Quero apenas



Além de mim, quero apenas 

essa tranquilidade de campos de flores

e este gesto impreciso

recompondo a infância.


Além de mim 

— e entre mim e meu deserto — 

quero apenas silêncio, 

cúmplice absoluto do meu verso,

tecendo a teia do vestígio

com cuidado de aranha.







Pedido



A Manuel Bandeira



Quando eu estiver mais triste 

mas triste de não ter jeito, 

quando atormentados morcegos 

— um no cérebro outro no peito — 

me apunhalarem de asas 

e me cobrirem de cinza, 

vem ensaiando de leve 

leve linguagem de flores. 

Traze-me a cor arroxeada 

daquela montanha — lembra? 

que cantaste num poema. 

Traze-me um pouco de mar 

ensaiando-se em acalanto 

na líquida ternura 

que tanto já me embalou.


Meu velho poeta canta 

um canto que me adormeça 

nem que seja de mentira.







Liberdade



A Carlos Scliar


Desligada 

O vento morde meus cabelos sem medo:

Tenho todas as idades.







Depois



A Carlos Drummond de Andrade



Depois da confidência 

me retirei da tarde. 

O céu ficou vazio


vazio


onde era voo de pássaros 

(os pássaros estavam quietos).

Uma febre roía meus ouvidos: 

voltei mais velha (exilada) 

com um toque de infância entre meus dedos, 

reserva de sal dentro dos olhos.







Proibido proibido



A Jack Dubbelt



Tempo 

horrível tempo 

em que um centauro esplêndido me passeia 

e acorda em mim azul azul 

como o espelho azul dói entre nuvens 

nuvens no azul de alguma tarde. 

Invento um rio que não para 

dentro do seu sangue 

e dentro dele estarei (nem que não queira). 

Isso destrói como uma garra 

que fecha e abre dentro da fechada carne 

mas que fazer senão estar acordada na desordem 

quando não se é mais que fera fera fera.


Centauro, há coisas que não se destroem. 

És uma destas.







Fogo



Dar-me toda este verão

urdideiros de rio, é ser 

serpente de prata. Verão, 

foi feita mais uma vítima


Sou um ser marcado, natureza. 

A tarde crava em meu magma 

o selo de sua secreta pata.







Ar



É da liberdade destes ventos 

que me faço.


Pássaro-meu corpo 

(máquina de viver), 

bebe o mel feroz do ar 

nunca o sossego.







Retrato



Mulher de mar,

uma bela fêmea

e um soldado

há uma semana atrás:

"este homem não me serve",

hoje o pensar lhe ser difícil

sempre não o ter

geminiano ser

sempre indeciso,

hoje quer, amanhã também,

depois de amanhã não quer mais,

harmonia que quer na corda bamba

equilibrando-se em não sei o quê

assim se move, trapezista,

geminiana alada, mas mulher de água

que nem

várzea alta, várzea baixa, várzea alagada.







Homem



sem métrica ou rima

um bicho sim é o homem

provido de asas







Aula



Reconhece-me pelos pés. 

Os pés sabem tudo, todos os caminhos 

— ou quase.


esta máquina (corpo) 

se oferece em nova geografia:

a cauda perdeu-se no mar.


Começa então pelos pés.







Umanduáre

[Do Tupi: lembrar]



Na boca o prazer. E a memória

do prazer dos sorvetes da infância 

em Fortaleza, na Casa Primavera. 


É então que o senhor da morte, 

vindo das mesmas raízes 

e do paraíso acenando, 

diz à senhora da vida 

que mesmo sendo seu dono 

a morte o tem, a morte o quer. 

E é dos alpendres do tudo 

para as sacadas do nada 

que — - cega de vida — estou pronta 

para essas tardes em ponto. 



Ycatu

[Do Tupi: água boa]



E assim vou

com a fremente mão do mar em minhas coxas.

