©gustave dore

 

 

 

Madna so sotap mes sotapas.

                                       

Antiga sabedoria egípcia

 

 

 

DEDICATÓRIA

           

A vós, ó lambedores de bota, que vos encomendais aos poderosos, discípulos de Maquiavel e do cardeal Mazarin, que sucedeu a Richelieu, e que escreveis dedicatórias à maneira de Ariosto: ao ILLUSTRISSIMO E REVERENDISSIMO CARDINALE DONNO IPPOLITO DA ESTE, complementada com isto, SUO SIGNORE; a vós, ó miseráveis, que viveis a vida a apertar os cintos e nunca achais agrado em coisa alguma neste prado de espinhos; a vós, ó poetas reverentes ao Dicionário de Rimas e a vós também, poetas de efeito, fábricas de máquinas falantes, sem gosto nem graça, que fraquejais no ritmo e nas idéias, ocos como um balão, inflados de vazio; a vós, filósofos que transpirais palavras inúteis e a vós, filósofos baratos de Universidades, Cafés e Cinemas; a vós, ó estupenda Erudição, que deitais os braços peludos sobre os textos e os emporcalhais de minúcias inúteis; a vós, ó Ignorância magnífica, que sorrides graciosa a toda asneira; a vós, que não sabeis nada de coisa nenhuma e a vós, que sabeis tudo a respeito de tudo; a vós, enfim, não dedico sequer uma palavra das que ainda não declinei neste opúsculo.

        

Advertido pelas palavras sábias do sábio agitador Martim Lutero, que disse: se não vos agradam vinhos nem mulheres, sois um sujeito reles, dedico então estes tratados do monstro Antifísio, esta farmacopéia perfeita, aos vinhos e às mulheres.

 

 

OS NOMES

           

Primeiro as coisas primeiras. Começo com um amigo, que prefere ficar anônimo e me pede que escreva sobre o curioso assunto dos nomes, que ocupou a inteligência humana desde os mais remotos dos dias, quando Deus ordenou a Adão que nomeasse o seu em torno e o proveu de linguagem, passando pelo nome a que se atribuem os primeiros nomes em poesia ocidental, e que se chamou Homero, e de quem se diz que era cego, de modo que os sons valiam mais para ele, desamparado pela visão, que para outros, invadidos daquela qualidade todo o tempo.

 

Os nomes, como tudo mais, possuíam estreita ligação com aquilo que pretendiam enunciar na emissão de voz. Há quem leve a questão muito a sério. Desses, há quem deseje mesmo provar que a linguagem e a coisa eram uma unidade indissociável, atômica, o que é um disparate perfeito. Para mim, como para Platão, os nomes são a sombra de uma sombra, pois o nome figura novamente em linguagem a coisa prefigurada na mente como pensamento. Mas isso tudo excede em muito a qualidade do nosso humilde raciocínio, que é a sombra daquelas sombras ensombradas, pois reflete, no terceiro espelho da reflexão, o nome.

 

Há nomes inadequados, pois assim como não é possível prever o que será feito daquilo que se nomeia, do mesmo modo, o nomeado tem pouco o que fazer do nome que lhe atribuíram. Disso dou o exemplo muito interessante de um certo Modesto que conheço de nome e não reconheço em reputação, pois não lhe cabe o conceito que o nome invoca, e foi a infelicidade mais jocosa a de seus pais, que certamente não desconfiavam do destino do filho e lhe insinuavam, pela sugestão embutida em cada momento que o mencionassem, o decoro em relação às próprias capacidades. Nem atinou o sujeito com aquilo que o nomeava, nem assistiu boa sorte à sua nomeação, que, dessa maneira, ficou descomposto pelo mundo e por si mesmo. Ou Letícia, em que os pais inadvertidamente influem a felicidade (lt. lætitia, ou "alegria") e que pode ou não ter a possibilidade de cumprimentar os dias com um sorriso.      

        

Porém, fazem-se notar, com não menos freqüência, nomes que autorizam quem os apela a pensar precisamente o que significam, e assim é que alguns se chamam Bandeira e perseguem sofregamente a popularidade, a todo custo, e se mostram ao mundo repletos de cores, e brilham tanto ao sol que não demora estarem desbotados e com uma cor amarelada, o que certamente não foi o caso de Manuel Bandeira, tímido inveterado, que passou oitenta anos pensando que morreria no dia seguinte. Ou, por exemplo, Márcia, quando se encontram mulheres com esse nome que lembram sempre e a qualquer um o deus latino da guerra. Esses dois últimos nomes demonstram satisfatoriamente que há nomes adequados àqueles que os carregam na identidade e que, portanto, não só ocorre de se entender um nome pelo seu avesso como também de modo cursivo.

        

Há também aqueles nomes que a ironia e o carinho encurtam e aumentam, segundo comanda o afeto e a maldade.

 

Dessa forma é que correm por aí versões abomináveis sobre (Mar) Mota,  motejado por um espírito livre e desocupado, pois todos sabem que aquele que se ocupa do trabalho e imprime em sua vida o costume discreto da rotina não se atém a essa espécie de diversão ao mesmo tempo barata, e cara: barata a quem a exerce, cara a quem a recebe, pois, depois de ter recebido a injúria é ainda necessário livrar a cara, o que sai caro. Esse é um exemplo de nome que se estende com a justificativa da graça. Também à graça devemos o encurtamento carinhoso dos nomes, mas à graça graciosa. Assim, portanto, temos que se encontra freqüentemente quem chame Bela a uma Isabela, o que, segundo o preceito da proximidade e do afeto, reduz o apelativo e ainda nos restitui um jogo de sentido.

