícios,
se palanque, no
entanto,
não se ouve o discurso,
o foguetório, o canto.
Quando muito, o silêncio
rouba dali seus
mantos,
em tardes de cortejo
ou mesmo em dias santos.
E, ainda assim, seu porte
contudo não se
abala.
Impõe respeito à praça,
com seus trajes de gala.
VI.
Um respeito de quem
não apenas se cala
diante do
excessivo
de seus trajes de gala,
mas antes memoriza,
relembra, reconhece
o quanto
desse luxo
excede a toda prece.
E compreende por que
seu porte não se
abala:
sabe ser miserável
mesmo em trajes de gala.
VII.
Nome mais verdadeiro
isto aqui não teria
se
Praça da República
fosse por ironia.
Mas não há coisa pública
mais certeira que a
morte,
capaz de dar a todos
o travo de seu corte.
Capaz de armar em todos
a mesma entrevisão
de
antecipar o pó
aos que ao pó voltarão.
VIII.
A nenhuma oratória
esta praça responde,
posta em
frente ao palanque,
mas sem quando nem onde.
Não aceita o silêncio
de minério ou de
monge.
Essa calma de quando
toda fala está longe
(ou de quando o discurso
pode não ter sentido
e
o melhor a fazer
é tirá-lo do ouvido).
IX.
Não sabendo palavra
que de tumbas se
arranque,
os que cruzam a praça
evitam o palanque.
Escapam do que possa
ser doado de estalo
a quem,
sendo um passante,
não tenha onde guardá-lo.
Entre a praça e o palanque,
assim, faz-se a
barganha:
um comércio de perdas
que com perdas se ganha.
PABLITO
É bom que se diga: quem não topa
forrar a barriga,
ir-se embora
da miséria, em prol da grande Europa?
Foi o que
ele pensou, certa hora.
Tinha uns dons de ator. Fizera teatro.
Na verdade,
coisa de terceira,
sofrível, para não mais que quatro
gatos
pingados. Esteve à beira
da fama, num rico comercial
dos embutidos "Bela
Toscana".
Mas, dali pra frente, nem sinal
de sorte. Nenhum
trabalho ou grana.
Se mandou então para a Espanha:
Cádiz, pra começo
de conversa.
Depois o mundo, que a vida ganha
vale o preço de
um tapete persa.
Um Almodóvar viria um dia,
com certeza. Todo o seu
talento
há muito clamava e merecia,
para que se furtasse ao
relento.
Mas a promessa não foi cumprida.
Ou foi, em parte:
filme (com fatos
bem amargos) era a sua vida
num bar rampeiro
lavando pratos.
JÓIA DE DIJON
Sempre dizia: meu avô materno
aqui chegou em
30, com a França
doendo nos cabelos, com o terno
puído pelo
mar e sua dança.
De um sangue desses — jóia de Dijon —
é pouco
todo o orgulho, ela dizia.
E mais: sequer seria de
bom-tom
não ostentar, com brio, a fidalguia.
Era grande demais a sua herança:
uns olhos claros
como os do avô,
de um azul que somente o céu alcança.
Embarcou feliz, seguindo o tarô.
Venceu, por fim,
chegando a ser, na França,
a atriz principal de um filme
pornô.
ENTRE O VÁRIO E O VAGO
Chegar assim tão longe,
entre o vário e o
vago,
para o sorver o mundo
de uma só vez, num trago.
Ir além, mais além
de seu próprio limite,
até
que o risco seja
convívio. Ou convite.
ORÁCULO DE EROS
Para que não seja o teu corpo
a parte proibida do
horto.
Mas a volúpia que marcasse,
entre volutas, tua
face.
Somente a tua: mais nenhuma
com tamanho langor de
espuma.
Com tamanha extensão de chama,
que até a memória se
inflama
a cada letra do teu nome
(pois todas as outras
consome).
Que seja o teu corpo o instrumento
tocado em pêlo
contra o vento
e por ele, vento, encarnado,
a salvo de teu próprio
achado,
por fim tão senhor quanto escravo
: corpo de onde
eu mesmo me escavo.
A LUTA MAIOR
Mesmo o minuto que me vence
em si já estava
vencido:
contra suas próprias vitórias
vibram velhas contas de
vidro.
E é de vidro também o incêndio
da mesma falta de
sentido
que me torna um lutador
até por seus mortos
vencido.
Um lutador que desconhece
glória que lhe sirva de
abrigo,
que sabe que a luta maior
se dá em seu corpo,
consigo.
DO OITAVO ANDAR
Primeiro mandou pela janela
todas as lembranças da
Marcela.
Depois o corpete de flanela,
os livros, tudo o que
fosse dela.
E não tendo mais o que mandar
jogou o que restara
do lar.
— "Não apela!"
— "Outra sua eu não engulo".
Dali para a própria Marcela
foi um pulo.