©paulo pinto
 
 
 

 
 

   

A poesia brasileira vive, meus caros

 

Nota de abertura: sem ofensa aos dignos poetas que freqüentaram nos últimos meses a minha página, senti que havia nela qualquer coisa de fúnebre em relação à poesia, porque, em sua maioria, eram poetas beeeem antigos, como Ovídio (embora também tenha chamado a atenção para a poesia preciosa do vivo Alfredo Fressia, por exemplo). Poderia se tornar um rumor sinistro, de que quase não há mais poetas vivos que prestem, o que a página deste mês vem corrigir com uma miniantologia comentada de alguns dos jovens poetas brasileiros que mais aprecio. Dito isso, passamos ao texto.

 

        As pessoas gostariam de ver uma cena efervescente de poesia; digo, algumas pessoas interessadas no assunto, que vivem um pouco desconcertadas com o fato de que a poesia atualmente não se apresenta como algo forte, nem com um funcionamento, por assim dizer, orgânico1.

        Essas pessoas estão corretas: a situação causa certo desconforto, semelhante ao daqueles velhos carros que rateiam feio para pegar. NENHUM fluxo de idéias estéticas existe sem que a convivência entre os artistas seja estimulante, e para isso é necessário que esses artistas sejam bons o suficiente para instalar um ambiente de constantes descobertas de parte a parte (e que possam dispor de algum tempo para fazê-lo, sem terem de se dispersar apenas tentando sobreviver: parece uma idiotice, mas é muito sério). E, de preferência, entre artistas de meios diferentes. Não estou dizendo, novamente, nenhuma novidade.

Além disso, é óbvio, estou falando de condições mais ou menos ideais, que chegaram a acontecer algumas vezes no caso específico da poesia: o trovadorismo provençal, o stilnovismo italiano, os elisabetanos ingleses, o fin-de-siècle francês (séc. XIX) e o modernismo internacional (de até por volta dos anos 20 do século XX), para citar alguns exemplos contundentes, famosos. Os anos 60 do século passado já não foram propriamente uma enxurrada criativa na poesia, mas na música popular internacional, e eu creio que daí em diante as coisas que realmente fizeram diferença aconteceram nesta e em algumas outras artes, não em poesia, mesmo porque os melhores exemplares da poesia do período acabaram meio obscuros, quase que apenas nas prateleiras das pessoas que têm um pouco de savoir-faire.

Por quê?

Porque a poesia — junto com as artes plásticas, por exemplo —, se encastelou na universidade, fazendo o percurso contrário ao de algumas bandas bastante criativas dos últimos anos nos Estados Unidos, que saíram da universidade; porque a leitura — e com leitura eu quero dizer as pessoas acharem normal topar com coisas que desconhecem num texto, extraindo um prazer muito específico disso — praticamente morreu, seja porque as escolas e os currículos desandaram, seja porque vivemos uma época das mais conservadoras (e os conservadores, é claro, não se interessam por idéias novas, arriscadas ou amorais); porque poucas pessoas têm alguma memória, menos ainda têm algum tempo para pensar, apreciar e julgar coisas por elas mesmas, e ainda menos do que estas são as vivamente interessadas, concluindo, com alguma sabedoria, que a vida exige a síntese da poesia; porque, em geral, lembrando de tudo o que foi dito acima, os poetas são ruins para cachorro.

Todos? Não. Como eu disse, "em geral".

O texto deste mês é mais ou menos uma apresentação de alguns poetas brasileiros, na faixa dos vinte a trinta e poucos anos, que escrevem uma poesia interessante e inteligente. Pouco importa se estão ou não na faculdade: o fato é que em todos eles (e são muito diversos no modo como encaram e escrevem poesia) há o impulso de descobrir meios particulares, com efeitos também particulares, para suas vozes; quero dizer, ainda que o leitor mui lido e esperto resmungue  "hum, não estão prontos ainda", é possível encontrar nesses poetas — e em outros, não se pode saber ou incluir tudo — os motivos que fazem alguém gostar de poesia. Do meu ponto de vista, isso já seria o bastante para um começo. E devemos considerar também que a crítica não deveria ser exercida como a última palavra sobre o assunto, ou como a definição que levará os cordeirinhos em fila. A crítica deveria ser exercida, ao contrário, como um modo de pôr as idéias em circulação, desenvolvendo um ambiente para o estabelecimento de valores artísticos. Na minha opinião, é a única coisa que pode salvar a pele enrugada da crítica. Blablabla.