Minha paixão? Uma armadilha de água,

rápida como peixes,

lenta como medusas,

muda como ostras.

 

 

 

 

 

 

[imagens ©viki kollerova]

 

 

 

 

Olga Savary nasceu em Belém/PA, em 21 de maio de 1933, sob o signo de Gêmeos, às 8 h, com ascendente em Gêmeos. No horóscopo chinês: Galo. Filha única de pai russo, Bruno Savary, com ascendência francesa, alemã e sueca e mãe brasileira, Célia Nobre de Almeida, paraense de Monte Alegre, de origem pernambucana, descendente de portugueses e com uma bisavó índia. Estudou em Belém, Fortaleza e Rio de Janeiro.


Começou a escrever aos 10 anos, em 1943, quando produziu um jornal artesanal, com poemas textos e desenhos. Publicou muitos de seus poemas em jornais e revistas do Rio, Pará e Minas Gerais, assinando alguns como Olenka. O primeiro livro, Espelho Provisório, foi publicado pela editora José Olympio, em 1970, recebendo, em 1971, o Prêmio Jabuti.


Compositores de música erudita de vanguarda (como Aylton Escobar, Guilherme Bauer, Ricardo Tacuchiam, Vânia Dantas Leite e Guerra Peixe) usaram poemas de seus livros Espelho Provisório, Sumidouro, Altaonda e de Magma, em mais de 40 concertos no Rio e também no exterior, a partir de 1972, sob o patrocínio do Departamento de Cultura do Rio de Janeiro.


Seus poemas também foram utilizados como material de palestras e cursos de Literatura (Gilberto Mendonça Teles, na PUC-RJ, Angélica Soares e Dalma Nascimento, na UFRJ, Lucila Nogueira, na UFPE, Marlene Paula Marcondes e Ferreira de Toledo, na USP), Psicanálise (Wilson de Lyra Chebabi) e Astrologia (Martha Pires Ferreira), entre outros.


Olga Savary dirigiu o setor de Literatura da Casa do Estudante do Brasil, no Rio, a convite do Embaixador Paschoal Carlos Magno. Colaborou em quase todos os jornais e revistas do Brasil e do exterior como poeta, ficcionista, crítica, jornalista e tradutora.


Em suas atividades jornalísticas, iniciou a coluna As Dicas (notícias culturais, comentários e sugestões) no jornal O Pasquim, onde se manteve de 1969 a 1982 como colaboradora, entrevistadora e tradutora. Exerceu jornalismo literário por mais de 40 anos, tendo recebido em 1987 o Prêmio Assis Chateaubriand da Academia Brasileira de Letras para a Coletânea de Artigos Literários publicados na Imprensa com o livro As Margens e o Centro.


Integra antologias de poesia brasileira contemporânea no Brasil e no exterior.


Em 1975 foi escolhida Mulher do Ano em Literatura pelo jornal O Globo.

Poemas seus foram publicados em Buenos Aires (Revista Crisis), em Lisboa (Revista Colóquio/Letras), em jornais e revistas de Londres, em Copenhague (Dinamarca), nos Estados Unidos (Poema Convidado da Universidade de Georgetown, e Universidade de Indiana, a partir de 1973), na Revista Via, em 1977, na revista II Cavalo de Troia (Milão, Itália, 1982), em Zerstreuung des Alphabets (Alemanha), Canadá e Japão.


Seu segundo livro, Sumidouro (Massao Ohno/João Farkas Editores, 1977), foi escolhido Melhor Livro do Ano pelo Jornal do Brasil (Rio) e ganhou o prêmio Poesia 1977 da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).


Tradutora de mais de 40 títulos dos principais escritores hispano-americanos, recebeu o Prêmio Odorico Mendes 1980 de Tradução, da Academia Brasileira de Letras, com Conversa na Catedral, romance de Mario Vargas Llosa.


