RL – Tavinho Paes: "Totalmente Demais", "Linda Demais", "Radio Blá", "Sexy Yemanjah" foram alguns de seus grandes sucessos na música. Como letrista e poeta, você é uma das pessoas mais indicadas para falar sobre a questão Letra de Música X Poesia. Letra de Música é Poesia? Uma Letra de Música pode ser um poema?

TP - Abel Silva seria mais indicado para responder esta pergunta, pois vive batendo-se com ela em cenários universitários e mesas de debates, mas vou fazer o possível para entrar nesse xadrez jogando apenas com os cavalos...

Essa é uma questão que a Academia e suas áreas de interesse restritas colocou em cena por pura idiossincrasia; se perdoarmos a cretinice que nela sossobra. A Poesia parnasiana do início do século passado, que podemos considerar uma mais acadêmicas de que se tem conhecimento — embora inclua em suas análises teleológicas as palavras cultas e as rimas ditas ricas como índices de pureza formal — sempre teve por interface operacional uma métrica rígida e fonossilábica, que a ela concedia qualidades rítmicas indiscutíveis e elogiáveis. No caso da Poesia cantada em música, aquela mesma métrica é imposta pelas particularidades do metrônomo musical e afetada pelos apelos harmônicos das composições. Tentar tornar apócrifa, impura ou digna de restrições as poesias que chegam às mídias radiodifundidas embaladas por canções é um contrasenso pernicioso, que contraria a própria essência da Poesia, incluindo entre seus discutíveis e renováveis prolegômenos um preconceito tão nocivo quanto o racismo.

Pense bem...  Seria simpático dizer que as canções de Chico Buarque de Hollanda ou de Vinicius não são poemas cantados? Seria lógico afirmar que Cartola não é um poeta, mesmo percebendo que em "...as rosas não falam..." os versos poderiam ter sido escritos por Baudelaire? Seria justo interditar o título de poeta a compositores como Cazuza, Noel Rosa, Mário Lago ou Lamartine Babo, para citar apenas alguns poetas cantados? Eu, muito pessoalmente, acho que Braguinha, como poeta, poderia estar na Academia Brasileira de Letras sem favores ou demagogias.

Veja só: em 2003, num dos eventos que produzo [poemaShow], subiu ao palco Luana Carvalho, filha da sambista Beth Carvalho. Até então, na maioria das rodas e saraus da cidade só chegavam ao microfone aqueles que escreviam poemas. Muito jovem (17 anos), ela não escrevia Poesia, mas começou sua récita com um poema longo, muito bem estruturado e capaz de produzir um efeito desconcertante na audiência. Seguiram-se a ele outros dois poemas de alto impacto. No terceiro, desconfiou-se que ela estava recitando letras de sambas, pois os versos de Nelson Cavaquinho repercutiram no repertório mnemônico da platéia, arrepiando pelinhos do braço de muita gente. Os anteriores tinham sido pérolas desconhecidas, colhidas na discoteca da mãe, assinados por Luís Carlos da Vila e Candeia. Naquele momento, sem pretensão alguma, ela inaugurou no meio dos amantes da Poesia carioca dois fatos novos que passaram a ser cada vez mais notados nos saraus: primeiro, estabeleceu a presença do intérprete de Poesia, fato comum nos meios musicais, mas defenestrado nos círculos poéticos; segundo, deu à chamada "Letra de Música", qualidades típicas de nobres poemas, recitando os versos daqueles sambas com outra respiração, outro ritmo e outra harmonia. Foi um chuá!!! Desde então, quando me perguntam se meus sucessos são Poesias ou letras de música, mudo o foco da questão e respondo ao impasse com outra pergunta: Sheakspeare foi ou não poeta, quando escreveu suas peças teatrais?

 

RL - Mesmo com estes argumentos, você acha que Letra de Música é ou não é Poesia?

