A Morte de Actæon, de Ovídio
Neste
mês teremos rápidas observações sobre o uso que Dante Alighieri fez da
poesia das Metamorfoses, de
Ovídio, e mais um trecho traduzido do livro III. A série será ligeiramente
interrompida em novembro, em que escreverei sobre alguns poetas
brasileiros, novos e importantes, e sobre Hieronimo Corte Real. Em
dezembro, como presente de Natal, apresentarei um texto sobre as relações
entre Arthur Golding, William Shakespeare e Ovídio, além da tradução, com
alguns comentários, do trecho do Narciso. Ovídio & Dante Tanto
o elemento essencial do discurso ovidiano no poema, ou seja, a
inevitabilidade das transformações como forma de renovação da vida, como
seus mais variados aspectos técnicos, encontraram fortuna criativa
posterior. Isso é uma generalidade, confortável como toda generalidade,
mas é o que já sabemos. Vamos dar uma olhada com um pouco mais de detalhe
num certo italiano, chamado Dante Alighieri. A
Divina Commedia, baseada na punição teológica do
contrapasso, segue de perto as Metamorfoses — Dante
certamente compartilhava a visão da Eneida e admirava muito o poema
de seu mestre e guia Virgílio, de que a cristandade se apoderou para fazer
do pius Æneas um herói já mais próximo dos compromissos do
cristianismo1;
entretanto, pela variedade que a Commedia assume, podemos ver que
Ovídio significou muito2
no desenho geral, e também em detalhe — mas nem seria preciso ir à
Commedia: Ovídio comparece certamente aqui,
la dura petra che
parla e sente come fosse donna. na
primeira estrofe do poema II das Rime Pietrose. Dante, já nesses
poemas, determina ultrapassar o engenho de Ovídio: o que propõe não é
exatamente uma metamorfose, mas uma espécie de simbiose entre as
qualidades da dama que é a mais bela quando cinge a grinalda de folhas, e
é ao mesmo tempo fria — para o amor dele — como pedra. Propõe uma gradação
engenhosa à história de Pigmaleão, cuja estátua que talhou, uma mulher de
beleza única, foi trazida à vida, a seu pedido, por Vênus. Em Dante ela é
a dama filosófica, já temperada pela invenção dos trovadores
provençais3
e pela escolástica, e é pedra que não espera milagre para vir à vida,
porque parla e sente come fosse donna.
Dante propõe, na Divina Commedia, uma concepção diferente da
das Metamorfoses, é claro. O poema se compõe em diversos índices
alegóricos, porque a transformação não possui mais o sentido de reinventar
a vida sob uma crise, mas é o espelho, a cristalização da própria crise.
Como a Commedia é um poema que pretende figurar o prêmio do mérito
e vícios malsinados, o mundo mítico das Metamorfoses é praticamente
a encenação de um inferno, onde os "monstros" mitológicos se debatem na
punição4.
Tanto o objetivo de superar o engenho de Ovídio quanto a interpretação
alegórica de Dante podem ser observadas no Canto XXV do
Inferno.
Estamos no Malebolge, ou Fossas Malignas, oitavo círculo do
Inferno que tem a forma de um funil; no Canto XXV Dante e Virgílio
assistem a uma metamorfose muito peculiar: os ladrões jazem num fosso
repleto de víboras, najas, jáculas, anfisbenas, etc. que os envolve, morde
e maltrata. Entretanto, num certo momento, ocorre a transformação que os
dois poetas presenciam, e que eu transcrevo aqui na até hoje imbatível
tradução de Cristiano Martins5: As
patas médias pôs-lhe ao ventre, irada, com
as da frente reduziu-lhe os braços, retalhando-lhe
as faces a dentada. As
de trás estendeu-lhe, como laços, sobre
as pernas, e a cauda projetando entre
as mesmas, tolheu-lhe, rude, os passos.
