©wilson neves
 
 
 
 
 
 
 

 

 

Desta vez chego sem voltas. Acabo de cortar o parágrafo que abria este conto,  a  introdução considerável que escrevi para evocar prima Jaci e nossos jogos-meninos. Explicar quem é Jaci, como fomos parar na mesma escola e na mesma casa depois da morte da avó, como isso e como aquilo, até que o miolo das coisas se perca, se esfarele em minhas mãos, desta vez não.

 

Digo apenas que eu e Jaci, quando crianças, gostávamos muito de cantar, e como perturbávamos demais os semelhantes e dessemelhantes com esse costume que nos arejava a alma, desenvolvemos uma habilidade notável, de modo que nos passeios com a turma do colégio, no ônibus ou metrô, conseguíamos às vezes cantar uma estrofe inteira de boca fechada ou quase, os lábios se movendo de forma imperceptível, o suficiente para a passagem do som, que como um gato se alongando entre grades flanava pelo coletivo, encafifando uns e outros. No final da estrofe, a coisa começava a pegar. A turma se olhava com ares de quem ouviu o galo cantar, sem saber onde. Não haveria, para nós, aplauso mais lisonjeiro.

 

Com a corda toda, passávamos para a segunda estrofe, abusávamos do volume e da sorte, até que o professor se levantava, olhos e dedo em riste, buscando o criminoso. Acabávamos delatados, não pelos colegas, mas por nosso ar de bem cuidada inocência.

 

Já quando tomávamos o metrô sozinhos, a tática era outra. Buscávamos bancos separados e, com um rápido olhar, decidíamos a música. Começávamos baixinho, com o trem ainda parado, mas já de portas fechadas. Depois ele partia, ganhava velocidade e nós volume, num crescente, fortíssimo, fortissíssimo, até o máximo, além do máximo. Daí chegávamos à próxima estação, ou ela que chegava a nós, de vez em quando era assim que acontecia.

 

Com o trem de portas abertas e nós de goela fechada, esperávamos o próximo ato. Nesse momento, que precedia a continuação do jogo, aprimorávamos nossa arte, exercitando em bocca-chiusa a próxima melodia, para que a voz, liberta, fosse de novo o gato que vencendo as grades ganhasse a rua e uma boa farra. Em palavras outras, para que nossa música tocasse o passageiro ao lado que, se portador de bom ouvido, daria um sinal de vida, ou seja, nos olharia de relance, com aquela dissimulação — que nunca enganou ninguém — travestida de bom-tom.

 

Quando isso acontecia, quando o passageiro ao lado nos olhava de lado, era uma alegria só, porque a ponte estava armada e isso nos franqueava outro estágio do jogo, muito mais arriscado, um pulo no vazio, o contato. Para confirmar a legitimidade do dom musical, ou ao menos auditivo, do passageiro, repetíamos o primeiro estágio... O metrô parava e nós também; o metrô começava a andar e nós começávamos a cantar; o metrô acelerava e nós também; o metrô gritava nos trilhos e nós gritávamos como loucos; e com o coração aos saltos, em contraponto com o ar impassível e a boca-de-siri, recebíamos a resposta: se o passageiro nos olhasse de repente, na nota mais aguda e com indisfarçável estranheza, a confirmação ali estava. O homem tinha ouvidos mesmo. Se não, se abrisse um jornal ou mexesse na carteira ou apenas consultasse o relógio, indicando uma disposição de indiferença... final de jogo.

 

A dificuldade seguinte resumia-se em controlar o impulso de chutar a canela do pobre idiota, ou gritar um palavrão. Era um parceiro que não valia a pena. E quase não havia nada que nos deprimisse mais.

 

Agora: se estivéssemos com sorte, se o parceiro chegasse junto — como costumávamos dizer —, mostrando-se mais curioso ainda, aí sim, o jogo decolava, coisa de veteranos, não de principiantes. Dividíamos esse estágio em sete tempos: 1, entrega-se o intrigado. 2, posicionam-se os palhaços. 3, vamos ver essa esperteza. 4, é mais que certo que o tipo não tira os olhos de nós. 5, que vai fingir-se atento ao geral. 6, menos ao que realmente lhe interessa. 7, porque agora tudo pode acontecer.

