©pat LaCroix
 
 
 
 
 
 
 
 

Tempo novo no mundo e eu entre nuvens. Sou personagem do presente ou espírito desdobrado de lençóis da bela época? Quasemuito, heterônimo na multidão. Orgulho de serra-ser no mundo de terra-ter. Quem anda entre as palavras familiariza a estranheza. Papalavrorium nacionalista, amo tanto as belas palavras quanto a língua que as diz. Resumo: não penso, aproveito pensamentos, citações e clichês. A meu modo, modulo e mudo.

 

Não gosto da sombra que não tem caminho. Me posto diante do escaparate arrumando o cravo na lapela. Flor reprimida. Cisco o lago azul: dá ânsia olhar. Ao mesmo tempo busco a vertigem do fundo do lago, sensação andrógina de ser outro, morar no país arrepiado, terra dos sem-voz. Antes do Cisma fui sem-voz. Escurecia pensamentos entre musgos de radiolas. Naufragava na solidão muar dos ancestrais, solidão calejada em miséria espiritual. Em ira minha alma avinagrou, não descobri Deus-em-mim. Agora o altar a Mim inspira e sou ventilado por admoestações divinas.

 

Sou o que sou, ribomba o mantra na mente. Que tempestade nos olhos da sra. Fujiwara. Estrelas explodindo na pupila. A chemiserie emasculada destoa do lenço de seda estampado de violetas. Apenas no olhar o lago se espraia. Esbarramo-nos duas vezes na relojoaria e eu sabia que meu ardor jamais a fulminaria.

 

No passado fui refém de paixões avassaladoras. Conhecia o calabouço onde sepultei o coração? Não, apenas seguia meus instintos. Bebia, comia, dormia. Estranheza quando a beleza apontava diante de mim. Impossível beber, comer, dormir. Fugir da beleza estranha era tudo que podia fazer. Ignorava a sabedoria da vulnerabilidade. Não queria deixar de ser o macaco correndo em cima da roda, movido pelo instinto eu seguia. Não conhecia minha solidão.

 

Em vez de escolher e me devotar a uma estrangeira, preferia embates metafísicos.

 

Na juventude houve o costume de os bares abrigarem pavões. Esta, uma tradição que perdura hodiernamente. Pesquisando alfarrábios constatei que na antiguidade os leques multicores eram ostentados em lugares públicos. Não consegui rastrear a origem do costume.

 

Por causa dos pavões, quase nunca encontrava lugar numa mesa. Todas ocupavam-se de papudos. Não me ocorria questionar os donos de bares. Tradição é tradição. Mesmo que não bebessem álcool ou cheirassem cocaína, os pavões enfeitavam os lugares.

 

Nunca relacionei os pavões a derrotas existenciais. Achava que a covardia me fazia escolher o refúgio de casas noturnas. Porém sempre que tentava parlamentar com um colega de mesa um pavão abria as asas e gritava, tornando impossível a conversa. Ademais, ricocheteados pelo arco-íris ilusório das plumas, nos calávamos.  A ave macho exagerava o esplendor das bolhas d’água em que a luz se fragmentava como um prisma*, diante do público. Bastava que dois de nós estivéssemos reunidos em seu nome para que abrissem o leque e cantassem.

 

Todas as noites os pavões contavam a mesma história. Que os cem olhos da cauda eram de um monstro cegado pela deusa grega rainha. A besta tinha falhado numa missão imposta pela deusa. Assim nos sedavam durante toda a noite. A mesma história? Todas as noites? Sim. Eu fugia da beleza real para a ilusória. 

 

Os pavões acocoravam-se no ponto mais alto de nossa ingenuidade. Bebiam nossos desejos, sugavam a juventude. A cada dia a sra. Fujiwara empalidecia como boneca de laca dançando em prato giratório. Nunca a vi num quimono e o leque mais palpável para mim era o das asas dos pavões. Porém até o alvo de meus desejos era uma miragem vista no prisma de cores virtuais.

 

Certa ocasião avistei a sra. Fujiwara com uma grossa aliança dourada no anelar esquerdo. Só então me recompus da perdição. Ensaiei revolta contra os pavões. À noite, ao chegar no bar, ameacei despejar uma coleção de impropérios sobre um deles. Mais que depressa ele abriu o deslumbre sobre mim. Calei diante do fascínio.

 

Hoje, se me adorando sou o Si só é porque nunca estive em Mim.

 

 

 

*Citação de Rubem Braga, da crônica "O Pavão", incluída no livro "Ai de ti, Copacabana", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 149.

 

 

 

 

Marília Kubota (Paranaguá-PR, 1964). Jornalista, escritora, poeta, vive em Curitiba. Escreve o blogue Micrópolis. Mais aqui.