Nem seria o caso  de se reclamar uma revolução em poesia, ou chamar a muitos numa geração  "inventores". Isso é o mesmo que aquela circunvolução retórica do valor agregado do comércio: você prega uma etiqueta com a marca sensacional e vende, no fundo, opinião, no mais das vezes equivocada, mesmo porque não deve haver mais que uma dezena e meia de verdadeiros inventores ou revolucionários na poesia ocidental; mesmo porque essas coisas acontecem quando necessárias, e não porque alguém enfiou nos miolos que é a única coisa digna de atenção. Há períodos, como disse Eliot, em que o terreno ganho precisa ser explorado. Me parece evidente que o período começado na Decadência francesa se resolveu historicamente até a década de 20 do século passado, e tem recebido vários desenvolvimentos desde então. Isso não acabou.

Enfim, vamos aos poetas, para ver como fazem a diferença:

 

 

Alexandre Barbosa

 

É quase um insulto dizer que é um  "novo poeta". Tem ao menos quatro livros publicados (Livro de Poemas,1992; Viagem a Cuba, 1999; Azul Escuro, 2003; XXX, 2003);  e já tem seus poemas significativos. É um poeta jovem — tem algo por volta de trinta anos — e claramente culto, mas sem que isso pese como uma deselegância ou que impeça a leitura de seus poemas; na verdade, há neles a tendência para um tipo de leveza que se concentra em usos de linguagem e um constante foco na beleza.

Sua poesia tem contato com a tradição latino-americana de língua espanhola e isso o torna sutilmente diferente do registro que se reconhece geralmente no Brasil (quero dizer, aqueles toques ubíquos de Manuel Bandeira, Drummond, João Cabral ou dos concretos): seus versos são bem pensados e se nota o cuidado na escolha das palavras. E ainda assim, percorrendo seus livros, é fácil notar que sabe utilizar a forma que lhe convém, e isso pode significar coisas muito diferentes, como por exemplo o estilo conversacional que marca Viagem a Cuba, na segunda estrofe da segunda parte do ótimo "San Lázaro":

 

Disse Caridad que gosta de novelas brasileiras

porque são mais picantes que as colombianas

Sua casa é um templo cheio de penduricalhos:

caroços amarrados em fitas

Maços de cigarros enfileirados

Fotos de jornais e revistas o papa em Cuba  Roberto Carlos  y  Fidel

Seu sorriso de mulher única e simples encabulada e senhora

Seu cabelo preso com um lenço

Ela me deu três cigarros que os meus acabaram

 

Ou um haicai da estadia na Holanda, de XXX:

 

POMARES DE VvG

 

Incêndio no céu

Rio, vento

Árvore em chamas brancas

 

Ainda seria justo lermos  "Em uma exposição de fotos de Sit Kong Sang", ou "Cena do Campo", etc., mas encerro com "O pássaro chinês"

 

para o Willy Corrêa de Oliveira

 

O pássaro chinês

Deixou as mãos

Do artista: encantado,

 

Voou por oceanos

Esquecidos dos grous,

E, mais saudoso que cansado,

 

O aventureiro

Pousou com espanto

Entre o santo e o tinteiro;

 

Onde agora vigia,

Seu sábio coração

De madeira da China.

 

 

 

Flávia Rocha

 

Seus poemas são superficialmente serenos, mas não imóveis; elegantes, mas nunca frívolos. O desenho de seu fraseado livre, bem delineado e às vezes prosaico é sempre conciso, atento só ao necessário antiadjetival. É aquilo que os livros costumam chamar de  "lírico", mas de uma espécie relativamente rara, antimusical, cultivada. É difícil — e de resto, desaconselhável — tirar uma só conclusão sobre seus poemas quando acabamos a leitura: eles se realizam durante, a cada palavra.

 

CASA DOS AVÓS 

 

Um tronco de árvore atravessado no quintal —

os homens, exaustos

em mangas-de-camisa,

gesticulam apontando para o tronco.

