©jean-marc bustamante

 

 
 
 
 
 

A má educação

    Aproveitando de leve o mote fornecido pelo filme de Almodóvar que acaba de chegar a Cannes, consideremos a educação, mas com um foco bastante específico: o ensino de literatura no Brasil. Aliás, muito generoso, insinuarei aqui idéias gratuitas para o governo que se interessar.
    Em alguns momentos nessas páginas, o aspecto necessário da educação de artes apareceu, em tom sarcástico ou joco-sério; discute-se muito, enfim, acerca do assunto. Uns se perguntam: "mas, mas, mas por que ensinar literatura" (ou música ou artes plásticas ou filosofia ou artesanato), "se não serve pra nada no mercado de trabalho (variação politicamente correta de mercado de escravos)?". E não são apenas pessoas supostamente incapazes de avaliar o que estão dizendo, os autores de perguntas sutis como essa. Portanto, creio que alguma explicação seja necessária.
    Os franceses, não faz muito tempo, saíram às ruas em protesto contra a retirada da língua latina e do grego do ensino: confesso a minha surpresa. Tentava entender: "Eles sabem das conseqüências da falta disso ou estão apenas protegendo um hábito?". Não sei. Se soubessem das conseqüências, poderíamos imaginar o seguinte na cabeça daqueles franceses: "sem o ensino dessas coisas desimportantes e inúteis, nossos moleques e molecas vão se tornar uns imbecis do lucro e da tecnologia, incapazes de medir as coisas por duração, sedimentação, com ética, humor, imaginação, etc. Em suma, estarão sacando o pouco que faz de nós seres menos que abomináveis".
    Quando se ensina filosofia, não se está ensinando nomes ilegíveis sob retratos sisudos, mas ensinam-se vários modos de organizar o pensamento, pesar a vida e seus eventos com alguns critérios; latim e grego ensinam a origem do Ocidente, as bases de muitas línguas, técnicas de escrita, etc; a música refina o ouvido, as artes plásticas refinam a capacidade de ver, a literatura refina a inteligência e partilha modos de pensar, sentir, perceber. É evidente que tudo isso pode parecer inútil, não devemos esquecer o mundo em que vivemos. Mas também é claro que podemos escolher o mundo em que queremos viver. A educação meteu os pés pelas mãos porque abdicou dessa escolha para se render ao que pede o mercado de trabalho, isto é, agora a educação prepara os escravos da sobrevivência e não prepara mais para pensar, discutir e reinventar os modos possíveis dessa sobrevivência. Por quê?
    Porque passamos do inventivo ao instrumental. As escolas acompanharam (e continuam a acompanhar) a imbecilização da sociedade sem muito rumor. Há um modo bastante simples de verificar isso sem sequer mencionar essas matérias, como dizem, "de Humanas": o ensino de matemática tem sido pura e simplesmente mecânico, para esquecer completamente como esteve ligado à filosofia de maneira indissociável por séculos. Não é de admirar que vivemos no reino da estatística. Os números perderam, nas escolas, qualquer conexão com o pensamento, eles são inculcados, muito distantes de quando Leon Battista Alberti falou dos números ocultos na natureza, ou mesmo de quando Lewis Carroll enviava paradoxos para suas amiguinhas resolverem. É apenas um exemplo do fato de que hoje a maioria dos professores não sabe o que ensina nem por quê.
    Isso quer dizer que a escola terá de mudar drasticamente. Deverá encontrar um jeito de se desvincular das exigências inanes do mercado; deverá encontrar ao menos um governo com sensibilidade para tanto, o que é difícil; deverá se livrar de pudores, moralismos e caretice; e, quanto a literatura, deverá acabar com os livros didáticos e adotar antologias boas para valer (que, atualmente, inexistem). Isso não é um apelo. É apenas aquela voz de fundo, normalmente ignorada, que precede as catástrofes.


Acaso o medo é (continuando a má educação)

    Marcial de Bílbilis (40-104 d.C.) escreveu em latim poemas terríveis, chamados epigramas. O epigrama, que veio de inscrições tumulares de toda espécie, acabou se tornando a definição do poema pequeno e mordaz, praticado em quase todas as tradições posteriores à Antologia Grega e a poetas como Catulo e o próprio Marcial. Importante, nesse tipo de poema, é a brevidade, capacidade de observação crítica, objetividade e não ter papas na língua. Marcial sabia disso e, do prefácio da obra até poemas inteiros da coleção dos Epigrammaton Libri, discute o assunto e apresenta seus motivos. Epistola ad Lectorem, Liber Primus dos Epigrammaton Libri:

     Lascivam verborum veritatem, id est epigrammaton linguam, excusarem, si meum esset exemplum.

