©sharland | 1951
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Para Jason Carneiro

 

 

- I -

 

Ela afastou a mão das mãos de Sálvio, e ele perguntou: "Glauciz, você me quer?". "Mas não quero, não insiste".

Daí que cresceu a flor, da hastezinha verde no queixo até brotar os estames e pétalas. Não podia mais se mostrar em público, porque tinha uma flor no rosto.

A irmã, Aliana, cuidara dele até bem depois disso acontecer. Moça bela, mas fechada, saía só para as compras ou deixar cartas no correio. Costurava bordados de mesa no mesmo jardim de inverno em que o irmão lia. Uma laranjeira fazia-lhes sombra. Não olhavam para o que acontecia na rua. Quando algum bordado não a agradava, ela desfazia os fios, começava de novo. Os olhos pequenos e azuis queriam encontrar alguma alegria lá no fundo. Essa alegria vestia uniforme pardo, carimbava as cartas que mandava para um tio distante. Mas logo, ao olhar para Sálvio, tão franzino e absorto na leitura, com as sombras de folhas de laranjeira dançando como a coroa de louros em sua cabeça, as pupilas se apertavam, espantavam essa única saudade risonha. Cuidar do irmão era para ela a única alegria que podia entender. Por isso voltava a bordar o mesmo pintarroxo nos fios do tricô.

Quando ainda eram só uns galhinhos no queixo, Sálvio usava a gola até quase cobrir os lábios. Aliana achou estranho aquele novo modo do irmão. Ele não respondia se ela perguntava. Agora ficava lendo no quarto, sentado diante da escrivaninha. Para a irmã, se aquela presença cabisbaixa na cadeira de balanço, devorando o livro, era uma espécie de deus tutelar do jardim de inverno, ou um anão, desses de quintal, protetor da fonte e das plantas, porque até um gorro de pala azul com uma bola de algodão no topo ele usava, sua mudança para o quarto só pôde ser entendida por ela como um desafeto. Não dava explicações, nem mesmo se virava, não a encarava; ficava ali, exatamente numa imaginária linha horizontal que dividia as duas camas onde eles dormiam. O jardim de inverno não tinha mais importância. Mudou-se com a caixa de costura e os bordados para o quarto também. Espalhava os tubos de linha, agulhas, tesoura, contas de vidro sobre a cama. Só parava de costurar para servir o prato de comida de Sálvio. Punha-o ao seu lado, sobre a escrivaninha, sem poder vê-lo de frente. Já não fabricava tantos bordados como antes, até um dos pintarroxos tinha a asa cortada, havia tempo. Olhava o irmão de costas. Muitas vezes ele erguia a cabeça do livro e olhava pela janela. Se Sálvio tivesse dado seus olhos para Aliana, ela ficaria procurando entre a sebe de espinheiros que separava a rua das casas por Glauciz, porque era a única coisa que o irmão buscara desde que a viu pela primeira vez. As órbitas grandes e verdes eram folhas de cada lado da haste que terminava nas narinas. Daí, até se perder nos cabelos, as pétalas esbranquiçadas se desenhavam em estames irisados, que boiavam na água parada dos ouvidos. Não escutava, não sentia o cheiro do livro velho que tinha à sua frente por mero efeito decorativo, não podia detectar o descascado na madeira do móvel, sobre o qual pousavam seus dedos cheios de nós. Raras vezes, como se um espasmo involuntário tomasse conta de sua mão, ele pegava um pedaço de comida e a engolia sem nem mastigar ou sentir gosto. Seu único sentido alerta passara a ser as duas folhas verdes dilatadas. Chuva, sol, vento, os espinheiros se vestiam e voltavam a despir-se; pássaros migravam de um a outro telhado das casas; pombos se balançavam nos fios. O menino que soltava pipa foi para o jardim da infância, depois para a escola, agora beijava uma moça que o vento fazia uma orquídea no cabelo. Sálvio também não soube, durante esse tempo, que a irmã não velava mais por ele.

