Vem morrer comigo.
Vem na asa da barata,
no bico do urubu,
no monturo com um dedinho podre de fora.
Vem feder comigo,
vem foder comigo,
vem ser fênix brotando do lixo.
Angústia azeda,
verme gordo,
natal de bicharada reluzente.
Vem perder teu corpo
de vez.
Vem me dar língua,
vem me dar tudo,
vem me dar.

Pistilo teso na manhã,
hibisco perfumado,
casulo pendurado.
Onde a cigarra apita
vem a borboleta,
vem a buceta,
vem a cara triste pingando lágrimas
brancas de prazer,
o dente macerando o lábio,
o sangue muito puro
lavando queixo abaixo
todo o cheiro do pecado.

Vem, perfume azul adocicado,
anis, ânus escancarado,
amargo aroma do mastigado,
do processado, do absorvido,
do renovado.

Vem morrer,
soprar teu último bafo,
teu último suspiro
pra dentro das minhas bochechas.
Sou de barro,
colado à tua espalda
e inanimado, ressecado,
desmentido, renegado.
Agarrado ao teu seio,
esperando alento enquanto
o leite vaza
e a vida escorre em estrondo de catarata
pra dentro do meu vazio.

Vem me invadir
pelos poros, pelas gretas,
por baixo, por cima, dos lados,
enquanto sou assim, orlando,
rolando pelas minhas beiras,
sumido em curvas, no lado escuro
das esquinas, nos vãos das escadas,
nos desvãos de mim.
Lança-me à tua margem,
deixa-me deitar nela.

Vem jogar luz
no preto trágico
e espesso
da menina baça
do meu olho
morto.
Espanta a mosca pousada
no líquido tenso,
e com a tua língua escava
o caminho do ar
pra dentro do meu peito.
Com a tua língua escava o teu refúgio,
o teu esquife na secura
da minha carne, no branco
fosco do meu osso,
no salão vazio entre as órbitas murchas
perdidas na tua pegada.
Faz de mim um homem de olhos pra dentro.

Faz de mim um homem,
morre,
vai, pólen no vento,
beijar flores, entupir narizes,
avermelhar olhos
e incomodar virgens
(sei lá por que pólen incomoda virgens).
Morre e vem perturbar.
Súcubo, medusa,
diabo macio que gosta de morder.
Morre e vem me morder.
Vem me atazanar, vem
me descarrilhar.
Vem.

 

 

Estou maduro e embolorado. Descido,
apeado de uma nuvem, trago o coração partido,
a perna quebrada, foi-se a corrente do relógio
n'alguma enxurrada,
fiquei de repente muito sóbrio.

Não é, no entanto, hora de velório.
Nem de riso. Expõe-se o sol, azulam-se calmas sob
ele as moscas do dia mau, é tudo tão normal
que me ofende antes de me dar o ar de que preciso.
Fiquei de repente muito lúcido.

O ar é fino, não me sustenta, não me segura.
Qualquer vento me derruba, como se eu fosse
uma criança morta. Sou feito de ossos só,
branco por fora, duro de doer em nós de dedos piedosos.
Fiquei de repente muito tranqüilo.

Uma vez caído, acomodo-me, deito-me de comprido.
Fiquei de repente muito morto,
de amante virei marido e de marido virei espanto,
e de tranco em tranco ao meu canto devolvido.
Fiquei de repente muito anjo.

Mas anjo mau, que dá língua e banana.

Conjuração
Amor a menos
Ó Inês de Castro: sai do sossego,
minha nêga, e vem vadiar.
Imagino tua carona vermelha
e saloia me dando tapas nas mãos
enquanto, falando do lobo e do carneiro,
vou levantando a tua saia.

Eu sou carneiro, Inês;
lá pro fundo da tua barriga eu me vou
com toda a minha descendência.
É a lua que faz isso contigo?

Aí, já sem fleuma nenhuma, despenteada
e com olhos deste tamanho — ai, Inês,
que agora sabes tantas coisas novas — e
com os peitos em terremoto,
lá estás: teus dias devastados,
telefonemas, filmes, a aurora de rosa vestida.

É, Inês, é assim mesmo. Vim te ensinar.
Desce daí, malvada, e vem vadiar.
Deixa eu colher o doce fruto dos teus anos.
É teu o nome que no peito escrito tenho,
por agora. Não chega? Vem, nêga,
vem que a tarde anda cheia de pêssegos no céu,
e que é hora da gente se manchar de sal.

Vem cá que está calor e esse monte de roupa
te faz suar. Na beira do Mondego este teu nêgo
te dirá mentiras boas e muito necessárias,
Inês; e tu também mentirás. E assim vai a coisa.

Anda, Inês, vem que somos gente,
que falta meia hora para a morte,
e que pro céu ou pro inferno
só se leva o que a gente pode lembrar.

Aliás, o céu agora está pertinho.
Vem aqui, Inês, pra eu te mostrar
.
Em vez de matar a Inês
Orlando Tosetto Júnior tem 36 anos de idade, é paulistano, palmeirense e pai da Clarice. Não tem formação, nem profissão; escreve por diletantismo, teimosia e desespero (depende do dia). Além daqui, pode ser encontrado no SpamZine, no Consumo Interno, ou em alguma sala das Letras na USP. Ele mata o tempo, enquanto o tempo não o mata.