 

Entretanto, pode perfeitamente ocorrer que esse critério de intimidade acabe por derivar as coisas de maneira imprópria, e outra coisa não é o apelido. O apelido encontra sua expressão num tipo de chalaça, de piada evidente e de apelo popular, pois serve àqueles que, por um desvio explicável, têm a necessidade de dissolver a intimidade em caricatura. A caricatura é uma redução ao pior, pois acentua os traços característicos que, dessa forma, perdem as proporções naturais e emprestam as da deformidade, por isso, e por isso somente, engraçadas. Então a caricatura representa anões com cabeças de gigante, narizes que crescem do rosto como fossem pepinos, os olhos enfiados na testa, os cabelos como espigas de milho, e tudo ganha uma metáfora no lugar da propriedade, de modo a figurar no indivíduo aquele caos inicial de todas as coisas, misturadas e indecisas entre a humanidade e a brutalidade, como demonstra a pintura de Arcimboldo, em que a maioria das pessoas está figurada como uma grande feira ambulante. Seu senso de humor foi sempre impune, tal o desejo das pessoas de se verem representadas de modo bizarro, e de outra forma não se explicam aqueles espelhos convexos de circo, diante dos quais não raro se vê muita alegria e diversão, que os velhos chamavam bulício.

 

A propósito do apelido: naturalmente, sua prática demanda algum engenho, que é coisa artificial. E, assim, aqueles cuja dentadura é proeminente são chamados Dentinho; aqueles demasiado afobados ganham o apelido de Jovem; os beberrões, Esponja, ou Manguaça, ou Pé-de-Cana; os gordos, Bola; os magros, Palito; os cabeçudos, Horácio, ou Jerimum, ou Cebola; os nanicos, como ouvi certa vez, Criado-Mudo, etc. Esses foram os de tipo mais comum, fáceis de encontrar. Mas há sempre aqueles que, além do hábito intolerável de impingir aos outros suas idéias extravagantes, ainda têm a pretensão de que sejam únicas e assim é que se encontram apelidos de extraordinária fatura, praticamente incompreensíveis aos que não estão familiarizados com o engenho que o engendrou. Embora raros, pois ao apelido se propõe à piada pública e a humilhação generalizada, eles de fato existem e se prestam a diversões mais recônditas, p.e.: Bervê, Rado-Nato, e outras coisas incompreensíveis.

 

Por fim, é necessário fazer ver que o nome é uma atribuição e não algo em si. É o que empresta sua natureza de convenções mais ou menos civilizadas, e daí a discussão — apaixonada e meio demente, como toda paixão — de que língua possui mais propriedades poéticas, mais sutilezas no dizer, e etc. Não foi de outra matéria que Dante Alighieri compôs o De Vulgari Eloquentia, o que o indispôs com boa parte dos italianos, ofendidos pelo autor a cada momento em que se colocava na posição de avaliar qual volgare era o mais apropriado a corresponder ao idioma da nação (talvez império, segundo o que sonhava o seu sonho gibelino). E disse mal dos romanos, dos aretinos e de muitos outros.

        

Enfim, se no princípio era o verbo (não o discurso, mas o nome indizível, isto é, IHVH), no fim é apenas Babel, andaimes com pessoas que chegam ao céu sem se entender.

 

 

DA TRAIÇÃO, DOS TRAIDORES, ETC.

           

Ninguém vai acusar de traição quem há muito vem odiando sem segredo e deplorando em público. A traição é um ato nobre, como fica óbvio pela expressão popular matou à traição, que é matar pelas costas, ou em condições demasiado favoráveis de um sobre o outro, o que implica nobreza. Me explico: é que todas as mortes trágicas são desfechadas por traição, e nelas estão sempre envolvidos personagens famosos e de linhagem nobre e apreciável, o que nos leva a crer que a traição é um ato nobre e digno da atenção de todo o mundo.

 

Assim, foi traição fratricida o que levou Caim a matar Abel e depois a viver miseravelmente, perseguido pelos olhos imensos da consciência, como diz Victor Hugo em La Légende des Siècles; Judas Iscariotes traiu o Cristo com um gesto íntimo, que foi o beijo no rosto, o chamado ósculo ou beijo fraterno, e se trata de traição porque Judas era seu apóstolo e dividiam a mesma fé e a mesma mesa; Júlio César foi traído por todo o Senado e por seu filho adotivo, Bruto, cujo nome era, em si, uma acusação ou ao menos um mau presságio, tão em moda naqueles dias de SPQR, mas que foi ignorado por César até o trágico tu quoque, filii?; traição também o que Foulquet de Marseille, troubadour, ao se tornar bispo, fez com seus companheiros de trobar, condenando-os com o nome então amaldiçoado de pagãos (é dito que se o condenado recitasse de uma enfiada cem versos de sua canção à nossa senhora estaria absolvido, mas acho que isso é um mot d'esprit desses incorrigíveis franceses); Marat foi morto por traição em sua própria banheira, numa cena algo patética retratada com gélido requinte por Jacques-Louis David, pelo motivo de que a mulher que o matou fingia levar-lhe uma petição para assinar, ou ao menos foi isso que a tradição, essa voz sem boca, disse ter ocorrido; e hoje os capitalistas em geral se atraiçoam uns aos outros porque o dinheiro não faz amigos, mas investidores. E assim por diante. A traição deve ser compreendida como contra a natureza e não contra a circunstância. A traição é um gesto nobre e trágico, praticado por pessoas nobres, trágicas. A primeira traição de que se tem notícia foi a maior e a mais nobre de todas, quando o anjo Lúcifer, o iluminado, quis imitar o próprio deus — ou, segundo Enoch, por ceder de bom grado à luxúria com mulheres — que, num daqueles seus costumeiros rasgos de ira, o rebaixou e o condenou a dominar as partes infernais — detracta est ad inferos superbia tua, como se lê em Isaías, 14:11 —, o que é, de certo modo, reconhecer o seu valor. A traição é um ato nobre: é por isso que há tanta traição no teatro grego e é por isso que as peças de Shakespeare são tão sangrentas. Há muitos nobres juntos.