 

Na casa em silêncio,

miniaturas espalhadas pelo chão, deixadas ali

por oito crianças vestidas de preto.

 

Um dos meninos (meu pai)

passa correndo, agarra um soldado,

e o faz voar janela afora

para dentro da floresta tropical.

 

Nunca vira homens tão fortes.

Eles falavam em construir um caixão. 

 

Um bom exemplo é o início de  "NOTA" , quando lemos  "É como/ se eu entendesse". É aí que entra sua poesia:

 

NOTA

 

Eu nunca disse. É como

se eu entendesse, subitamente,

o sentido das perspectivas.

 

Vôo de um pássaro reluzente desta árvore

para a mesma árvore mais atrás.

Nossas cabeças, uma figura

 

minimalista: duas linhas retas e um sol

no ponto de fuga. Janela aberta

para o poente fixo, a iluminar

 

com raios difusos, esta nota inacabada.

Galho quebrado trazido do fundo

no bico de um pássaro reluzente.

 

 

 

Paulo Ferraz

 

Tem uma poesia do argumento, e muito variada no modo de o fazer. Bastante complexa no sentido de ser muito sintática, mas não como dizemos, por exemplo, que Mallarmé é sintático, nem também como João Cabral, embora haja pontos de contato com este último. Há na poesia de Ferraz certo humor urbano, seco e sensato, não necessariamente maligno, mas sempre pensante. Como nesse hábil poema:

 

A POÉTICA VISTA NUM ARMÁRIO

Suspensos por esses
ombros finos — qual fumaça
condensada em pano,

não por ação de intempéries,
mas pelo domínio
das mãos sobre o bruto — quanto

guarda de um conteúdo
já tido? Seu corte fôrma
não é para o aparente

vazio. Se me entrego às curvas
e drapeados, deixo
me envolver na trama e ali me

posto. Logo, noto o
dom que o fez, paciente e certo,
por metragens que eu que

nada sei de seus motivos,
constato em qual corpo
cairia — de pronto me espanto,

pois se forma dentro
de mim – mesmo sendo roupa — a
sensação do toque.

 

Que conserva a revelação do sentido, durante todo o desenvolvimento, para o último verso, incitando o leitor a lê-lo novamente quando chega ao fim, agora sob a perspectiva completa da primeira leitura. Notar como a grande quantidade de travessões introduzindo como que apostos ajuda a realizar o andamento reflexivo do poema. Gostaria de citar vários outros poemas tão interessantes quanto esse, como "Natureza-Morta", ou "Se visse por outro olho meu olho olhando", etc. mas seria muita coisa, além de ser minha recomendação que o leitor vá ao seu livro Constatação do Óbvio, do selo Sebastião Grifo. Mas devo mencionar, para ser fiel a como seu estilo se flexiona, este poema rimbaudiano (ou daqueles breves e sarcásticos carmina de Catulo), que nada tem a ver com o torneio complexo do pensamento e da sintaxe, mas fixa com precisão e economia as imagens:

 

PARA NOEL

Perfeitas em peso e
medida, duas obras
do gênio me tocam:
são as portas sem trancas
que cedem com um simples
toque (ou, se alto o porre,
com um tombo) e essas louças
para mijar. Nossa,
chegar sem sentir as
pernas, dar de testa
com a parede, abrir o
zíper e observar o
dourado no ralo
não têm tradução!

 

 

 

Fabrício Corsaletti

 

No sentido da escrita, antiintelectual (embora aprecie Apollinaire, García Lorca, Ferreira Gullar, Pablo Neruda, etc.), que inicialmente pode parecer escrever uma poesia fácil. Mas é um engano ver em sua poesia veloz, fluida e redondilha essa armadilha da facilidade. Engenhoso, vai da notação rápida, esperta e precisa da experiência imediata, como podemos ler em  "Tomates", do primeiro livro, Movediço (2002):

 

                os tomates

                        fervendo na panela

                        meu pai minha mãe

                        na sala de televisão

                   fiquei olhando os tomates

                   estava frio o bafo

                        quente dos tomates

                        esquentava as mãos

 

                        saía da panela

                        já naquele dia

                        um cheiro forte de passado

 