 

Desfechos memoráveis não faltam para coroar os jogos daquele tempo, desde um maestro que nos levou para um coral formado por ex-delinqüentes e bancado pelas bibliotecas municipais, com direito a uma bolsa que era quase o que meu pai ganhava nos Correios, até uma encrenca dos diabos, uma dona dizendo que era professora de violino e nós encantados, porque eu sempre quis aprender violino, pinicar aquelas cordas, empunhar aquele arco, seria minha chance, eu pensava, a anos-luz da realidade, mas a mulher só queria nos seduzir, e não estou falando daquela trepadinha rápida, isso aí geralmente me agradava, Jaci não, fazia um drama danado, já eu era tranqüilo, a sedução que me arrepiou foi o negócio dos escoteiros, a dona era chefe-não-sei-do-quê, quando dei por mim havia me empulhado um hino pavoroso; com a desculpa das aulas grátis arrancou-me a promessa de que no dia seguinte, às cinco da manhã, eu estaria na praça para hastear a bandeira e prestar juramento, mas acordei a tempo. Já o mesmo não se deu com Jaci, que acabou embarcando na estória a sério, e isso durou meses, com severo prejuízo de nossos jogos a dois, todos eles.

 

Depois, não vi mais a prima Jaci. É verdade que nos encontrávamos naquelas reuniões de família, todo mundo sabe que quase não há como escapar... Nos encontrávamos, mas não voltamos a nos olhar com aquilo que, para mim, era a mais-valia de nossa infância desperdiçada por tanta aporrinhação da ala séria da família que agora cobrava, de nós, a continuação da novela: tínhamos crescido e pretendíamos o quê? Sempre achei difícil, senão impossível, responder a isso. Eles, não. Pareciam ter certeza do que queriam: que atormentássemos os pequenos com a mesma gana que tinham nos dedicado. Recusei-me e, ao que parece, Jaci também. Nunca nos casamos. E se tivemos filhos foi por aí, fora dos sagrados laços com que as famílias sufocam seus bebês, manufatura de imbecis em franca progressão. Não há como escapar, dizem eles a qualquer sinal de rebeldia, por mais tímido que seja, até que a incansável repetição estabeleça de vez a desesperança, levando a crer que não há porquê. E perder o porquê (assim falou Jaci, num porre de Páscoa) é perder o eixo. Eu não seria tão veemente. Não fui.

 

Agora, depois de todos esses anos e eternidades, a caminho de um fim que me assusta quase tanto quanto me seduz, um dia ou outro, quando acordo de bom humor, eventualmente esquecido do desconforto e das dores, arrisco uma viagem de metrô e volto a jogar... É verdade que já não sou meticuloso na escolha do parceiro, que me sento em qualquer banco (muitas vezes quase me sentam, porque todo mundo sabe o quanto é insultuoso um velho recusar tamanha gentileza), enfim, não sou mais aquele veterano. Que falta me faz Jaci, alguém a quem piscar um olho. É verdade tudo isso. Mas quem é rei não perde o cetro, o sestro da majestade, ainda sei cantar de peito aberto e boca fechada.

 

O problema não é esse. O problema é que ninguém liga para um velho cantando no metrô. Nesses tempos de obsolescência programada, ou já em qualquer tempo, não há viagem que sempre dure nem loucura que nunca se acabe.

 

 

 

[Do livro Volições. Ilustrações de Wilson Neves e fotos de Marjorie Sonnenschein.

São Paulo: Massao Ohno Editor, 2007]

 

 

 

setembro, 2007

 

 
 
 
 

Yara Camillo (São Paulo-SP, 1957). Formada em Comunicações pela Fundação Armando Álvares Penteado — FAAP, com especialização em Cinema. Publicou Volições (São Paulo: Massao Ohno Editor, 2007) e Hiatos (São Paulo: RG Editores, 2004). Tradutora, contista premiada, participa de várias antologias e sites de literatura.

 

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