 

Agora, se a tua esposa (ou, no caso de seres mulher, teu marido) for apanhada no leito com outro homem que não tu, ela não te traiu, ó estúpido, que por circunstância é o marido (ou a esposa), não por natureza, já que nenhum dos dois nasceu casado com outro. Isso é o drama do século XIX e é um outro assunto.

 

 

O ERRO DA LUA, OU, O AMOR

           

O amor, tal como o conhecemos, foi uma invenção trovadoresca que partiu de um poeta desprezado pela mulher que, como se diz, amava, o que em galego-português se chama coita d'amor: um sofrimento gozoso. São inumeráveis as canções medievais em que aparece a expressão, de tal forma que alguém pode pensar num sufoco sentimental, ou pode pensar, se for mais requintado, que Eros, ou Amor, aquele menino que anda a mostrar o cu, como diz Gregório de Mattos em "Definição do Amor", desperdiçou milhares de flechas e seu arco trabalhou como nunca antes.

 

Para o completo entendimento do que nos moveu a acreditar que o amor provoca sintomas próximos à doença, deve-se recordar a outra figura, a da mulher na poesia medieval, a dame sans merci, ou a dama impiedosa. A mulher, pouco importa o que pudesse acontecer, era inflexível moral e fisicamente, o que, entenda-se, provocava a coita d'amor, que é o poeta ficar se lamentando por causa de uma dessas cortesãs virtuosas que o ignora sistematicamente.  A esse lamento nós chegamos a dar o nome, talvez por metonímia, de amor. Chateaubriand, que era um romântico, disse que os homens modernos, langorosos, diferem dos antigos, vigorosos, pois têm passado mais tempo junto às mulheres, e as mulheres os contaminaram de sua natureza plácida e sensual, no que ele orgulhosamente se incluía.

        

Alguns poetas da região da Provença, sul da França, estabeleceram até onde deve ir o empenho por uma mulher, perdão, pelo Amor.

        

Peire Vidal, que escreveu as mais belas canções do mundo, foi um dos homens mais loucos que esse mesmo mundo conheceu, como diz uma sua biografia do século XIII. Apaixonado pela Loba de Peugnautier, uma dama impecável, vestiu-se com uma pele de lobo e saiu uivando para a lua pelas montanhas até que uns pastores, com mastins e lebréus, deram-lhe uma bela lição. Foi levado à presença da Loba, que, quando o reconheceu, todo ensangüentado, rolou de rir. Ele escreveu estes versos, que eu traduzo:

 

E se lobo me chamais,

Não me causa um grande horror,

Quer me bata até um pastor,

Quer me cace em matagais.

 

Guilem de Cabestanh, que escreveu as mais belas canções do mundo, foi um dos maiores infelizes que esse mesmo mundo já viu. Apaixonado por Soremonda, mulher de um homem rico e furioso, o que é uma péssima combinação, acabou por ter descoberta a sua prática de adultério e, certa noite, quando caminhava desavisado por um bosque à luz da lua — hábito comum a todos os poetas, como sabemos — topou com o marido furioso, não por acaso, acompanhado de seus homens. Foi passado a fio de espada: o coração e a cabeça de Cabestanh foram arrancados ao seu corpo. Com o coração, o marido fez um prato delicioso que serviu, com malícia desumana, à mulher. Quando lhe revelou de que se tratava o manjar, lançando a cabeça do trovador a seu encontro, ela disse:

        

Senhor, fizeste bem em me servir tão boa comida, pois jamais comerei outra.

 

E se jogou do alto balcão para a morte.

 

Esses exemplos são terríveis, mas tudo continuou ocorrendo da mesma maneira. Os românticos atualizaram a história, e após a publicação de um livro inocente como Os Sofrimentos do Jovem Werther, do sábio alemão Goethe, no século XVIII, houve centenas de suicídios entre os rapazes que se identificavam com aqueles sofrimentos (ao que a psicologia moderna dá o nome de transferência). Victor Hugo distraiu as pessoas com um romance, Notre Dame de Paris, que fez de conta que contou uma história medieval e pôs no tablado três ou quatro formas de amor centradas naquela belíssima cigana, chamada Esmeralda; tudo para dizer que o horrendo e surdo corcunda Quasímodo foi o único que em verdade amou, o que hoje achamos bastante discutível, porque no fim do enredo sabemos que ele praticou o ato nefasto da necrofilia, que consiste em amar os mortos como se estivessem vivos.

 

Não posso compreender nada disso com a minha razão. E eu me pergunto, enfim, o que matou Romeu & Julieta? Uns respondem com sarcasmo que foi a burrice de Romeu, o que não está longe da história shakespeareana, mas eu considero que tenha sido o amor, ou a paixão, que é como as coisas se confundem e não se encontra explicação para uma nem para a outra. Foi esse mesmo instinto de paixão que pôs no cérebro de Othello, o mouro de Veneza, uma nuvem negra e tempestuosa, gerada por aquele erro da lua que sofreu a pobre Desdêmona, pois a lua — e aqui está a explicação para o amor — a lua tem uma influência tremenda sobre os humores, como você deve ter percebido até agora, a ponto de levar uma pessoa a se contrariar intimamente. Com freqüência ouvimos dos arrependidos as seguintes palavras: "Mas o que foi que eu fiz?", palavras tão dramáticas diante daquilo que, por estar resolvido, não apresenta mais solução; a culpa é da lua, que não só rege as marés e a menstruação, como também o tempo das colheitas e os períodos propícios para cortes de cabelo, além dos crimes trágicos. Deve-se lembrar oportunamente que a lua chifruda é Diana, a deusa caçadora e pudica, que vê com maus olhos não a luxúria, mas até mesmo um simples contato entre os lábios de duas pessoas.

