A má
educação
Aproveitando de leve o mote fornecido pelo filme
de Almodóvar que acaba de chegar a Cannes, consideremos a educação, mas
com um foco bastante específico: o ensino de literatura no Brasil. Aliás,
muito generoso, insinuarei aqui idéias gratuitas para o governo que se
interessar.
Em alguns momentos nessas páginas, o aspecto
necessário da educação de artes apareceu, em tom sarcástico ou joco-sério;
discute-se muito, enfim, acerca do assunto. Uns se perguntam: "mas, mas,
mas por que ensinar literatura" (ou música ou artes plásticas ou filosofia
ou artesanato), "se não serve pra nada no mercado de trabalho
(variação politicamente correta de mercado de escravos)?". E não
são apenas pessoas supostamente incapazes de avaliar o que estão dizendo,
os autores de perguntas sutis como essa. Portanto, creio que alguma
explicação seja necessária.
Os
franceses, não faz muito tempo, saíram às ruas em protesto contra a
retirada da língua latina e do grego do ensino: confesso a minha surpresa.
Tentava entender: "Eles sabem das conseqüências da falta disso ou estão
apenas protegendo um hábito?". Não sei. Se soubessem das conseqüências,
poderíamos imaginar o seguinte na cabeça daqueles franceses: "sem o ensino
dessas coisas desimportantes e inúteis, nossos moleques e molecas vão se
tornar uns imbecis do lucro e da tecnologia, incapazes de medir as coisas
por duração, sedimentação, com ética, humor, imaginação, etc. Em suma,
estarão sacando o pouco que faz de nós seres menos que
abomináveis".
Quando se ensina filosofia, não se está
ensinando nomes ilegíveis sob retratos sisudos, mas ensinam-se vários
modos de organizar o pensamento, pesar a vida e seus eventos com alguns
critérios; latim e grego ensinam a origem do Ocidente, as bases de muitas
línguas, técnicas de escrita, etc; a música refina o ouvido, as artes
plásticas refinam a capacidade de ver, a literatura refina a inteligência
e partilha modos de pensar, sentir, perceber. É evidente que tudo isso
pode parecer inútil, não devemos esquecer o mundo em que vivemos.
Mas também é claro que podemos escolher o mundo em que queremos
viver. A educação meteu os pés pelas mãos porque abdicou dessa
escolha para se render ao que pede o mercado de trabalho, isto é, agora a
educação prepara os escravos da sobrevivência e não prepara mais para
pensar, discutir e reinventar os modos possíveis dessa sobrevivência. Por
quê?
Porque passamos do inventivo ao instrumental. As
escolas acompanharam (e continuam a acompanhar) a imbecilização da
sociedade sem muito rumor. Há um modo bastante simples de verificar isso
sem sequer mencionar essas matérias, como dizem, "de Humanas": o ensino de
matemática tem sido pura e simplesmente mecânico, para esquecer
completamente como esteve ligado à filosofia de maneira indissociável por
séculos. Não é de admirar que vivemos no reino da estatística. Os números
perderam, nas escolas, qualquer conexão com o pensamento, eles são
inculcados, muito distantes de quando Leon Battista Alberti falou dos
números ocultos na natureza, ou mesmo de quando Lewis Carroll enviava
paradoxos para suas amiguinhas resolverem. É apenas um exemplo do fato de
que hoje a maioria dos professores não sabe o que ensina nem por
quê.
Isso quer dizer que a escola terá de mudar
drasticamente. Deverá encontrar um jeito de se desvincular das exigências
inanes do mercado; deverá encontrar ao menos um governo com sensibilidade
para tanto, o que é difícil; deverá se livrar de pudores, moralismos e
caretice; e, quanto a literatura, deverá acabar com os livros didáticos e
adotar antologias boas para valer (que, atualmente, inexistem). Isso não é
um apelo. É apenas aquela voz de fundo, normalmente ignorada, que precede
as catástrofes.
Acaso o medo é (continuando a má
educação)
Marcial de Bílbilis (40-104 d.C.) escreveu em
latim poemas terríveis, chamados epigramas. O epigrama, que veio
de inscrições tumulares de toda espécie, acabou se tornando a definição do
poema pequeno e mordaz, praticado em quase todas as tradições posteriores
à Antologia Grega e a poetas como Catulo e o próprio Marcial. Importante,
nesse tipo de poema, é a brevidade, capacidade de observação crítica,
objetividade e não ter papas na língua. Marcial sabia disso e, do prefácio
da obra até poemas inteiros da coleção dos Epigrammaton Libri,
discute o assunto e apresenta seus motivos. Epistola ad Lectorem,
Liber Primus dos Epigrammaton Libri:
Lascivam verborum veritatem, id est
epigrammaton linguam, excusarem, si meum esset exemplum.
Ele afirma que a lascívia das palavras constitui
o gênero e diz excusarem como quem infringe o decoro.