Jamais a hera tenaz se foi juntando tão
firmemente a um tronco tal a fera ia
nos dele os membros insinuando.
Como se feitos de aquecida cera, mesclavam-se,
trocando o colorido, e
nenhum persistiu como antes era —
qual
se vê o papel, que, submetido ao
fogo, fica a pouco e pouco escuro, e
alvo não é, sem ser enegrecido.
Observando o colega neste apuro, um
lhe gritou: "Agnelo, que mudança! Já
não és um, nem dois, eu te asseguro!"
Suas cabeças, em tal contradança, formavam
uma só, e amalgamados iam
rosto e focinho, sem tardança.
Quatro braços em dois vi conformados; e
coxas, gâmbias, joelhos, peito e baço, assumindo
aleijões nunca encontrados.
Do jeito antigo não ficara traço: nem
aos dois juntos, nem a um só, a imagem lembrava,
indo dali, monstruosa, a passo. E
em seguida, Dante chegará, convencido do que acaba de fazer, a se gabar da
invenção:
Calem-se as artes pelas quais Ovídio em
fonte fez, num átimo, Aretusa, e
Cadmo transformou em triste ofídio.
Como ali não mostrou a sua musa duas
raças diversas, frente à frente, tomarem
uma da outra a forma infusa. Nestes
trechos temos todo o processo, desde a imitação demonstrativa, passando
pela citação, até chegarmos a um tipo de superação do modelo. A
imitação se dá no detalhe das descrições, com o cuidado meticuloso da
verossimilhança do processo de transformação, como neste trecho da morte
de Actæon no livro III das Metamorfoses: lhe dá uma galhada vivaz de cornos de
cervo, lhe expande o pescoço, orelhas culminam em pontas
agudas, as mãos viram patas, braços mudados em pernas
compridas, e o corpo é coberto de pêlo malhado, além de lhe dar o pavor: foge o filho de
Autonoë e de tão veloz admira a si mesmo. Mas vendo o vulto e os chifres que um lago
reflete, "Ai de mim!" foi falar: mas voz não se
escuta! gemeu — fio de voz —, e as lágrimas fluem
agora por
um rosto que não é mais seu. Logo depois daquele trecho, Dante cita Ovídio praticamente
traduzindo a fala espantada de Lycabas, também do livro III, quando vê seu
companheiro de tripulação ser transformado por Baco em golfinho. O texto
das Metamorfoses: huic Lycabas "in quae miracula" dixit "verteris?" na minha versão, como vimos no último
mês: Lycabas
então:
"que milagre", ele diz, "te
reverte?"
E o texto de Dante, que lemos linhas atrás: "Omè, Agnel, come ti
muti!/Vedi che già non se' né due né
uno."6, isto é, um lhe
gritou: "Agnelo, que mudança!/Já não és um, nem dois, eu te asseguro!".
Para complementar, Dante faz com que a transformação não se defina, com o
ladrão e a serpente infusos
numa forma compósita dos dois seres, o que encena a falta de caráter
daquele que rouba, arrematando o trecho com a declaração explícita, à
parte da narrativa, de ter superado Ovídio, "ché due nature mai a fronte a
fronte/non trasmutò sí ch'amendue le forme/a cambiar lor matera fosser
pronte". O que também confirma a conhecida vocação de Dante para a
modéstia.