 

Porém, e a despeito disso tudo, a humanidade não tem apenas um comportamento padrão, ou não teríamos surpresas desagradáveis nem sequer surpresas. Há os homens de pênis eretos nas pinturas de festas, de Brueghel, e há as vaginas coloridas que Egon Schiele, digamos, pintou. Há quem tenha dito, no mesmo estilo de Gregório, como vimos antes a respeito do menino Eros, algo como: Poiché tutti per fotter nati siamo, isto é, "Pois todos pra foder foi que nascemos", e esse foi Pietro Aretino, em pleno século XVI, nos chamados Sonetti Lussuriosi (e também i Modi), série de sonetos em que descreve posições sexuais e narra a conversa íntima de casais, com o perdão da rima. E há também aqueles que, tomados por um sentimento não mais auto-destrutivo, mas ainda assim destrutivo, saem a difamar quem uma vez amaram e agora passam a odiar, o que soa tão mal ao ouvido das pessoas refinadas. Catulo, uma vez furioso com a terna e mimosa Lésbia, se comportou de modo rude e deselegante, dizendo no poema de número 58, dos carmina (perdão para com as humildes traduções nestes tratados):

 

            Célio, a nossa Lésbia, aquela Lésbia,

            A Lésbia, única a quem Catulo amava

            Bem mais que a si mesmo e a todos os seus,

            Agora, lá nas esquinas e nos becos

            Chupa os filhos do  magnânimo Remo.

 

O que é uma mudança e tanto para a menina daquela história singela de passarinho do poema no 7, a menos que eu tenha entendido mal o tal poema, e nesse caso a culpa é minha, Catulo sempre foi o mesmo e não se fala mais nisso, pois todas as pessoas são passíveis de erro. Um erro da lua, por exemplo.

 

 

AS ARMAS, & OS BARÕES

 

Sei muito bem, pela experiência em lidar com assuntos muito apaixonantes, que vai haver quem diga, de nariz torcido: "Ele nem encerrou o motivo do amor e já começa a falar de algo diametralmente oposto, que é a guerra".

 

Como disse Machado de Assis, endireite seu nariz e vamos ver o que posso fazer por você (e a guerra não seria o oposto do amor, pois como o próprio Góngora explicou: a batallas de amor,/ campo de plumas).

 

Quero falar da guerra. Quero falar das trombetas soando por todo o vale, os pavilhões e estandartes erguidos no alto, o tropel de cavalos e homens ensandecidos, os gritos de guerra cortando o azul do céu, as armaduras brilhando contra o sol, as lanças varando corpos sangrentos. Mas não há nada disso. Quem lhes disser tal coisa está obviamente mentindo, a menos que tenha nascido há mais de seiscentos anos e então não poderá falar, porque sua boca estará repleta de terra. Os homens mais velhos de que se tem notícia, apenas por informação: Matusalém teve 400 anos de vida, o que levou em costas curvadas; Charlemagne, ou Carlos Magno, grande general, grande guerreiro, tinha 400 anos quando lhe morreu o tolo mas entrépido sobrinho Roland, na armadilha vingativa do maldito Ganelon, o covarde, como lemos na Chanson de Roland. E Camões fez boa poesia de feitos de armas, que é como se pode encontrar em todo o seu poema épico, de quatrocentos e tantos anos.

 

Pulo a guerra de Tróia porque teve muitas implicações: o rapto de Helena, as malandragens de Ulisses, o cavalo de Tróia, a ira de Aquiles, a fuga de Enéias, a fundação de Roma, etc. Pulo também o delenda est Carthago, pois para justificar o fato de terem dizimado tudo quanto havia lá, os romanos se valeram de um expediente patético, que foi o de inventarem que os cartagineses eram um povo fero, que sacrificava crianças, que açambarcava todos os despojos do inimigo, que era sanguinário, usurário, etc. Para que o leitor veja que a propaganda de guerra não foi inventada nem por Goebbels, nem pelos estadunidenses.

 

Então direi apenas que a guerra é lamentável, embora  Marinetti tenha dito que é a higiene dos povos, uma expressão de tal modo confusa que é de se perguntar com o que Marinetti se limpava. Mas disse que a guerra é lamentável porque uma senhora que me dava aulas de latim e admirava os moralistas franceses do século XVII sempre dizia isso, e de uma maneira bastante mais convincente do que a minha. Ariosto esbravejou, no Canto IX do Orlando Furioso, a respeito das armas de fogo: O maledetto ordigno, uscito dal Inferno. E Eusebius Cæsariensis escreveu: Sunt corpora hominum dæmonibus plena.

 

Os europeus do leste viram recentemente a guerra não somente como a destruição voluntária de humano contra humano, mas de irmão contra irmão, o que é mil vezes mais dramático e palpável. A guerra hoje se dá por motivos econômicos e por motivos de etnias diferentes que se aturaram por centenas de anos.

 

A que ficou conhecida como Guerra do Golfo (e a presente invasão do Iraque) fez parte da primeira espécie, e foi a primeira vez em que soldados dispunham de tamanha tecnologia que poderiam mesmo beber água de esgoto sem sofrer qualquer conseqüência das esperadas por quem faça tal coisa, porque levavam consigo um tipo de canudo com um filtro tão poderoso que qualquer água se tornaria, como por milagre, potável; lá também houve aquele que ficou chamado de "ataque cirúrgico", que os EUA consideraram um sucesso e a população civil uma desgraça, e nisso o ataque cirúrgico não apresenta diferenças fundamentais em relação à barbárie de ataques, digamos, convencionais. E isso foi motivado por uma disputa de petróleo, já que as pessoas, de qualquer forma, são espezinhadas em toda parte do globo sem receber por isso alguma assistência específica. Há sempre motivos políticos, mas são sempre secretos, e a história vai anotar algumas conjecturas para mais tarde haver certa coerência quando se quiser falar de determinado período.