O fato é o que o moço de uniforme pardo, que carimbava as cartas do correio, ficou viúvo. E como sempre se sentia encabulado toda vez que Aliana vinha trazer as cartas para o tio que ajudava com dinheiro os sobrinhos, então, um pouco depois que enterrou a mulher, notou que aquela moça calada fazia-o ter certos sonhos quando se encontrava sozinho. Mesmo os cabelos prateados ainda eram compridos e faziam uma moldura agradável no rosto pequeno. As rugas eram vencidas pelos olhos azuis que, mesmo procurando algo que se perdera, tristes, se poderia dizer, ficavam mais vivos se ele dizia alguma coisa para ela. Ele mesmo já não era moço. E disse que gostaria de tê-la ao seu lado, sem nenhum rodeio. Aliana não conseguiu conter as cartas, elas caíram no chão, nunca estivera tão nervosa, os olhos entraram por uma porta que nem sabiam existir, e lá dentro uma mão segurou a sua, quente, forte, generosa.

Ela só não queria que o irmão ficasse ali, sem sombra, olhando lá fora até não sabia quando. Então trouxe a laranjeira para dentro do quarto e a colocou ao seu lado. Parecia que algo ainda pior acontecera com ele, pois as folhas que de costume faziam, há tanto anos, quando lia seu livro no jardim de inverno, uma coroa de louros em sua cabeça, não provocavam mais sombra no irmão. Em lugar disso, as folhas tremulavam no assoalho, aos pés dele, como se o tivessem atravessado, ou como se ele não existisse. Se não fosse por Dantas, o senhor dos correios, apertando com força suas mãos, ela teria desfalecido. Não conseguiu beijar os poucos fios de cabelos brancos de Sálvio, que escorriam sob o gorro de pala azul. Mas teve que conter uma lágrima que insistiu em verter de seus olhos.

 

 

- II

 

Chegou a primavera seguinte, e os espinheiros se pintaram de verde e amarelado. Soprava um ventinho morno, que ia brincando de perseguir os gatos e folhas. De algumas empenas de telhado pingavam gotas de vidro nos canteiros; um pintarroxo saltou de um galho a outro, como se trouxesse no vôo um fio de tricô branco que ficou balançando no céu. A rua estava cheia de gente: velhinhos fumando charutos e brincando com as bengalas; babás empurrando carrinhos de bebês; crianças jogando bola. Do correio, que há muito tempo fora pintado de vermelho na balaustrada da varanda, saiu um rapaz de uniforme, numa bicicleta, cheio de maços de cartas e assobiando. Era como se subisse da rua um vapor quente e risonho. No meio desse quadro, surgiu uma mulher de coque prateado, blusa branca e saia preta, de braços dados com um homem alto, queimado de sol, cabelos lisos e brancos nas têmporas, mandíbula de touro, braços como mastros de navio. Do outro lado, o garoto sardento, num macacão, brincava com o ioiô.

Parece que se dirigiam para o café, quando foram abordados por um sujeito que trazia as golas do casaco suspensas até quase as têmporas. Tinha um gorro azul com uma bola branca no topo. O garoto deu uma volta inteira no ioiô e soltou uma risada.

— É você, não é? — disse a vozinha como de alguém muito cansado.

Aquilo não agradou ao homem, que apertou com mais força o braço da mulher, e perguntou:

— Você conhece esse aí?

— Oh!, disse ela, quando o homem abriu a gola do casaco e apareceu o rosto que só era pele e ossos, com dois olhinhos verdes distantes de cada lado da haste que, na altura do nariz, formava um desenho de flor. As pétalas estavam vermelho vivo, polvilhadas pela neve dos cabelos.

— Olhe aqui, seu palhaço! — gritou o homem. Apertou com tanta força o braço da mulher que ela se livrou dele com um empurrão. Estava trêmula. "Aquele rosto, mas depois de tanto tempo?" — Você não vai ficar assustando minha mulher e meu filho com essa sua brincadeira idiota. Você é maluco? Vamos embora, querida!

— Até que é engraçado, pai — disse o menino. Era gordo e deu um movimento no ioiô que acertou o gorro azul e fê-lo voar da cabeça do homem. Outras pessoas se juntavam para ver e riam também. Um disse: — Mas é o tal doido! Aquele que fica na janela. Há-há! Há-há Há-há!!

— Engraçado vai ser eu quebrar essa porcaria se você não vier logo, garoto. Vamos! — O homem com queixo de touro arrastava a mulher e o filho para longe daquela comédia.

Antes que entrassem no café, o homem com a flor no rosto conseguiu murmurar. A mulher pensou que ele estivesse rezando. Agora ela lembrava-se dele, e um frio correu pelo seu corpo: "Glauciz!". Ela teve sorte do homem não ter escutado.   