Juntamente com Walter Clark, Muniz Sodré e Jose Wilker, fez parte do I Debate Cultural, organizado por Gustavo Barbosa e promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian/Soart e TV Educativa, no Rio, em 1981.


Participou do Projeto Escritor 1981, realizando dois depoimentos como escritora na Biblioteca de Santana e na Biblioteca de Pinheiros, promovidos pela Secretaria Municipal da Cultura de São Paulo, sob a gestão do poeta Mario Chamie.


Altaonda (Edições Macunaíma/Massao Ohno Editor, 1979), seu terceiro livro, recebeu o Prêmio Lupe Cotrim Garaude de Poesia (1981) da União Brasileira de Escritores de São Paulo.


Seus poemas foram apresentados no espetáculo "Fala Poesia", durante dois meses, no Teatro Brasileiro de Comédia, mais tarde, levados em cinco bibliotecas e no Teatro Ruth Escobar, sob o patrocínio da Secretaria da Cultura de São Paulo, musicados por Déa Bertran, interpretados pelas atrizes Isadora de Faria e Núbia de Oliveira.


Participou do I Festival da Mulher nas Artes, organizado por Ruth Escobar e pela Editora Abril em São Paulo, 1982, ano em que Natureza Viva: Uma Seleta dos Melhores Poemas foi publicado pelas Edições Pirata, no Recife. No mesmo ano, sai Magma (Massao Ohno/Roswitha Kempf Editores), saudado pela imprensa e pela crítica como o primeiro livro todo em temática erótica escrito por mulher, no Brasil, Prêmio Olavo Bilac 1983 da Academia Brasileira de Letras.


Em 1984, foi eleita Membro Titular do PEN Clube, associação de escritores ligada ao PEN Internacional/UNESCO.


No mesmo ano, lançou Carne Viva — I Antologia Brasileira de Poesia Erótica, sob sua organização, reunindo 77 dos melhores poetas de todo o Brasil, pela Editora Anima.


Representou o Brasil no Poetry International 1985 de Roterdã, Holanda, importante congresso europeu de poesia (convidada, junto com João Cabral de Melo Neto, Ferreira Gullar e Lêdo Ivo, em homenagem à poesia de língua portuguesa e na primeira vez em que o Brasil foi convidado), sendo a única mulher na delegação portuguesa e brasileira.


Em agosto de 1986, lançou Hai-Kais, 100 hai-kais pinçados de seus livros anteriores e parte inédita (Rowitha Kempf Editores), prefácio de Gerardo Mello Mourão e capa de Sun Chia Shin, no Espaço Cultural Pasárgada (Casa de Manuel Bandeira), no Recife. Em seguida, foi homenageada, como Poeta do Ano, com a Caminhada Poética: poetas e artistas dizendo seus poemas pelas ruas do centro da cidade do Recife, parando o trânsito durante duas horas, a convite da Fundarpe, Academia de Letras e Artes do Nordeste Brasileiro, União Brasileira de Escritores e Sindicato de Jornalistas.


Em 1987, sai Linha d'água (Massao Ohno / Editora Hipocampo, SP/RJ), prefácio de Felipe Fortuna e apresentação de Antonio Houaiss, com capa e ilustrações de Kazuo Wakabayashi.


Cria, com Virgínia Lombardi, o projeto "Ver Ouvindo" (gravações de livros em cassete para cegos, livros seus e de outros autores, lançando-os na Biblioteca de Jacarepaguá, com atrizes interpretando poemas: Maria Helena Dias, Martha Overback e Sonia Santos).


Em novembro, recebe em Salvador o Prêmio Nacional de Poesia Artur de Sales 1987 da Academia de Letras da Bahia, por unanimidade do júri, entre centenas de concorrentes de todo o Brasil, com o livro inédito Berço Esplêndido.


Recebeu o Prêmio Eugênia Sereno 1988, com livro de contos inéditos, pelo Instituto de Estudos Valeparaibanos, em Guaratinguetá, SP. No mesmo ano, esse livro foi premiado na Academia Brasileira de Letras.