 

As guerras de etnias são também políticas, mas se alimentam da antipatia que alguns povos nutrem pelos outros, como costuma acontecer na Europa, na África, no Oriente Médio, à semelhança daquela fábula do Lobo e o Cordeiro, de La Fontaine, em que o Cordeiro foi ao riacho tomar uns goles de água e surgiu o Lobo, dizendo que o infeliz turvava sua água, pois a água era notoriamente dele. O Cordeiro disse: "Mas como, sr. Lobo, poderia turvar a vossa água se estou recebendo a água que vem de vós neste declive?" e o Lobo, repulsus ille veritatis viribus, ou seja, repelido pela força da verdade, disse: "Se não foi você foi seu pai", e devorou o Cordeiro, cravando-lhe dentes afiados. A fábula está mutilada, deformada, mas o que interessa é a moral da história, bastante clara. Ora, não foi dessa forma que Fedro deformou Esopo, por sua vez deformado por La Fontaine, e que, do mesmo modo, Perrault deformou os contos medievais populares, e por sua vez foi deformado pelos irmãos Grimm? A moral terá mudado num caso e noutro por decréscimo de engenho? A resposta é não. Portanto, sustentado pelos exemplos, creio poder afirmar que, tenham as guerras suas pedras lascadas, lanças, machados, cavalos de pau, aríetes, maças, catapultas, espadas com nome feminino, arcabuzes, canhões, granadas, minas explosivas, tanques blindados, aviões com nome feminino, metralhadoras automáticas, baterias anti-aéreas, Blitzkrieg, bombas atômicas, napalm, miras laser, armas químicas, mísseis guiados por calor, monitorados por computador, Star Wars, etc., a moral da história não muda, e as guerras são o mesmo da pedra lascada e são lamentáveis. Termino com um trecho que traduzi de Sordello, poeta medieval italiano, que escrevia em provençal:

 

Cairás do lombo de teu cavalo,

enquanto

Cairei no colo de minha dama.

Mesmo

Que te tornes valoroso na França,

acho mesmo

Que um beijo doce

bem vale

Um golpe de lança.

 

 

UM MANUAL DA ARTE DE FURTAR

           

Roubar é uma coisa tão repugnante que começaram a erguer penitenciárias para aqueles que, entre outros desvios daninhos, tivessem o de roubar. É infame. Mas há ladrões e ladrões, e eu não culparia este ladrão pelo que aquele ladrão fez, se é que me entendem ou se sou claro o suficiente. Se não tiver sido, pouco importa, pois vou esclarecer tudo neste mesmo capítulo, utilizando uma dissociação prática do que é aceitável e até conveniente, do que é criminoso e a ser evitado.

 

Por ladrão grande quero fazer entender que é aquele que comete roubos escandalosos, de coisas que se acumulam sem necessidade, e os que mais roubam assim são, em geral, os que menos gostam de assumir o fato, como por exemplo Alexandre Magno, da Macedônia, em seu diálogo com um pirata, de nome Diomedes:

 

ALEXANDRE  MAGNO — Então me digas: por que és tu um ladrão do mar?

PIRATA — Eu, ladrão? Quereis sugerir que quem faz a pilhagem em alguns navios se chama ladrão e quem saqueia territórios inteiros se chama imperador?

 

Ou se pode recordar aquele maldito ladrão de livros, o Conde Libri ([lt.] liber, pl. libri, i.e., livros, curiosamente) não ladrão de livros quaisquer, mas ele, como erudito bibliômano, sabia exatamente o quê roubar e por quanto vender, pois ele os vendia, o louco, ou mutilava. O que é o pior de tudo é saber que um malandro como esse ficou responsável pelo acervo de várias bibliotecas importantes, pois era stimato prima na sociedade francesa de sua época (até o sr. Merimée o respeitava), um homem bem tratado, diplomático, etc., e deu fim também a várias páginas raríssimas, o que me põe furioso e destempera minha tranqüila narrativa, ao que peço o vosso perdão e prosseguiremos.

 

Há realmente esses roubos megalomaníacos, que envolvem grandes crimes políticos (como, por exemplo, saquear as contas do município de São Paulo e enviar tudo para paraísos fiscais), econômicos, ou mesmo aqueles que, por peripécia cinematográfica, se tornam atração da mídia, o que já quase nem é mais roubo, é delírio de grandeza que deita raízes em experiências traumáticas. Esse tipo de roubo atormenta os nossos dias, pois o nosso Direito, que os leigos no assunto dizem ter vindo do Direito Romano, tem um modo de resguardar que todos esses brilhantes artistas possam criar suas obras com a tranqüilidade necessária, porque tanto podem se valer de bons advogados — quero dizer, perícia técnica e não valor intrínseco — quanto dos alçapões disponíveis numa lei que se afirma num parágrafo para se negar no próximo, e para condenar ladrões de pão.

 

Pois eu desejo falar do roubo leve, o que, como no título, chamo furto para evidenciar a diferença entre uma coisa e outra. Esses são os ladrões pequenos, não em engenho, mas em espécie. O furto é um tipo de roubo em que ninguém apodrece na prisão por ter dado com os burros n'água; o furto é um roubo elegante, refinado e repleto de fundamento, não é para uns gatunos ignorantes; o furto não vem da necessidade nem  necessariamente de um vício cleptomaníaco; da mesma raiz de furto vem a palavra furtivo, que significa rápido, inesperado, etc.

 

Você pode SEMPRE furtar. O furto é um ato de liberdade e de inteligência. Ele atenta contra a convenção, desde a convenção do roubo descarado e doloso até as convenções econômicas do "pegue & pague". Você estará abolindo a segunda parte da expressão. Você estará deliberadamente repudiando as políticas econômicas do mundo todo, ignorando lobbies, trusts e remessas de lucro para o exterior. Você estará quebrando uma corrente de equívocos.