— em que a conclusão já vinha anunciada de modo sensorial nos versos  "estava frio o bafo/ quente dos tomates" — até a meditação metafórica do mesmo modo certeiro, como em  "A Aranha", de O Sobrevivente (2003):

 

                        Não importa a idade, a aranha

                        em algum momento

                        se cansa e não quer mais

                        atear suas lentas cordas no espaço

                        infinito. O mundo lhe parece

                        veloz e estranho, e raramente ela deseja

                        ser veloz. Está liquidada, e segue em linha

                        reta, sem olhar para os lados,

                        porque os movimentos circulares a entontecem;

                        além de duvidar da suposta liberdade

                        que a loucura de caminhar em labirintos elásticos

                        pudesse lhe dar: crê que o louco sabe que é louco.

                        Enfim, ela quer um ritmo justo.

                        Eufórica, esse ritmo (que ela apenas intui)

                        se transforma, e de olhos fechados, escura e fosca,

                        ela sonha ser — mas isso seria a alegria!—

                        uma enguia num mar branco,

                        um límpido escaravelho.

 

 

 

Rodrigo Petronio

 

Seu livro História Natural (2000) já é, em si, um livro de estréia e um livro importante. Nele se condensam várias formas poéticas e um modo particularíssimo de utilizá-las, isto é, desde o poema mínimo e conciso

 

                ALBA

 

                        Ela se lava

                        à meia-luz

                        na aurora

 

                        demora

 

passando pelos de tipo, digamos, elegíaco, como "Homenagem a Kalidasa"  (transcrevo a parte II)

 

                Os elefantes pisoteiam o lago,

                        agora mais real com suas pegadas.

                        Raízes aéreas sob nuvens de pó,

                                    braços que crescem para todo lado.

 

                        Assim os deuses no promontório

                        revelam nosso amor

                                                            pelo Incorpóreo.

 

até os poemas dramático-filosóficos, como o longo  "Círculo de Giz", com seu começo magnético:

 

                Sobre o trilho o céu se fecha

                        como uma nuvem que descendo

                        toque a face de Deus na água

                        refletida, ou fúria brutal

                        que guardasse a chaves

                        indício de mais remoto amor

 

temos Petronio se utilizando de muitas referências sem perder a unidade de sua voz — o que é um verdadeiro feito no caso de um poeta jovem num livro de estréia, e é o que eu então assinalava no prefácio.

Os novos poemas, que têm saído na imprensa, deixam entrever que há mais de onde vieram aqueles, e cito como bons exemplos os poundiano-chineses,  "Li Tai Po"

 

Um dia alguém vai ouvir

essa brisa que ouço agora:

 

verga os galhos do plátano

leva das mãos esta folha.

 

e  "Meditação às margens do Rio Amarelo (do insucesso do mau governo)":

 

                Queimei a pólvora dos meus dias lendo as entrelinhas do capital.

                        Decidi que o mundo foi feito para acabar em um livro.

                        Esterilizei a terra e adulterei o curso dos rios.

                        Ergui palácios de papel sobre estruturas e vigas de vidro.

                        Escureci a noite e tirei os dentes dos risos.

                        Apaguei a memória dos mortos e matei o viço dos vivos.

                        Carcomi o azul do céu e ceifei as raízes do trigo.

                        Hoje o meu império vacila e rebenta como um corpo balofo cheio de estrias.

                        As crianças estão velhas e rugas brotam do amaranto.

                        Tudo o que toco parece ter dois mil anos.

                        Talvez isso seja o início do que chamam sabedoria.

 

 

 

Joca Reiners Terron

 

Tipo raro na poesia brasileira o seu verso objetivo e cortante. Ainda não conheço muito sua poesia, mas tive a oportunidade de folhear uns dois livros dele (creio que tem dois de poemas, Eletroencefalodrama, 1998 e Animal Anônimo, 2002) e sua participação na antologia nova-iorquina Rattapallax 9 (2003), de onde destaco o poema:

 

                CARA-DE-CÃO

 

                        Aqui

                        entre

                        as lajes

                        deste

                        shopping

 

                        Xolotl

                        conduz

seu carro

 

na garagem

do cemitério

vertical

 

Aqui

sobre

este

viaduto

 

cinocéfalo

guarda o

acesso

ao Vapor

 

Aqui

neste

canteiro

de obras

 

soldado-

macaco

Cara-

de-Cão

tranca

a porta

do morro

 

As uzi

jorram

luz e

 

a noite

um manto

furado

 

por balas

perdidas

 

(ou seriam

estrelas?)