 

 

- III 

 

Não teve outro jeito, levantou de novo a gola do casaco e saiu andando pela rua. Escutava ainda umas gargalhadas, mas não ligava para isso. Ia muito devagar, porque as pernas eram tão finas que, se acelerasse o passo, elas poderiam partir. Mas sabia o que tinha de fazer. Parecia um enorme gafanhoto, no casaco de astracã verde, os raros cabelos na testa comprida. Todos da rua o conheciam, era "o homem da janela". Cada passada fazia-o lembrar mais ainda de Glauciz. Aqueles olhos negros, que se esticavam nas pontas, não haviam perdido nada do jeito zombeteiro, mas Sálvio gostava disso. O cabelo prateado não afetara o rosto, era o mesmo, podia dizer que era a mesma menina que ele conhecera há diversos anos. E agora a encontrava de novo. Só não combinavam o homem e muito menos o garoto. Eram muito grandes, quase deformados. Eles cuidavam bem dela? Será que ela escutara ele dizer seu nome? Pela segunda vez? Não importava, tinha aquilo para fazer.

Chegou a um portão entreaberto, do lado de um açougue. Entrou por um corredor coberto de capim estragado, cheio de telhas quebradas e empenas de ferro. Tudo muito úmido e havia um cachorro também, cego e que mexeu a cabeça quando sentiu Sálvio passar por ele. Deu latido tão fraco como se uma bolha estourasse num charco, ruído abafado e pestilento. O corredor dava num pátio, protegido metade dele por um telheiro debaixo do qual um homem gordo, de suspensórios, passava uma demão de verniz no que parecia ser um assento de cadeira. Um rapaz, bem menor do que ele, separava dum monte de cacos de madeira aqueles que serviam para algo. Ambos pararam o serviço quando a figura esquálida se aproximou, num ritmo lento, mas firme. O rapaz foi até o gordo e sussurrou-lhe no ouvido: "Toma cuidado: é o doido!". E soltou uma risadinha pelo único dente na boca.

O homem gordo usava óculos redondos e pequenos, de lentes grossas que achatavam o negro dos olhos como se ele tivesse dois buracos no rosto. A barba negra e crespa tinha pedaços de comida colados. Devia ter digerido ainda há pouco, pois do fundo do telheiro, onde havia uma construção menor, vinha barulho e cheiro de fritura. Uma lufada de vento, atravessando a trepadeira curvada pelos cachos de miosótis, fez ondas no cabelo do gordo. Ele enterrou o pincel na lata de verniz, segurando o assento da cadeira com a outra mão balofa:

— O que o traz aqui, meu velho? — e olhou, com um risinho disfarçado, para o rapaz que fazia com o dedo na cabeça, acima da orelha, um trejeito que margeava o obsceno.

A voz, um chiado longínquo, vindo de anos de férrea persignação, saiu por entre a gola do casaco, agarrada firmemente pelas mãos finas. As lentes do gordo acompanhavam cada movimento do homem à sua frente. Apesar do vento da primavera, suor porejava pela sua banha.

— Você tem que fazer isso para mim. — Com uma das mãos, tirou um maço de dinheiro do bolso do casaco e o dirigiu para o gordo. Este devolveu o pincel para a lata e agarrou as notas. — É dinheiro da minha irmã. Ela deixou para mim. Que descanse em paz. Era uma boa alma ela, não é? — Num átimo, voltou a segurar a gola com a mão livre do dinheiro.

— Isso eu sei que é — disse o gordo, olhando e rindo para o único dente do rapaz. — Mas com esse dinheiro todo você vai casar, meu camarada. Quer que eu faça a mobília toda da casa, meu camarada?

— Só quero um caixão, só um caixão.

— Olhe aqui — o gordo se levantou, erguendo o assento da cadeira como se fosse uma maça. Seu rosto tingiu-se de vermelho e suor ia desprendendo os pedaços de comida da barba. Mesmo com o monte de dinheiro, gesticulava como se estivesse com raiva —, não faço caixão. Faço móvel para gente viva, está me entendendo! Vai na funerária e compra um caixão! — O rapaz com um dente na boca quis tomar a palavra, mas, antes que se levantasse da pilha de cavacos, Sálvio respondeu:

— Se não vai fazer me dá o dinheiro — Só não experimentou, ainda, separar a mão da gola do casaco. O gordo apertou as notas, enterrando as unhas sujas de verniz. Era "dinheiro vivo". Engoliu a saliva espessa. Apesar de ter comido ainda há pouco, sentiu a fome voltar.