 

O que é FURTAR:

 

a) Você furta um livro de uma livraria, NÃO de uma biblioteca.

b) Você furta remédios de uma farmácia, NÃO de um hospital.

 

O aspecto mais importante do processo do furto é que ele é sempre uma atividade social, nunca anti-social. Você deve, após ter furtado, contar aos amigos, numa narrativa alegre, como conseguiu burlar as defesas do local. É uma maneira simples de rir, e gratuita.

 

Todo grande furtador possui uma técnica admirável, que mistura gestos, sinais, roupas largas e até mesmo disfarces. O ambiente deve ser estudado com paciência e atenção, meticulosamente: nada pode ser desprezado, desde o sujeito que guarda o lugar, passando pelos horários gordos — que fornecem cortina de fumaça —, a localização e a disposição dos objetos cobiçados, e também as expressões faciais de um comprador, isto é, aquele que paga pelo que vai levar. Lembre-se de que um comprador nunca parece suspeito, porque ele está imerso em pensamentos sobre preço, cálculo, etc., e, por isso, suas faces se compõem de um ar distante, fleugmático, intrigado e por vezes estúpido. Portanto, não problematize sua expressão facial, os compradores são todos iguais em insipidez.

 

Nunca dispense um plano prévio, embora isso não deva constranger o improviso. O improviso, de qualquer forma, vem sempre com a experiência, como se pode observar naqueles que discursam: improvisa somente o que, pela experiência, conhece as inquietações da platéia, suas oscilações psicológicas, a erística, pois quem tentar em falso corre o risco de pôr todos para dormir, ou entediar profundamente, ou dispersar. O improviso é uma arte como a da degustação: é preciso experiência. Além disso, o bom improvisador é o que furta com poucos movimentos, é quase um mágico que seduz o olhar com uma ilusão. Isso requer técnica aguda e muita presença de espírito. Já o plano prévio deve ser elaborado com discrição, pois não é possível furtar se você já apareceu dez vezes na mesma loja sem levar nada: "Ah, estou só olhando", você diz toda vez ao mesmo vendedor. Você será pego quando der o bote, ninguém confia em você e sabem que é um furtador primário, cheio de temores e incertezas.

 

Não olhe para os lados quando for furtar, não é como atravessar a rua. Olhar para os lados é uma demonstração clara de incômodo e desespero, e você pode se desconcentrar do ato em si, imaginando olhares de censura, olhares curiosos ou impertinentes. Você, se está furtando, DEVE ter mapeadas as posições de todos, portanto, não olhe. Prefira uma representação naturalista, até medíocre, a uma romântica, expressionista, carregada de subjetivismo: o sábio dá às coisas  sua medida e o estúpido, a sua medida às coisas. Sem bigodes falsos (os chamados Groucho Marx), que isso é, além de contraproducente, de baixo nível.

 

Há casos específicos como:

 

a) Sair de uma loja com detector eletrônico: furte duas coisas. Uma você põe delicadamente na bolsa da mulher que está saindo, a outra vai com você. Assim, quando o detector tocar nela, você sai sem ser notado;

 

b) Compra e furto combinados: claro que é preferível você furtar de uma vez ao invés de ficar protelando com firulas, mas você é iniciante e se sente melhor gastando um pouco, pegue coisas de preços díspares. Inspire confiança ao vendedor perguntando-lhe, por gentileza, quanto custa o mais barato. Pague-o e leve o mais caro consigo;

 

c) Câmeras: embora só você possa medir isso, a câmera tem um limite de alcance, ou varredura. Disponha-se num ângulo arrevezado (ponto-cego) e furte com decisão. Toda demora será estranha e digna de ser averiguada;

 

d) Furto a dois: é inadequado. Não se trata de um desequilíbrio, de uma folie à deux. Sabe-se de um ótimo furtador que uma vez dependeu de um inepto que tremia como na Sibéria se treme e foi pego por isso, manchando um currículo impecável de 20 anos.

 

Concluindo o manual, gostaria de lembrar o que escreveu Fernando Pessoa em "A Carta Mágica", pois chega a duas assertivas muito corretas. A primeira é a de que o crime mais complicado de se descobrir é o vulgar: "há evidentemente menos causas para o invulgar do que para o vulgar"; a segunda é a de que um sujeito extravagante, embora lúcido, furta de modo extravagante: "procuraria ou complicar o assunto por qualquer estratagema absurdo e prolixo, ou procuraria roubar por qualquer estratagema extravagante mas banal".

 

Por isso, simplicidade.

 

O furto como uma maneira amável de desfalque e uma maneira original de aquisição.

 

 

PEQUENO TRATADO SOBRE O PODER                             

 

"Lutaremos no mar, por sobre as montanhas e mesmo no ar, e jamais vamos nos render!", foi o que discursou Winston Churchill, aquele inglês rotundo que apreciava charutos, para animar as soldados no front, para mostrar a eles que tinham um líder imbatível. Na estátua que existe de Augusto, o divino Augusto sobrinho de Júlio César, temos essa noção sem que se diga uma só palavra, e quando olhamos para Churchill é preferível que ele fale. Portanto, o poder pode estar numa aparência de soberania ou simplesmente numa inflexão de voz, que é o que se presume imediatamente dos exemplos citados. Vespasiano, já da decadência latina, tem uma estátua que patenteia sua figura desproporcional e sem graça, e, no caso, nada poderá salvar sua memória, porque não haverá como ouvir sua voz vespasiana.