Em maio de 1989, foi homenageada pela Secretaria de Estado da Cultura — Museu de Literatura Casa Mario de Andrade, por 15 dias, pelos serviços prestados à cultura do País, e 40 anos de ofício (com palestras, vídeos, depoimentos, recitais com o ator Felipe Martins e a atriz Isadora de Faria e duas exposições de desenhos sobre seu trabalho de Amélia Martins Rodrigues e Suely Regina Avelar). Convidada a dar entrevista a Jô Soares, no SBT.


Em 1989, foi publicado o livro Retratos.


Em 1991, foi homenageada pela Fundação Biblioteca Nacional, gestão de Affonso Romano de Sant'Anna, com dramatização de atores da TV Globo (Ary Coslov, Dedina Bernadelli e Mayara Magri) e música (flautista Helder Parente), no Teatro do Texto.


Em 1992, lançou a Antologia da Nova Poesia Brasileira, organização sua, considerada pela imprensa e crítica a maior antologia feita no Brasil, com 334 poetas de todo o país, edição da Fundação RioArte/Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura do Rio de Janeiro/Editora Hipocampo.


Em 1994, saem dois livros seus de poesia: Rudá e Éden-Hades.


Homenageada em 1995 com o título de Cidadã Benemérita do Estado do Rio de Janeiro, pelas mãos da escritora-deputada Heloneida Studart, na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, no Plenário do Palácio Tiradentes. Onze atores e atrizes interpretaram seus poemas ao final da cerimônia, entre os quais Alessandra Hatkopf, Denise e Cairo Trindade, Salgado Maranhão, Sandra Barsotti e Zezé Polessa.


Em 1996, sai Morte de Moema (edição de arte). Participa, a convite da Secretaria Municipal da Cultura de São Paulo, do Congresso Internacional de Literatura do Mercosul.


Mulher do Ano 1996 pela Secretaria Municipal de Cultura e Departamento de Bibliotecas Públicas de São Paulo, gestão de Rodolfo Konder/Cláudio Willer, na Biblioteca Mario de Andrade.


Em 1997, é editado seu primeiro livro de contos: O Olhar Dourado do Abismo.


Da década de 1980 até 1997, saem vários discos e CDs com poemas de Savary, musicados por Vânia Dantas Leite, Flávio Pantoja, César Guerra-Peixe, Madan, entre outros compositores de música erudita e MPB.


Faz parte do Instituto Brasileiro de Cultura Hispânica. É Membro Titular da Comissão da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da Associação Brasileira de Imprensa.


Eleita presidente do Sindicato de Escritores do Estado do Rio de Janeiro/ Casa de Cultura Lima Barreto/Teatro TESE, foi a primeira mulher na presidência, de 1997 a 2000. Todos esses títulos honoríficos, pois essas entidades culturais são de utilidade pública e não visam fins lucrativos.


Em 1998, com 15 livros publicados, possuía mais 15 no prelo e a sair (poesia, conto, novela, crítica, ensaio, jornalismo literário), somando, então, 23 prêmios nacionais de literatura.


Aníbal Machado, Carlos Drummond de Andrade, Marlos Nobre, Murilo Mendes, Sylvio Meira, Virgínio Santa Rosa, entre outros, são intelectuais dos quais se orgulha ser parente. E por casamento, fazendo parte da família de Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe, também ficou parente (e amiga) de Rachel de Queiroz, Pedro Nava e José de Alencar.


Casada por longos anos com a literatura, Repertório Selvagem — Obra Reunida (12 livros de poesia), editada em 1998 pela Biblioteca Nacional/Universidade de Mogi das Cruzes/MultiMais, comemora esse extenso caso de amor que de ambas as partes deu certo.


Faleceu em 15 de maio de 2020, em Teresópolis/RJ.