— Sem briga, meu camarada. — Piscou para o rapaz, que retribui o gesto. — Faço o teu caixão. E faço bonito. Quando tiver pronto, meto ele onde?

— É só levar ele lá em casa, hoje de noite. Só isso.

E foi se afastando, no mesmo passo lento com que entrou, sumindo no corredor escuro.

 

 

- IV

 

Ninguém deve ter visto os carpinteiros empurrando o carro de madeira coberto com um cobertor e amarrado por cordas. Fizeram tudo bem de noitinha, para não provocar a conversa fiada. Mas se alguém visse, e daí? Iam contar a verdade, que o maluco pagou em dinheiro vivo um caixão. O gordo, enquanto atravessava a rua deserta, iluminada por uns poucos lampiões, imaginava a cara de felicidade da mulher quando contasse que ia levar ela para ver a roda gigante. Porque o único sonho dela era voar naquela roda que não parava de girar nunca. Devia dar para ver a lua e até agarrar uma estrela, se fosse o caso. Só aquele dente na boca solitária é que não estava satisfeito nenhum pouco. Mas era sempre assim, aquele velho de barba suja abocanhava a melhor parte. O que ia poder fazer daquela miséria de trocados? Quase chegando na porta da casa de Sálvio, já maquinava como seria fácil procurar onde o gordo guardava o dinheiro. Fugia para bem longe e ia rir para valer.

— Bate na porta, hein? — o gordo passou as costas da mão na testa suarenta. Um grilo cantou pelo mato. Algumas janelas da rua permaneciam acesas, mas ninguém nelas.

O rapaz deu um toc-toc na porta, mas ela estava aberta. Houve o rangido dos gonzos e ela deixou escapar um cheiro envelhecido e poeirento. Sem saber porque, o gordo teve medo nesse instante. Já tinha ouvido contarem umas histórias de pessoas desse tipo que matavam os outros. Com ele não devia ser diferente, o dia inteiro na janela olhando não sei o quê. E a mania de andar com a gola do casaco levantada. Não contaram que hoje viram uma flor pintada no rosto dele? O suor gelou. Podia desembrulhar e deixar o caixão ali mesmo. Só que queria descobrir aonde aquilo ia dar. Por isso pediu ajuda ao rapaz para tirarem o caixão da carreta. Não foi difícil passearem com ele pela casa, porque ela quase não tinha móveis e uma luz esmaecida, proveniente do quarto, ajudava-os a não tropeçarem naquela penumbra. Um outro cheiro fez o gordo e o rapaz se sentir enjoados, e foi ficando muito mais forte quando entraram no quarto. Cheiro como de um perfume excessivo.

Uma vela, em cima da escrivaninha, projetava um círculo de luz sobre a parede na qual se encostavam duas camas de solteiro. Na primeira, viram o casaco verde, calças, meias e sapatos. Ao olharem para a segunda, o susto foi tão grande que as mãos dos carpinteiros se abriram num espasmo, deixando o caixão estrondar no assoalho. A leve brisa de primavera, trazendo da rua o cheiro dos espinheiros e do miosótis, fez um carinho no rosto de menina de olhos negros, desenhada a lápis na página de livro sobre a escrivaninha. Depois, diante das duas figuras de olhos arrepiados, paralisadas para sempre no medo, o vento despiu delicadamente as roupas e deitou-se ao lado do lírio, hirto sobre a cama, para aquecê-lo. A flor do tamanho de um homem, em cujas pétalas as sombras dos galhos secos e espinhentos da laranjeira formavam uma coroa.

 

 

 

 

 

março, 2007

 

 
 
 
 
Leonardo Vieira de Almeida é escritor, Mestre em Literatura Brasileira e Doutorando em Literatura Comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Autor do livro de contos Os que estão aí (Ibis Libris, 2002), e co-autor do livro À roda de Machado de Assis: ficção, crônica e crítica (Editora Argos, 2006). Tem contos publicados no suplemento literário Rascunho, do Jornal do Estado do Paraná, no jornal Panorama e nos sites literários Paralelos, Bestiário e Cronópios e Confraria do Vento. É também tradutor e mora no Rio de Janeiro.
 
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