Ovos
para uma omelete, ou ab ovo
Existe o ditado dos ovos e da omelete. A verdade
é que, embora possa haver alguma conexão entre o ditado e a idéia de arte,
eu não me esforçarei para encontrá-la. Digamos apenas que, no caso da
arte, seria preferível ferir o ditado e fazer a omelete dentro do ovo, sem
quebrá-lo, porque, depois de partir a casca, a situação é irremediável:
você não poderá restituí-la à integridade e terá de viver com a crise, e
degustar seu resultado. Michel Deguy¹, por exemplo, quebra ovos por onde
passa, e não se preocupa em fritar a omelete. Não
queremos mais o impossível: sequer concluímos o trivial. . Enfim, esses são os ovos
quando o assunto é arte. So much to do and so little
time.
A palavra na poesia & Donizete
Galvão
Existe um momento muito especial no decurso da
experiência de um autor com a literatura ou com qualquer coisa escrita,
ou, ainda mais propriamente, com a linguagem. Esse momento é a descrença.
Que descrença? A de que não há público para a arte da escrita? A de que a
crítica fatalmente impedirá a vida inteligente de sua época? Os editores?
O próprio meio dos escritores, irrespirável? Não se trata disso.
Há uma descrença anterior, mais profunda e
assustadora, que é a descrença na comunicação. Todo escritor, poeta ou o
que seja, terá passado, em determinado ponto de sua vida, por experiências
em que flagra a linguagem mais precisa escapando do entendimento. Os
significados, mesmo de uma frase límpida e medíocre no que se quer dizer,
são infinitos. As possibilidades de leitura começam numa desconfiança do
significado e vão até às sutilezas de tom. A palavra escrita é a que mais
sofre e faz sofrer. Suponho que o momento de
descobri-lo seja uma grande ocasião para o escritor, porque verá a
linguagem pela primeira vez, mítica, impossível: embaralhada, como naquele
jogo de varetas, em que se entorna o cilindro que as contém e caem todas
umas sobre as outras, desordenadamente; e saberá que a sua função é tirar
com delicadeza seu estoque de varetas sem mover as demais, ou puxá-las com
um tranco que perturbe o monte inteiro. Por que eu
teria começado com esse misterioso excurso? Porque eu quero dizer que
Donizete Galvão, um dos melhores poetas brasileiros em atividade, tira
suas varetas do monte sem mover as demais. Não é o homem do tranco, é o
homem da sutileza, trabalha com o tom, microscópico e delicado, com as
palavras de contorno preciso; e digo isso com a certeza de que seu
trabalho não é parte dessa ampla vulgaridade que se justifica pelos mesmos
termos, de maneira enganosa, porque virou uma coisa bastante agradável
para um autor que os outros venham dizer da sua "precisão", ou "sutileza",
"concisão", mesmo que freqüentemente sejam poetas de uma banalidade
apavorante, semeando uma ou duas palavras numa página inteira e, ainda
assim, permanecendo uns tagarelas. A poesia de
Galvão se sedimenta, preciosa, sem alarde, sem efeitos especiais,
paciente, num entendimento cada vez mais íntimo com a palavra, que escolhe
comunicar a partir daquele seu reduto mítico, inicial. E com uma coisa que
começa a não mais ter mestres: o domínio do tom. Um poema perfeito para o
apelo à sentimentalidade nos apanha, ao contrário, pelo controle de seus
efeitos, pela metáfora vegetal e mineral
Juntos, em
solitude. Cada qual com sua chaga. Cada qual com sua
cruz. Dois corpos antes tão próximos, separados pela
geografia que a mágoa desenha. Entre os
braços, interpõem-se desertos, salinas e dunas. O amor
morreu? Não. Condensou-se. Soterrou-se em veios de duro e
negro minério. Duas árvores cujas raízes trançaram-se rumo ao
fundo. Que frutos falhos e ásperos nessas mãos antes tão
íntimas, que, mesmo durante o sono, permanecem bem
fechadas.
..............(Mundo
Mudo, Nankin, São Paulo,
2003)
Os últimos versos surgem com
o particularismo de um zoom cinematográfico, acentuando aqueles
dois iniciais que se introduzem com "cada qual", na imagem forte dos
frutos do amor apanhados em mãos que mesmo durante o sono permanecem bem
fechadas. A construção não é apaixonada; seria analítica se Galvão fosse
um poeta manco da imaginação, ou se ele fosse um crítico literário que
escreve poemas: a cama é um lugar ermo, os corpos são árvores fundamente
enraizadas em duro e negro minério, os frutos são ásperos e falhos.