TP - O Direito Autoral edita músicas como obras lítero-musicais, mas os poemas associados, com simples exclusão ou inclusão de versos e palavras, passa a não ser mais sequer um derivativo da música. No meu caso, por exemplo, todas as canções de sucesso que você citou foram extraídos de poemas publicados em livretos marginais. Comigo, raramente aconteceu o contrário. As letras foram decalcadas de poemas anteriores. Se vieram a se tornar outra coisa depois que perderam a virgindade da pura Poesia, no máximo acontece o que sucede a alguém que muda o nome de solteiro quando casa: continua sendo a mesma pessoa, mas, diante do Direito Cível, assume um papel novo que nem um divórcio em foro legal faz retornar à condição anterior. Se um poema pode ser musicado, como no caso de Fagner com Cecília Meireles, por exemplo, porque uma Letra de Música não pode vir a se tornar um poema?

Não será porque a oralidade do poema recitado não fica sujeita à expressividade do poema cantado, que se submete a uma melodia?

Na Lógica do Sentido, utilizando o modelo matemático de Lewis Caroll em Alice no país das Maravilhas, Deleuze discute profundamente as relações da linguagem, enquanto oral e escrita. O que é manifesto oralmente e o que é entendido quando lido produz diferenças na ordenação dos sentidos; mas, no caso da Poesia, a liberdade dos sentidos é tamanha que estas diferenças se multiplicam a ponto de você não poder determinar com precisão onde as diferenças começam e onde podem vir a convergir. As melopéias poundianas, entre outros conceitos fundamentais discutidos por ele em seus inúmeros ensaios sobre a arte da Poesia, funcionam como bons argumentos de reforço, para eliminar as barreiras que tentam isolar a Poesia da Letra de Música.

Numa recente entrevista, Ferreira Gullar, diante da novidade dos inúmeros saraus cariocas, ventilou a idéia de que a atual Poesia falada (ninguém mais diz declamada: ou é falada ou dita) esteja se tornando um novo tipo de Poesia com regras e métodos próprios; ou seja, uma nova categoria está sendo criada para dar conta dos comprometimentos e problemas estéticos do novo modelo. É fato que alguns dos melhores artistas deste filão, como Patrícia Carvalho-Oliveira, o artista Arthur Omar ou Fausto Fawcett, produzem maior impacto oralizando seus versos, nem sempre cadenciados ou brancos, muitas vezes coniventes com efeitos sonoros musicais, jogos de iluminação ou movimentação corporal. E, com certeza, estes poemas falados são poemas e suas apresentações ao público manipulam positivamente a idéia da Poesia. A mesmíssima coisa acontece com a Letra de Música. A Letra de Música, no meu modesto entender, é um tipo manifesto de Poesia, como acontece com a Poesia concreta, o processo e outras manifestações, onde há o suspiro da Poesia respirando no conteúdo por trás da forma.

 

RL - Você é um artista multimídia. Em qual das plataformas artísticas você se sente mais à vontade? Tudo faz parte de um mesmo projeto? Ou são projetos separados os de roteirista, poeta, músico, artista plástico e performer?

TP - Misturo tudo. Poesia para mim é um conceito amplo e não se limita à arquitetura de palavras, conceituação plana ou formatos determinados. Tanto que, tenho um roteiro cinematográfico em que uma história é contada por intermédio de músicas e poemas recitados sobre bases musicais. Fiz uma exposição em que os quadros eram poemas trabalhados em Photoshop. Nas performances que realizei, a Poesia sempre conviveu com audiovisual. Acabei de fazer um CD com poemas trabalhados com sons incidentais. Preparo um terceiro disco de marchinhas carnavalescas. Acabei de escrever meu terceiro romance e estou trabalhando há 3 anos numa proto-biografia sobre minha experiência de camelô de cordel urbano, que estou chamando de Au Trottoir: On The Road by the brazillian way. Tudo em inglês e francês para incomodar os puristas com temperos globalizados... 

Acho que isso tudo que venho misturando acontece porque venho de uma geração em que o cara que acabava de sair do cineclube, após ter visto um filme proibido do Glauber, acompanhava-se de uma moça que dançava com a Gabriela Figueroa e estava indo ver Mautner e Macalé na sessão de meia-noite do Opinião, onde haviam marcado um encontro com um ator do grupo do Zé Celso Martinez e uma artista plástica que faria sua vernissage no MAM, no dia seguinte, que estavam vindo de um show de rock da Bolha. Sabe como é: no famoso Fa-tal, show da Gal na Sucata, Hélio Oiticica havia montado um penetrável no corredor de entrada...