Evidentemente, e como já afirmei antes, o poema teológico de Dante
difere em natureza da recolha mitológica de Ovídio, e tem este aspecto
central: o alegórico. Se a lei do contrapasso é a lei da
Commedia7,
assim como a metamorfose orienta a narrativa de Ovídio, o caráter exemplar
da ordem divina entra no lugar da casualidade vital da transformação nas
Metamorfoses. A Tradução de "A Morte de Actæon" Selecionei
o excerto que narra a morte trágica do neto de Cadmo, Actæon, que já foi
citado no mês anterior e apareceu neste aqui também. Logo no início, há os
três versos em que Ovídio pondera sobre a justiça da Fortuna, deusa
sabidamente temperamental, que parece uma intromissão de texto posterior,
como havia dito no mês que passou, considerando o próprio infortúnio do
exilado Ovídio. Nessa
mesma "Morte de Actæon", o centro de força da história está na lista dos
cães caçadores, pois Ovídio marcou a perseguição, muito engenhoso, apenas
encadeando o nome de cada animal da matilha, com suas características
correspondentes, o que causa a impressão de velocidade, e, por
conseqüência, o efeito aflitivo da perseguição. Interessante notar como
Ovídio dota a tópica da listagem épica − que ocorre na Ilíada, por
exemplo, quando temos a lista dos barcos dos dânaos − de um aspecto
plenamente funcional dentro do poema. Notar
também, já no fim do episódio, como Ovídio coloca os verbos clamo e
quaero, precedidos do nome de Actæon, criando a impressão, no
leitor, de que ouve, assim como o próprio Actæon mudado em cervo, os
amigos chamando seu nome − um modo bastante sutil, mas igualmente eficaz,
de trazer o leitor dramaticamente para dentro da ação do
texto. Boa leitura.
A Morte de Actæon (Metamorfoses,
III, vv.138-252; tradução de Dirceu Villa) Primeiro o teu neto entre todos tesouros,
Cadmo, foi
causa
de luto, com cornos estranhos na fronte; e vós, ó cães, saciados no sangue do
dono; mas se bem consideras o crime talvez da
Fortuna, ultraje não há; pois como haveria ultraje num
erro? Era um monte manchado com o sangue de
feras já ao meio-dia, encurtavam-se as sombras e o sol já distava o mesmo das metas; o jovem hianteu8,
vagando no bosque em busca de caça com plácida voz compelia os parceiros: "Redes molhadas, amigos, o ferro está farto de
sangue: tivemos um dia de sorte; logo a luz
torne nas rodas do carro dourado da
Aurora, repetimos a prova proposta. Febo já dista
o mesmo das metas, o calor evapora nos
campos. Tivemos trabalho bastante, colhamos as redes nodosas e
vamos." Assim os rapazes fizeram, encerrando a
caçada. Era um vale de densos ciprestes, pinheiros agudos, de nome Gargáfia, sagrado a Diana
divina, e em seu ermo profundo havia uma gruta por arte nenhuma lavrada: imitava uma
arte natura engenhosa, que a pomes sustinha tufos suaves erguidos num arco nativo. Límpida fonte fluía à direita, espraiando
na margem gramínea um mínimo lago. Aqui vem a deusa dos bosques cansada da
caça seu corpo virgíneo e flexível banhar no aquoso cristal;
e então, ao chegar, dá o dardo a uma ninfa,
a aljava e o arco recurvo de ouro; outra oferece os braços ao manto
deposto e duas desatam as sandálias dos pés; mais experta
é a ismênia Crocale, a que colhe num coque
os cabelos esparsos, que sempre andam
soltos. Outras, Nefele, Híale e Ranis, Psecas e
Fíale, despejam-lhe a água das urnas
repletas. E enquanto a Titânia se lava na linfa de
sempre, eis que o neto de Cadmo, pondo de parte o
trabalho, a passos incertos errando por bosques
estranhos, chegou logo ao bosque: foi o que os fados
fizeram. E assim que entrou na úmida gruta da
fonte, nuas as ninfas, espancam os peitos ao ver o varão,