        

Mas o poder verdadeiro está além dessas demonstrações vulgares, porque o poder é uma emanação, não divina ou divinizante, como se acreditou por séculos de impérios, reinados vitalícios e absolutismo, mas da vontade. A vontade — que foi condenada por Schopenhauer sob o nome monástico de desejo (o que, na verdade, lhe vinha da leitura de textos indianos), como a diluição de todos os princípios legítimos, pois o desejo seria como um buraco, quanto mais se cava, maior ele fica — a vontade é a movimentação propulsora, e leva adiante o que de outra forma causaria desgaste precoce e tédio, e cuja falta Fernando Pessoa responsabiliza pela falência intelectual de tudo e de todos. A vontade é uma espécie de dinâmica sexual, que pode ter vários fins, como Rabelais faz um seu personagem elencar no prodigioso Pantagruel. A um dos desvios da energia propriamente sexual se dá o nome de poder.

        

O poder é uma necessidade de se sobrepôr aos seus pares, de se ser o melhor, de disputar e vencer, e de se ser magnânimo. O verdadeiro poder está em se ser magnânimo, porque é possível adquirir um poder vulgar pela força, pela coerção e pela violência, mas adquirir o poder por aquilo que Maquiavel chamou virtù em O Príncipe, uma qualidade, um valor, uma palavra intraduzível e carregada de significado, é algo nobilitante e digno de aplauso. Obviamente, isso só é possível para pessoas cultivadas, determinadas e fisicamente preparadas, ou você quer me fazer acreditar que o presidente do seu país poderia fazer o mesmo? Quantos exemplos você conheceu, na direção de qualquer coisa, com essas qualidades?

 

O poder em seu estado natural implica tirania, não com esse significado repleto de estigmas que hoje temos a respeito do que se possa chamar tirano, mas no sentido de firmeza, de ordem, disciplina, hierarquia e fila indiana, que é, eu não sei o porquê do nome, aquela fila a mais comum que existe, a de um após o outro. Há pessoas que acreditam ainda hoje que mesmo a educação devia ser mantida nesses parâmetros, o que evitaria a desordem, a indisciplina e todos aqueles desgostos que os professores primários e secundários costumam passar. A autoridade do professor, ou do chefe, ou do pai, ou de deus, etc. é também um dado muito importante, pois numa sociedade em que nada se respeita, onde está tudo do avesso como numa canção de impossibilia, não é possível que as coisas tomem o seu sentido adequado, normal e retilíneo.

        

O poder é sempre uma estrutura. A hierarquia pressupõe uma burocracia e tudo em gavetas numeradas e em pastas divididas por assunto e cor. Portanto, o poder é incorruptível. Onde há corrupção não há poder e vice-versa, que a corrupção é, evidentemente, uma desordem, pois ninguém respeita ninguém e o dinheiro entra pelos bolsos sem que se saiba. Como eu disse, o poder é uma emanação, e é preciso que todos na estrutura sintam-na fluir, ou seja, como sentem fluir o sangue quando se rompe uma veia.

 

O poder é escrupuloso, pois quem não tem escrúpulos perde o controle e quem perde o controle, é muito claro, perde o poder, quando não a cabeça juntamente. No poder tudo é uma cadeia, sem trocadilho. As coisas acontecem por estarem ligadas umas às outras e serem definitivas e insubstituíveis. Se um elo da cadeia quebra, novamente, ocorre a insalubre desordem da ordem que, como se vê, a muito custo se mantém.

        

O poder é tirânico ou democrático. A única coisa inadmissível é que seja cooperativo, porque quando muitas pessoas resolvem dar seus palpites nunca se chega a lugar algum, nada fica pronto, todos desanimam e se odeiam. Se o poder for tirânico, está perfeito, um sujeito vai dar conta do que cabe à sua nação e tudo será resolvido pela sua decisão magnânima. Se o poder for democrático, também tudo estará em perfeita ordem, uma vez que a democracia é uma espécie de tirania em que são envolvidas apenas as vozes que fazem coro e o acordo fica estabelecido dessa forma. Os que se queixam da tirania, que sejam democratas, e os que se queixam da democracia, que sejam tirânicos.

 

O poder é uma dualidade: sim ou não. A resposta talvez é desajeitada demais para quem toma decisões verdadeiras, de influência imediata e determinante. Todo meio-termo deve ser excluído como um perigo de desordem e confusão, coisas que vão contra a limpidez que a ordem fornece. Por limpidez se deve entender que tudo está no seu devido lugar, muito claramente estabelecido pelo tempo, já que o tempo é a prova do que é bom. O que o tempo aprova, podemos aprovar também — como fez o infalível papa, nesse século que passou, em relação a Galileu — e toda modificação deve ser vista com desconfiança, pois quem colocaria uma criança no poder? Todas as que passaram por lá estiveram em regime de regência, esperando que o tempo as amadurecesse, etc.

 

O poder não se basta. O poder não é uma propriedade, mas algo que se forma diante de um conjunto. O poder se verifica de alguém sobre o outro, como o de quem escreve sobre quem está lendo, o de quem julga sobre quem está sendo julgado, o de quem governa sobre quem está sendo governado; e acho que posso reclamar para a minha arte em específico, a da escrita, o poder mais brando, mais participativo do que todos os outros, evidentemente tirânicos. Pois, enquanto nos dois últimos exemplos alguém sempre sofre a ação de outro, sendo portanto paciente, o do exemplo da escrita pode alegar ser um agente, o que revoluciona todo um método, toda uma convenção — o que é, provavelmente, a causa do seu desaparecimento. En la lucha de clases, todas las armas son buenas, piedras, noches, poemas, como alguém disse.

 

 

COGUMELOS APODRECIDOS

           

Contam histórias de pessoas que, tendo sido rejeitadas por seus pais humanos, foram criadas por animais e acabaram por se comportar como um deles. Esse é o caso da menina-loba, do garoto-macaco e tantos outros. O que está em questão no caso é a linguagem, e houve quem definisse a linguagem como sendo o homem. Já o contrário daquelas histórias não é possível e ninguém acreditaria se eu dissesse que por tal e qual motivo um cão deixou de andar sobre quatro patas, trocou o latido pela fala e sentiu pudor em andar nu, passando a vestir roupas, embora alguém tenha inventado um gato de botas que era a figura grotesca da cabeça aos pés. A linguagem não é o homem, mas há, de fato, uma linguagem que o caracteriza.