Evidentemente, Marcial não está praticando uma arte sem antecedentes, está
afirmando, na verdade, a existência bem definida de um uso específico da
linguagem, como quando escreve no livro I, poema 35: "Te queixas dos
versos, Cornelius,/pouco severos, inúteis prum mestre/na escola: mas aí os
libelos,/feito o marido à mulher,/não agradariam sem pica:/é pedir canção
de himeneu/sem que eu fale do Hímen".
Entendemos as razões de Marcial. Aos poemas que traduzi:
Livro III, 51
Quando cubro de
elogios
tuas pernas, tuas mãos,
. "Nua
agrado mais", Galla,
você me diz
então.
Mas um banho, nós dois,
está fora dos seus planos.
Acaso, Galla, o medo é
me ver sem estes panos?
Livro IX, 69
Quando fode, Polycarmo costuma
cagar.
quando é fodido, o q Polycarmo
fará?
Livro XII, 86
Trinta garotos e mais tantas garotas tens pra
ti:
e tens um só pau q não está nem
aí.
(com um oferecimento ao Professor José Dejalma Dezzoti,
aguardando a publicação da tradução completa de
Marcial)
Sê Menos Finório (concluindo a má
educação)
Wyndham Lewis, pintor e escritor inglês,
inventou o vorticismo com Ezra Pound, publicou a revista da vanguarda
(BLAST, de apenas dois números, de 1914 e 1915), deu vivas a
Hitler e depois se arrependeu. Enfim. Há em um de seus romances, o
monumental The Apes of God (infelizmente, ainda sem tradução), um
trecho que vem bem a calhar. Daniel está sendo tutorado (e poderíamos ser
tentados a dizer torturado) pelo sr. Horace Zagreus para vir a
ser um artista.
. "Essa solidão era
terrível!
Dan estava deitado e bocejava sobre seu
catre espartano. Seus pés doíam tanto que relutava em levantar. Eram já
três semanas disso, ele estava um caco! Era uma sombra de si mesmo. Com o
prospecto de seis semanas de espera, começava a se desesperar nesse
claustro agourento, escolhido para banir seu conforto e preparar o
caça-Macaco apenas para encostar o corpo exausto e mantê-lo rígido e reto
quando não estivesse caçando. Havia uma bola de pugilismo pendurada diante
da mesa. Mas o sr. Zagreus acreditava nele pra valer. Você é um
gênio! ele dissera na última semana (...)
Seus
pés doíam — seus ossos também —, então ele pegou um pouco de vaselina e
esfregou entre seus dedos. Vestiu o sobretudo. A cafeteira estava quase
vazia, e a panela de níquel e o bico de gás começaram a esquentar o
café.
Um livro
que pertencia à pequena biblioteca provida para seu uso particular pelo
sr. Zagreus estava aberto ao lado de sua cama. Era um dos quinze "livres
de chevet"¹ especialmente recomendados. Ele o tomou e leu as linhas
seguintes, numa página marcada para sua atenção.
Fedra amava Hipólito, que era
bruto;
E Vênus via o rude Adônis
bonito.
Sê menos finório e mais
asseado;
E veste boa moda, ó varão
educado.
Não deixa teus dentes sujos ou
escuros;
Nem sai por aí nos Sapatos com
furos.
Sem Barba enorme, Focinho de
tinteiro:
Apara as tuas Madeixas num
Barbeiro,
Sem sujeira sob as Unhas, bem
cortadas;
Nem te saia do Nariz Selva
cerrada.
Aplaca o teu Hálito, faz
gargarejo,
Limpa o Sovaco da Catinga e do
Brejo.
Se ele ponderou uma vez, ele ponderou cem vezes
sobre essa passagem enigmática, ou de cruel ambigüidade, trazida aos seus
olhos por Horace Zagreus. As lágrimas pendiam de seus olhos enquanto ele
fitava a página, com aquelas injunções bestiais.
Por
quê ah por que era tratado desse jeito por Horace? Ele tinha tido um sonho
horrendo quando havia topado pela primeira vez com essa página medonha no
qual um garoto branco e um negro se aninhavam nos seus sovacos direito e
esquerdo que eram enormes como filhos do Orco, depositados em ninhos
ciclópicos, de fedor singular. Suas narinas, que não apresentavam o
vestígio de uma cerda, pareciam obstruídas nesse pesadelo por pretíssima
vegetação. Suas unhas estavam carregadas da mais úmida e opaca imundície,
num louco lamento, que ele tentava cortar e cortar, como haviam ordenado.
Pois não estava escrito naquele temível tratado que, ainda que evitar o
Finório fosse essencial, era necessário, a todo custo, ser
asseado? E em seu sono angustiante se esforçava para se livrar
das catingas e dos brejos — assoar o nariz para que suas narinas não
fossem chamadas de tinteiro — e escavar os nojentos depósitos tanto das
unhas das mãos como dos pés.
"Aplaca o teu Hálito, faz gargarejo!”
Quando chegou a essa linha abominável ele atirou
longe o livro num arroubo. Ah por que Horace Zagreus o odiava
tanto"
(de Lewis, Wyndham. The Apes of God, Black Sparrow Press, Santa
Rosa, 1997 — fourth printing — 641pp.
Excerto: pp. 134-135, Part IV: "Be Not Too
Finical")