A metáfora mineral foi detidamente explorada por
ele num livro chamado Do Silêncio da Pedra (Arte Pau-Brasil, São
Paulo, 1996), que é talvez o mais cerrado no aspecto temático; e em A
Carne e o Tempo (Nankin, São Paulo, 1997), temos seu livro mais
aberto à variedade de formas e temas, bastante contraposto nesses sentidos
ao imediatamente anterior. É o meu predileto, como livro. Há poemas mais
longos, muito bem escritos — o que não é simples fazer —, como "Carta a
Miss E. B.", infelizmente muito longo para citar aqui. Ou felizmente. No
fundo, isto deve ser entendido como um convite enfático para que o leitor
vá direto aos livros e os leia todos, porque embora Galvão tenha mais de
meia-dúzia de livros de poesia, ainda não é suficientemente conhecido pelo
público. De qualquer forma, transcrevo abaixo o primeiro poema que li de
Donizete Galvão, desse mesmo A Carne e o Tempo, e me chamou a
atenção pela consciência no uso das palavras, o estilo elegante, o
controle do tom. Chama-se "Tzvietáieva² e o céu do poeta", dedicado a Dora
Ferreira da Silva
Aproveite agora que o filho bateu à porta e saiu a
trabalhar para seus senhores: arme a forca com precisão e calma
de poeta. Que país ouvirá sua voz dissonante, sempre em
vigília, a quem nada contenta? Que o corpo seja jogado na
vala-comum, sem necessidade de qualquer cerimônia. A
poesia ..........— corpo que
ganha espírito ..........espírito em
corpo encarnado .— entrará inteira,
imaculada, .......... no reino onde
não existe julgamento.
*
Eu me recordo de ter escrito, em março: "a arte
serve para tornar nossa inteligência e percepção mais agudas", ou algo
parecido. Não há dúvida de que esse tipo de afirmação, conquanto
grandiloqüente e sentimental, costuma se esvaziar tão logo se o lê, porque
embora se possa reconhecer que as palavras foram bem escolhidas, elas
ainda pertencem àquele limbo abstrato, argumentativo, que é convencimento
(ou não) sem exemplo. ......Prefiro, de qualquer forma, e por motivos
óbvios, a inteligibilidade proposta por um poema. É sempre civilizado
oferecer um exemplo do que se diz: ilustra as velhas palavras, dá um sopro
de vida à matéria morta do pensamento sem forma. É por esse motivo que
trago uma tradução que fiz de Joan Brossa, poeta catalão morto em 1998,
que apenas indica os índices por onde deve caminhar o leitor em busca do
que seria uma definição, ou uma conclusão, que não está escrita no
poema:
..........
HISTÓRIA
Eis aqui
um homem Eis aqui
um cadáver Eis
aqui uma estátua.
O Poeta e Clérigo Aragonês Martim Moya
......Se fosse lícito, possível, ou até mesmo
desejável que se esquecesse a obra dos poetas medievais
galego-portugueses, aragoneses, castelhanos, etc., teríamos de separar
antes alguns poemas de Afonso X, o Sábio, as barcarolas de Codax, um poema
de Johan Ayras de Santiago — aquele que diz A por quem perco o
dormir, em que aponta, com uma naturalidade estranha à maioria da
poesia galega, desde o tecido do vestido da mulher aos enfeites dourados
da sela de sua montaria, com um belo e complexo jogo de aliterações —, um
daqueles poemas em que genericamente maldizem Lopo, o jogral (pode ser um
dos de Martim Soarez, talvez os melhores), a Vênus de Cottom, que
ele compõe de modo satírico pelo acúmulo de noções que são o avesso da
beleza e ainda culpa a Deus por isso; Dom Dinis na persona
feminina e, é claro, a pequena mas poderosa obra de Martim Moya, de uma
beleza singular no que era prototipicamente o português. ......Disse "se fosse lícito" numa reductio
ad absurdum, porque pode-se percorrer vários cancioneiros chamados
galego-portugueses sem se sentir mais do que um tédio inquietante. É
sabido que a linguagem dos trovadores, mesmo os melhores provençais, segue
determinadas convenções, ou tradições; porém, ficamos inquietos porque
pouco surge nos ibéricos que sugira a perfeição de uma arte consciente de
sua própria fatura. No lugar do objeto, temos o quase invariável e
monótono mia senhor: descendem claramente da lírica provençal,
mas já não respondem ao mesmo modo de pensar e sequer demonstram entender
os motivos das formas da Provença. A forma tinha ficado oca, era o
esqueleto do que fora uma bela mulher. Isso, é evidente, não tem a ver com
os poetas que mencionei acima. ......Moya, ou Santiago, ou El-rey
Alfonsso, são poetas que não só dominam formas provençais como também
nos apresentam a vida nomeando as próprias coisas de que essa vida era
feita, e não apenas pelo código repetitivo de uma série previsível de
clichês: teremos Afonso se queixando do aborrecimento que lhe dão os
barões covardes que fogem da guerra, refletindo, na persona de
homem já velho, sobre cansaços como homem de Estado que preferia o mar às