 

Esses seriam os nomes que destacaria como leitor, e que, por um motivo ou outro, chegaram às minhas mãos ou então fizeram parte de descobertas pessoais, naquele esquema de livraria, quando você diz para si mesmo diante da prateleira:  "muito bem, vamos achar um bom livro de escritor novo".

 

 

Jeronymo Corte Real: um pouco de ornamento antigo

 

                    com um agradecimento a Iuri Pereira

                                   (e sua biblioteca infinita),

que me emprestou uma antologia com biografia, episódios, etc.

 

Há um livro já obscuro na poesia portuguesa (obscuro porque esquecido, não porque difícil), que se chama O Naufrágio de Sepúlveda, escrito por Jeronymo Corte Real. Uma passada de olhos pelo livro e somos levados a pensar: "É, mereceu ter sido lançado ao Letes".

 Mas vamos banir nosso gesto impulsivo, e o do tempo.

A ação desse poema de baldada pretensão épica é apenas o expresso no título, ou seja, trata-se, com rompantes clássicos, do naufrágio de uma respeitável família portuguesa. O, Lugete! A despeito da óbvia desproporção, do tipo um tanto ridículo como já enunciado uma vez Horácio, na Ars Poetica2, o  "rompante clássico" tem seus méritos nesse caso, num sentido de ornamentação do discurso. Boa ornamentação, e coisa em si mesma, e não porque sirva convenientemente à ação, que, como eu disse, é bem tola — e assim também se entende porque Camões o ofuscou sem nenhum esforço, apenas escrevendo sua poesia.

         Poderíamos pensar nesse poema como pensamos num filme fraco de excelente fotografia: saímos da projeção com uma estranha sensação de aborrecimento. Algo nos frustrou, mas houve certo nível de recompensa, e o descompasso entre as duas coisas causa o desconforto. No caso da poesia de língua portuguesa, a recompensa é grande: com poucos estilistas que valham alguma coisa, e em geral desprezados em favor de radicais ou românticos (isto é, ou de uma poesia mecânica e insípida, ou descabelada e queixosa), há trechos relevantes para uma educação do estilo. Porque talvez o melhor modo de ler as qualidades do absurdo poema de Corte Real seja considerar fragmentos em separado, que ganham interesse não só antológico (no caso de se entender antológico como termo tão fúnebre como se costuma dar a  museológico), mas parecem brilhar com uma intensidade que a obra inteira, pelo desnível e a falta de assunto, encobre. A que utilizo é a bela edição de Lisboa, 1783, da Typografia Rollandiana. Vejamos este pequeno apólogo, no meio da narrativa:

 

 

A ADULAÇÃO

 

Quis ver a quarta porta, por onde entra

Muita, & muy falsa gente; olha a figura,

Que està sobr’ella, & ve ser de donzella

Atractiua, apraziuel, & risonha;

O rosto ledo affabil amostrando

Nelle ser contrafeita, & mintirosa.

Vestida està de mil diuersas cores,

Com letreiro nas mãos, que assi dezia:

Meu nome Adulação he, que no mundo

Entre Reys,  & senhores reino, & priuo,

E tenho por officio louuar sempre,

Onde proueito espero, inda que injusto.

Aqui tambem conhece muitos destes,

Que entrar por esta porta procurauão,

Aquirindo vontades, de que possão

Tirar algum proueito por tal meyo:

Louuando, os que fizerão (por ventura)

Feitos vituperosos, & couardos:

Gabando sempre a nescios seus engenhos

Grosseiros, & o saber muy fraco, & rudo.

Outros vio com palauras mais fingidas,

Que verdadeiras; la nas altas nuues

Leuantar cousas baixas, pretendendo

De tal adulação viuo interesse.

Vio que outros encarecem cousas dignas

De grande reprensão, vio que as vontades

Inclinadas a mal outros aprouão,

Com nome de justiça, & sancto zello.

