A última vez
que a garota veio vê-lo parecia fazer tanto tempo que, por fúria ou em
sinal de castigo, ele
mordeu suas costas até deixar nelas várias manchas circulares,
assim desenhadas por
causa dos arcos dos dentes, e que, por sua vez, formavam um outro círculo, maior e mais
perfeito, urdido com a simetria dos que acreditam no método acima de tudo. Ela aceitou a
fúria, ou o castigo, com olhos semicerrados e as sobrancelhas franzidas dos sofredores, erguendo,
enquanto isso, o quadril livre das manchas como uma tela em branco, esperando a destreza dos
dentes nas nádegas,
embora estas nunca, nunca mesmo, por mais forte que fosse a violência
recebida, exibissem
quaisquer sinais de maus-tratos. "Feitas para apanhar", dizia ele
das nádegas, tomando a
parte pelo todo. Hoje ela está atrasada e por um momento ele suspeita que ela não venha, que
não venha nunca mais. Depois, entre um gole e outro de alguma bebida, ele se anima e acredita que
sim, que ela virá, que, ali, no lugar que erigiram para a profanação, o espaço exíguo de uma
cama, ela precisa tanto
do sofrimento quanto ele precisa ferir. Não se trata de um sofrimento
qualquer, infligido a
qualquer um que o suporte, mas nela, que, apesar das fortes nádegas, não é nem jamais foi, e ele o
sabe, talhada para a dor. O que ela suporta, pois, é como o heroísmo dos queimados vivos. Ela
tampouco permitiria que outro a ferisse, porque ele, com seu método, tem a medida exata ao
calcular o peso que depositará nas próprias mãos, grossas e largas, feitas para
espancar, quando o chicote descreve no ar uma parábola, e só a ele, que lhe
descobriu a vocação servil, cabe o direito à propriedade. Enquanto aguarda, ajeita
delicadamente no aparador
da entrada o maço de flores que comprou para ela, cantando repetidas
vezes os versos you
who wish to conquer pain, you must learn what makes me kind... com todas as suas
variantes, e imagina-a entrando porta adentro, esbaforida, correndo para beijá-lo, tropeçando nos
móveis, cheirando as flores e falando da visceralidade do último filme a que assistiu, do livro
que está lendo, do poema
que tentou escrever, sempre viscerais como o filme, porque essa é a
única coisa que a atrai
na arte. Eles conversarão então sobre livros e ele lerá, a pedido
dela, mais algum capítulo
de um romance interrompido na última vez. Beberão vinho e irão para a cama, onde costumam
passar horas seguidas dedicados não apenas ao estetismo de seus corpos mas às trivialidades do
cotidiano, às memórias vividas, que não raro despertam lágrimas e um poderoso
sentimento de redenção. No começo, ela lhe beijará os pés por entre os dedos, deixando
um pequeno rastro de saliva na superfície sinuosa, para depois se deitar sobre o peito dele,
brincando com seus pêlos,
devagar, como se já ensaiasse o sono que os afastaria. Ele a apertará
contra si num gesto quase
brusco, como que para despertá-la, cravando as unhas em suas
costas até que no rosto
dela se possa ver, com o canto do olho, a expressão de mártir. Com rapidez, alcançará uma
sacola embaixo da cama, onde guarda o chicote, as cordas, correntes e algemas. Já não percebe a
progressão na intensidade dos seus gestos que, de um tempo para cá, têm feito mais altos os
gritos dela e mais duradouras as feridas. Com uma longa corrente, ele a amarrará dos
pulsos erguidos no alto
da cabeça aos tornozelos, criando motivos geométricos cuja intersecção
se dá entre os seios,
sobre o ventre e no meio das coxas. Apertará os mamilos com pregadores de roupas que ela recusará
num primeiro momento, mas que, logo em seguida, ela mesma irá alcançar e estender-lhe com
a boca, para seu regozijo. Ainda presa, mas com os seios soltos, terá seu corpo, incapaz de
movimento, virado de bruços e espancado até a exaustão dos braços dele. Ele, logo que
detiver os olhos em suas
costas, admirará todos os ferimentos que causou, pensando que ela, sem
dúvida, fica muito mais
bonita assim, com o sangue na superfície da pele agora avermelhada corando sua eterna palidez
de morta. Mas à dolorosa contração dela ao seu toque de carinho, será tomado pelo desespero
dos sonâmbulos que despertam depois do crime. Arrependido, ele se amaldiçoará,
ensejando o movimento de
recolher todos os instrumentos do sortilégio e levá-los para o lixo, na
impossibilidade de
arremessar lá, também, as próprias mãos. Ela o deterá, advogando que antes o sofrimento na
cama do que fora dela, e ele, por fim, instaurando o momento em que o ideal de cada um,
tão oposto mas tão complementar, conflui para um mesmo ponto, cuidará de suas
feridas, uma a uma, com
zelo de samarita. Se ela vier.
março/
2006
Mais Leila
Guenther em Germina > Contos
Leila Guenther
reside em Campinas. Graduou-se em Letras pela Universidade de São
Paulo, onde foi finalista do Projeto Nascente, na categoria texto,
nos anos de 1999 e 2002. Teve alguns de seus contos publicados na
revista Ciência e Cultura,
em Jandira
— Revista de Literatura e no jornal Rascunho.
Prepara a publicação de seu primeiro livro, O vôo noturno
das galinhas.