mazelas de uma vida de preocupações; ouviremos Santiago falar de uma
mulher, num sentido dúbio, desde sua montaria ao vestido de cambraia; e
Moya, o clérigo que escreveu uma lírica composta de poemas laicos, numa
invectiva contra a decadência mental, se considerarmos crerizia
como significando não só o "clero", mas a "cultura". O mais famoso deles
(se a palavra fama aqui não for totalmente estranha àquela deusa
Fama que espalhava o nome e os feitos dos homens pelos quatro
cantos do mundo) é um sirventês, isto é, um poema do gênero de
desacordo, por onde alguns concluem que cai como uma luva aos moralistas,
em que Moya veria sua época trocando a cultura e a beleza pela mentira e a
malignidade. Diríamos hoje como disse Salomão: Nada de novo sob o
sol. ......Não é simples
encontrar uma edição de seus poemas que, embora sendo bem poucos (vinte),
não encontram um editor ou mesmo o interesse de eruditos que o ponham em
público decentemente. Por isso, seria bom lembrar o trabalho sério,
elegante e sábio de Luciana Stegagno Picchio na edição crítica que
publicou dos poemas de Moya na Itália: Martim Moya, Le Poesie,
Edizioni dell'Ateneo, Roma, 1968. Seria razoável que se fizesse o mesmo
com a obra de mais uns cinco trovadores galego-portugueses, e que a edição
de Picchio pudesse ser publicada em português — de preferência numa edição
decente — e divulgada com um mínimo de competência nas Universidades e
fora delas. ......Enfim, tanto o
trabalho de Moya quanto o de Santiago nos ensinam um uso da aliteração e
da assonância — em versos curtos ou mais longos, como, do próprio Moya, em
"Pero mi fez e faz Amor" — que ainda não havia sido levado à hipertrofia
balbuciante que o Simbolismo consagrou com Cruz e Sousa, e demonstra um
equilíbrio musical difícil de encontrar na poesia portuguesa subseqüente,
mesmo porque os trovadores se utilizavam do conhecimento da canção
provençal, posteriormente quase ignorado na península ibérica (Camões
escreve sextina, canção, entre outras formas ocitânicas, mas é muito
provável que tenha tomado conhecimento disso através de Dante e
principalmente Petrarca). Vamos então ao poema, definido por Picchio da
seguinte maneira: Trionfo della perfidia e della maldicenza in un
mondo senza cortesia.
SIRVENTÊS
...................Per quant'eu
vejo, ..........perço-m'e
desejo, ..........ey coyta e
pesar; ..........sse and'ou
sejo ..........o cor m'está' n
tejo ..........que me faz
cuydar; ..........ca, poys
franqueza, ..........proeza, ..........venceu
escasseza, ..........non sey que
pensar. ..........Vej'avoleza, ..........maleza, ..........per ssa
soteleza, ..........o mundo
tornar.
................... ...................Ja de
verdade, ..........nen de
lealdade ..........non ouço
falar, ..........ca
falssidade ..........mentira e
maldade ..........non lhis dá
logar; ..........estas son
nadas ..........e
criadas ..........e
aventuradas ..........e queren
reynar; ..........as nossas
fadas, ..........iradas, ..........forom
(a)chegadas ..........por este
fadar.
........ ...................Louvamyares ..........e
prezenteares ..........am prez e
poder; ..........e nus
logares, ..........hu nobres
falares ..........soyán
dizer, ..........vej'alongadus, ..........deytadus ..........do mund’,
eixerdadus, ..........e van-sse
perder; ..........vej'achegadus, ..........loadus, ..........de muytus
amadus ..........os de mal
dizer.
...................A
crerizia, ..........per que sse
soýa ..........todo ben
reger, ..........paz,
cortesia, ..........solaz, que
avia ..........fremoso
poder ..........quand'alegria ..........vevya ..........no mund'e
fazia ..........muyt'a'lgue(n)
prazer, ..........foy-sse ssa
vya, ..........e
dizia: .........."Cada
dia ..........ey de
falecer!".
...................Dar, que
valya ..........compria, ..........seu tempo
fogia ..........por ss'ir
asconder!
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¹O leitor pode decidir se sim ou se não
na recente e bela edição da Cosac & Naify e da
7 Letras, A Rosa das Línguas, da
coleção de poesia Ás de colete. Organização e tradução
de Paula Glenadel e Marcos Siscar (lembrar que Siscar
já publicou uma tradução memorável dos poemas de Tristan
Corbière, Os Amores Amarelos, Iluminuras).
²Marina Tzvietáeiva (1892-1941):
poeta russa que se suicidou após o fuzilamento do
marido e o internamento da filha num campo de concentração.
É possível encontrar alguns de seus poemas nas traduções
de Boris Schnaiderman, Augusto e Haroldo de Campos,
no livro Poesia Russa Moderna. A
edição que tenho é de 1987, da editora Brasiliense.
Foi lançada uma nova edição, ampliada, pela Perspectiva.
chamaeleonte@yahoo.com
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