 

Em que é possível ouvir um eco do tipo de poesia moral escrita por Dante, num estilo direto e que consegue cortar liso, como nesse verso e 1/2 notável:  "pretendendo/De tal adulação viuo interesse" (pretendendo se traduz por fingindo). É preciso considerar também o bombástico, aquilo que os críticos encarquilhados chamavam colorido, ou pitoresco, não sendo exatamente nem uma coisa nem outra. Por exemplo, temos o trecho, no Canto VII, do ataque dos ventos míticos (Bóreas, Noto, Vulturno, etc.) à nau portuguesa, em que comparece insistente adjetivação dupla, no caso, bastante prática para criar a sensação de que não há espaço para se respirar, os ventos engrossam as nuvens, revolvem as ondas e acertam os mastros:

 

                Cobrese o ceo de grossas negras nuues,

                        Os ventos mais, & mais cada hora crecem,

                        Já se escurece o ceo, já com soberba

                        Inchadas grossas ondas se leuantão.

                        A não começa gemer, & em tal afronta

                        O apito soa, brada o mestre, acodem

                        Com presteza varões no mar expertos.

                        Poemse o fero Vulturno junto ao cabo,

                        Leuuanta lá no ceo furiosas ondas;

                        Austro bramando corre alli com furia,

                        Dando hum balanço á nao, que quasi a rende

                        Vem com grande furor Boreas riuoso,

                        Comete por dauante, o passo impide,

                        Encontra as grandes vellas, & por força,

                        Ao masto as pega, & a nao atras impuxa;

                        Rompese por mil partes o ceo, & arde

                        Em ligeiro, apressado e uiuo fogo.

                        Hum rogido espantoso vai correndo

                        Desde o Anthartico Pollo ao seu oposto.

                        Arremessaõse lanças pelos ares

                        De congelada pedra, em agoa enuolta,

                        Com espantoso impeto, & rasgadas

                        As densas negras nuues, rayos cospem.

                        De hum golpe as vellas vem todas abaixo;

                        Colhemnas com trabalho, & afronta immensa;

                        O forte marinheiro, ainda que ousado,

                        Do euidente perigo súa, & treme.

                                                                              Etc.

 

É claro que Corte Real desliza em alguns adjetivos, como no verso  "Em ligeiro, apressado, vivo fogo", em que os três praticamente se equivalem (com certeza apressado e ligeiro, e vivo no mesmo campo semântico); que ele repete outros muito próximos, como espantoso, que aparece no verso 18 e depois no 22 do nosso trecho; é claro que não é um poeta refinado.

Mas o que importaria, no caso, seria, por exemplo, a vivacidade com que compõe o quadro dos marinheiros que tentam evitar o desastre, nestes dois versos: "O apito soa, brada o mestre, acodem/ Com presteza varões no mar expertos", ou no modo como indica a ação dos ventos que não deixam espaço para o navio, atacando-o por todos os lados; por alguns usos muito eficazes de aliteração, como em  "Com espantoso impeto", que nos faz literalmente ouvir a pancada dos ventos.

Há também trechos interessantes do Cerco de Diu, ou do Juízo Final, outros poemas em que seu verso irregular alcança momentos antológicos. Essa é a palavra.< SPAN>

 
 
 
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1Daí aquela lei sociológica de Antonio Candido não está inteiramente correta: você pode ter um público, meios de publicação e circulação e praticamente não haver literatura. Basta que se impeça as pessoas, já sem muita vontade própria, de desenvolver uma opinião consistente, incitando o medo, o preconceito, o desejo de poder (leia-se, dinheiro e fama instantâneos), esvaziando completamente o sistema educacional de algum sentido, e você tem o caldo perfeito para gerar um bando de hiperconservas, interessados só nas coisas que sejam capazes de entender de imediato e sem esforço (e apenas as que vão dar um resultado visível em seus corpos ou conta bancária).

      O trabalho dos livros de história da literatura, ao menos até os dias de hoje, não é escolher criteriosamente, mas dispor aquilo que foi lido numa ordem cronológica de recepção. Dessa forma, é certo que vai haver uma boa quantidade de nomes para encher tais livros com gente escrevendo nos últimos trinta anos, mas eu não daria meu voto de confiança para esse tipo de recenseamento acéfalo.

 

2 "pensa parir uma enorme montanha/sai somente um ridículo rato".