forrando a floresta com urros e gritos
aflitos, e circundam Diana cobrindo seu corpo com o
delas: mais alta que todas, a deusa as supera pescoço para cima;
e a cor de cobre das nuvens aos raios do
sol, ou a cor que colore a Aurora purpúrea,
então foi vista no vulto sem veste de Diana; e, por mais que as ninfas em torno a
cobrissem, virou-se de lado, olhando para trás e, querendo que prontas tivesse suas
flechas, aquilo que tinha, a água, jogou no rosto do
jovem; e à água que vinga, em seus cabelos, juntou
estas palavras de augúrio fatal: "Que me viste sem véu, tu podes agora
dizer, se fores capaz de dizê-lo!" só essa ameaça,
e lhe dá uma galhada vivaz de cornos de
cervo, lhe expande o pescoço, orelhas culminam em pontas
agudas, as mãos viram patas, braços mudados em pernas
compridas, e o corpo é coberto de pêlo malhado, além de lhe dar o pavor: foge o filho de
Autonoë e de tão veloz admira a si mesmo. Mas vendo o vulto e os chifres que um lago
reflete, "Ai de mim!" foi falar: mas voz não se
escuta! gemeu — fio de voz —, e as lágrimas fluem
agora por um rosto que não é mais seu. Sua mente foi só o que
permaneceu. Que fazer? retornar à sua casa e às regalias do
lar, ou buscar na floresta o refúgio? pudor e temor o
impedem. Na dúvida imóvel, o viram seus cães, Melampo
primeiro e Icnobates de faro sagaz o assinala
latindo, Icnobates
de Cnossos, Melampo de
Esparta; ao que os outros rosnam e rápido rumam para
lá, Panfago
e Dorceu e Oribasos, todos da
Arcádia, Nebrofono
valente, Lélaps e Théron feroz Pterelas
de
patas velozes, o focinho de Agre e a fúria de Hyleu, ferido por um
javali, Nape,
filho de lobo e Pemênis, que guarda
rebanhos, Harpia
com mais duas crias, o esbelto Ladôn
siciônio, e Drômas e Cânaque, Alce e Sticto e
Tigre, Lêucon
níveo de pêlo e Ásbolo preto, Lácon
fero e fortíssimo, e Aélo
queima-caminhos, Toôs
e
Liscise voadora com o irmão
Cipriota, Harpalo
distinto, com fronte negra manchada de
branco, Melâneo
e Lachne de pêlos hirsutos, Labros e
Argíodo, com pai de Dicteu e mãe da Lacônia, Hylactor
de fino latido, e muitos que seria demais nomear: a matilha com sede de sangue
persegue a presa em escarpas, rochedos
abruptos, por trilhas difíceis ou trilha nenhuma, persegue. Foge por onde fez tanto fugir, perseguido pelos que fez perseguir,
e queria gritar: "Eu sou Actæon; vede: sou vosso
dono!" palavras não atendem a intenção; latidos ressoam no
éter. Melanquetes
primeiro lhe crava os caninos no dorso, depois Teridamas, Oresítrofo rasga seu
ombro: tinham os três se atrasado, mas por um atalho no
monte se anteciparam; preso o dono por eles,
juntam-se os cães e rompem-lhe a carne do
corpo, em que já não cabem feridas; geme num som
que, humano não é, nem de cervo também. Lamentos preenchem as colinas que tão bem
conhece, E, como se suplicasse, de joelhos,
rogando, move seus olhos à volta, sem braços que possa
estender. Os amigos incitam a matilha com gritos,
tudo ignoram e atiçam, e então buscam
Actæon, não o vêem e chamam aos brados Actæon,
(que ao som desse nome volta a
cabeça). Queixam-se todos de lá não estar, e de perder
por preguiça o espetáculo da presa que
pegam. Ausente quer estar, mas não está; queria ver, somente,
sem sentir, a fúria de seus cães
ferozes. Em torno se agitam, mandíbulas rasgam seu
corpo, dilaceram o dono na imagem mentida de
cervo, e Diana tampouco aplacou sua ira, como se
diz, até que
feridas demais lhe tiraram a vida. A Morte de Actæon (Metamorfoses, III,
vv.138-252) Prima nepos inter tot res tibi, Cadme, secundas nec nisi finita per plurima vulnera vita ira pharetratae fertur satiata Dianae.
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