    Ele afirma que a lascívia das palavras constitui o gênero e diz excusarem como quem infringe o decoro. Evidentemente, Marcial não está praticando uma arte sem antecedentes, está afirmando, na verdade, a existência bem definida de um uso específico da linguagem, como quando escreve no livro I, poema 35: "Te queixas dos versos, Cornelius,/pouco severos, inúteis prum mestre/na escola: mas aí os libelos,/feito o marido à mulher,/não agradariam sem pica:/é pedir canção de himeneu/sem que eu fale do Hímen".
    Entendemos as razões de Marcial. Aos poemas que traduzi:


    Livro III, 51

    Quando cubro de elogios
    tuas pernas, tuas mãos,
.   "Nua agrado mais", Galla,
    você me diz então.

    Mas um banho, nós dois,
    está fora dos seus planos.
    Acaso, Galla, o medo é
    me ver sem estes panos?


    Livro IX, 69

     Quando fode, Polycarmo costuma cagar.
     quando é fodido, o q Polycarmo fará?


    Livro XII, 86

    Trinta garotos e mais tantas garotas tens pra ti:
    e tens um só pau q não está nem aí.


(com um oferecimento ao Professor José Dejalma Dezzoti, aguardando a publicação da tradução completa de Marcial)


Sê Menos Finório (concluindo a má educação)

    Wyndham Lewis, pintor e escritor inglês, inventou o vorticismo com Ezra Pound, publicou a revista da vanguarda (BLAST, de apenas dois números, de 1914 e 1915), deu vivas a Hitler e depois se arrependeu. Enfim. Há em um de seus romances, o monumental The Apes of God (infelizmente, ainda sem tradução), um trecho que vem bem a calhar. Daniel está sendo tutorado (e poderíamos ser tentados a dizer torturado) pelo sr. Horace Zagreus para vir a ser um artista.

.    "Essa solidão era terrível!
     Dan estava deitado e bocejava sobre seu catre espartano. Seus pés doíam tanto que relutava em levantar. Eram já três semanas disso, ele estava um caco! Era uma sombra de si mesmo. Com o prospecto de seis semanas de espera, começava a se desesperar nesse claustro agourento, escolhido para banir seu conforto e preparar o caça-Macaco apenas para encostar o corpo exausto e mantê-lo rígido e reto quando não estivesse caçando. Havia uma bola de pugilismo pendurada diante da mesa. Mas o sr. Zagreus acreditava nele pra valer. Você é um gênio! ele dissera na última semana (...)
     Seus pés doíam — seus ossos também —, então ele pegou um pouco de vaselina e esfregou entre seus dedos. Vestiu o sobretudo. A cafeteira estava quase vazia, e a panela de níquel e o bico de gás começaram a esquentar o café.
    Um livro que pertencia à pequena biblioteca provida para seu uso particular pelo sr. Zagreus estava aberto ao lado de sua cama. Era um dos quinze "livres de chevet"¹ especialmente recomendados. Ele o tomou e leu as linhas seguintes, numa página marcada para sua atenção.

    Fedra amava Hipólito, que era bruto;
    E Vênus via o rude Adônis bonito.
    Sê menos finório e mais asseado;
    E veste boa moda, ó varão educado.
    Não deixa teus dentes sujos ou escuros;
    Nem sai por aí nos Sapatos com furos.
    Sem Barba enorme, Focinho de tinteiro:
    Apara as tuas Madeixas num Barbeiro,
    Sem sujeira sob as Unhas, bem cortadas;
    Nem te saia do Nariz Selva cerrada.
    Aplaca o teu Hálito, faz gargarejo,
    Limpa o Sovaco da Catinga e do Brejo.

    Se ele ponderou uma vez, ele ponderou cem vezes sobre essa passagem enigmática, ou de cruel ambigüidade, trazida aos seus olhos por Horace Zagreus. As lágrimas pendiam de seus olhos enquanto ele fitava a página, com aquelas injunções bestiais.
    Por quê ah por que era tratado desse jeito por Horace? Ele tinha tido um sonho horrendo quando havia topado pela primeira vez com essa página medonha no qual um garoto branco e um negro se aninhavam nos seus sovacos direito e esquerdo que eram enormes como filhos do Orco, depositados em ninhos ciclópicos, de fedor singular. Suas narinas, que não apresentavam o vestígio de uma cerda, pareciam obstruídas nesse pesadelo por pretíssima vegetação. Suas unhas estavam carregadas da mais úmida e opaca imundície, num louco lamento, que ele tentava cortar e cortar, como haviam ordenado. Pois não estava escrito naquele temível tratado que, ainda que evitar o Finório fosse essencial, era necessário, a todo custo, ser asseado? E em seu sono angustiante se esforçava para se livrar das catingas e dos brejos — assoar o nariz para que suas narinas não fossem chamadas de tinteiro — e escavar os nojentos depósitos tanto das unhas das mãos como dos pés.

    "Aplaca o teu Hálito, faz gargarejo!”

    Quando chegou a essa linha abominável ele atirou longe o livro num arroubo. Ah por que Horace Zagreus o odiava tanto"

(de Lewis, Wyndham. The Apes of God, Black Sparrow Press, Santa Rosa, 1997 — fourth printing — 641pp. Excerto: pp. 134-135, Part IV: "Be Not Too Finical")


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¹(fr.) "livros de cabeceira".
 

chamaeleonte@yahoo.com