        

O mimetismo, ou imitação, é o que caracteriza a linguagem humana e isso se explica com simplicidade: o homem imita o que está ao seu redor, e se há lobos ao seu redor ele será um lobo, e se há criminosos ao seu redor ele será um criminoso. O mesmo comportamento se pode esperar de um homem que tiver ao seu redor apenas mulheres, ou seja, vai se afeiçoar a elas, de um modo ou outro. O dilema se apresenta quando há outras possibilidades envolvidas, e o homem confunde tantas influências que já não é mais nada, é uma pálida sombra de tudo quanto lhe surgiu à frente, como se observa atualmente, em que as pessoas se tornaram mosaicos ambulantes. Muito mimetismo, pois há muito que mimetizar e muito rapidamente.

 

Infelizmente, nada nos resta fazer. Uma pesquisa recente a respeito de loucura, que buscava fazer um bem generalizado, revelou que a maior parte dos loucos, ou dessas pessoas às quais associamos comportamento disparatado, ocorre entre os intelectuais (ou quem pretenda tal título), pessoas de formação esmerada e promissora. Claro que uma revelação como essas choca a todos e parecemos irremediavelmente lançados às mãos da Fortuna, divindade suscetível. Mas é talvez reconfortante saber que sempre foi assim, e que os homens, para quem o maior tesouro é a razão, sempre o estiveram procurando no lugar errado. Dou como exemplo aquele poeta alemão muito infeliz, que assim se exprimiu sobre o seu domínio, i.e., a linguagem, numa carta imaginária:

 

O meu caso, brevemente, é o seguinte: Eu perdi por completo a capacidade de pensar ou falar coerentemente sobre um assunto, qualquer que seja (...) as palavras abstratas, às quais a língua tem de recorrer naturalmente para formular qualquer tipo de juízo, decompunham-se em minha boca como cogumelos apodrecidos.

                                        

                                              Trecho da "Carta ao Lorde Chandos", de Hoffmansthal.

 

Me perdoem por citar poetas tantas e tantas vezes, mas é que se trata de uma classe muito falante, e sou, dessa forma, servido de uma quantidade extraordinária de exemplos convenientes a quase todo assunto discutido.

        

Alguns dizem que, por termos perdido totalmente o contacto com a etimologia, ou origem das palavras, nossa cabeça está desorganizada e sem noção de valor, peso, medida, etc. Por isso, a métrica foi degringolando em numeração até desaparecer, e o ritmo perdeu a noção da quantidade. E quando as pessoas vão consultar alguma obra relativa à origem e ao sentido da palavra, vão naturalmente buscar coisas que lhes façam rir, como o rapaz que foi ao livro de Nônio (De proprietate sermonum) e se saiu com esta:

                           

         FELLARE: exsugere.

 

chupar, ou sugar de, demonstrando que o conceito de hilaritas está mais forte do que nunca. Isidoro de Sevilha foi ignorado, e não só ele, como muitos mais que, embora até artificiosos ou mentirosos, explicam umas tantas coisas.

 

De qualquer forma, é muito pouco saudável, eu concordo, o ar que se respira no ambiente desses livros geriátricos, e não o digo por metáfora banal, mas no sentido próprio: são gerados certos fungos (de cujos nomes não quero lembrar-me), onde há papel velho, que tornam o ar, segundo experiências científicas, alucinógeno. Principalmente bibliotecas e sebos, onde os livros não são exatamente novos, mesmo porque certas edições caducaram há muito nos catálogos. Não é de surpreender, portanto, que muitos intelectuais se sintam tomados por forças estranhas, obsessões antes inexplicáveis, semelhantes àquilo que Hoffmansthal descreve de um drama íntimo de seu personagem.

        

Todavia, devo confessar, isso é a linguagem escrita. E pulando naturalmente a pintura, que Leonardo da Vinci, mentindo para si mesmo, quis colocar no mais alto patamar da invenção humana; pulando a pintura, essa arte da ilusão visual, da ilusão de que duas dimensões, apenas, perfazem as três naturais, ou de outra forma mais uma, que é a do olhar particular de um pintor como Picasso, ou Bracque; pulando a pintura, temos a música.

A música é a linguagem: que os cogumelos tenham apodrecido na cabeça tempestuosa de Beethoven é admissível, mas quem me garante que não estivessem podres já antes? e além disso, a música que ele deixou é um resultado extraordinário do que quer que seja. E Bach, dos Concertos de Brandenburgo, o que vai explicá-lo? Estruturas complicadas, matemática, o contraponto, uma arte magnífica? Não, o homem. A linguagem é o homem. Já me contradigo e me demoro. São os livros na minha estante.

 

 

PALINÓDIA

           

E todos aguardem a chegada do monstro Antifísio, o grande monstro que inverte e embaralha as coisas por onde passa. Possui mil tentáculos, novecentas e noventa e sete bocas horripilantes e faz a verdade parecer a mentira e a mentira parecer a verdade. Fala todas as línguas e nenhuma, tem olhos que vêem tudo, mas não se fixam em nada, um completo disparate. A natureza se inverte por onde ele passa, como na carta XII do tarô, o Enforcado, de ponta-cabeça.    

 

Por tantos disparates, ainda que bem-intecionados (e como diria o velho ditado...), me desculpo exatamente como Erasmo de Rotterdam, esse grande espírito, se desculpou pelo Elogio da Loucura: se o amor-próprio não me engana, creio ter elogiado a Loucura sem estar inteiramente louco.

 

Boa noite, gentis damas e cavalheiros. Boa noite.

 

 

 

FINIS

 

 

 

 

outubro, 2005

 

 

 

 

chamaeleonte@yahoo.com