Venho de um tempo em que a segmentação neo-liberal ainda não havia fragmentado as tribos em recipientes antagônicos, nem estimulado a competição individualista, egóica e particular entre as pessoas. Tempo em que a caretice era punida com o desprezo e celebridade não tinha a vida devassada por fofocas. A TV Globo daquele tempo ainda não era digital e trabalhar lá não era nenhum mérito digno de atenção. Na guerrilha desarmada onde me criei, todas as artes estavam misturadas; tudo acontecia ao mesmo tempo e todo mundo estava ligado no que cada um estava fazendo. Por causa da Censura da ditadura o boca-a-boca era o nosso blog vivo. De certa forma, éramos obrigados a ser muito mais criativos do que somos hoje, com toda a democracia instalada e toda essa tecnologia ao alcance de todos!

Tenho que admitir que quando começei a fabricar meus livrinhos de Poesia nos anos 70, meu foco estava centrado nas discussões conceituais pertinentes ao território das artes plásticas, freqüentando e assimilando questões nas exposições de Letícia Parente, Anna Bela Geiger, Antônio Manoel, Ivens Machado e muitos outros. Não me preocupava muito com a qualidade do texto impresso nem com sua formalidade literária expressa. Fazer aqueles panfletos era a "Poesia" que eu praticava como protocolo de uma religião politeísta na qual o pecado era quase um milagre. O objeto/livro em si era toda a "Poesia" que me excitava, alimentando-me o espírito e dando tapa na cara da paranóia que grassava entre os engajados na luta armada ou nos partidos de esquerda. O socialismo que me atingia também era feito de suor e sangue, só que estes corriam e escorriam da mesma veia, do mesmo poro.

É claro que o conteúdo poético que estava impresso no mal-ajambrado objeto/livro ganhava qualidades exógenas ao seu estatuto matricial, quando acontecia o ato público da venda mano-a-mano; cara-a-cara com o público. O confronto era um teatro de operações, onde a Poesia virava pedra na funda de David. Digamos que a "Poesia" que me animava nesta época de vendavais secretos era como o "Grande Vidro", de Marcel Duchamp: nunca se deixou revelar e só realizava seus "versos" no contato direto com o outro, que com seu olhar diferenciado, interagia comigo e meu bibelô pseudo-literário, multiplicando suas dúvidas e possibilidades. Minhas primeiras "Poesias" eram como as mantas de Josef Beuys: estavam embrulhando conteúdos impalpáveis; esfinges extraordinárias. Chamava aqueles livretos marginais de passaportes do país das liberdades ininterditáveis, uma vez que, com eles nas mãos, em plena ditadura, pouco me lixando para a censura, interpelava quem quer que estivesse sentado nas mesas dos bares da madrugada pelas ruas das muitas cidades deste país em que pisei seguro e dono do meu nariz.

Com essa dimensão estética, alimentava-me (no sentido antropofágico oswaldiano) de informações lidas em revistas de artes plásticas americanas e inglesas colecionadas por Paulo Herkenhoff e Fernando Cochiaralle. Assim sendo, o próprio ato de vender aquelas brochuras pelas ruas já era uma performance poética; uma vez que, submetido às condições geopolíticas da época e mantidas as diferenças essenciais, corria riscos tão perigosos quanto os de Vito Aconcci ou Chris Burden.

Fora isso, havia o "poema-terror"; as intervenções em circuitos determinados, como palestras, saraus e eventos de grande porte, como o do Festival de Poesia & Arte de São Paulo, no Teatro Municipal (Peru de fora dá palpite), que me rendeu uma notoriedade anônima com fotos publicadas em grandes revistas e jornais; além de uma traumatizante perseguição pela polícia política. Eu não era um poeta que fazia poemas com Poesia: a Poesia é que me fazia poeta, enquanto eu tentava ser o próprio poema.

 

 

RL - E a Poesia e a Música? Apareceram quando e como na sua vida?

TP - Só em 1979, depois de ler Ezra Pound e passar a me interessar pela leitura de livros de Poesia é que começei a pensar na escrituração de poemas e a mexer nas palavras como quem monta quebra-cabeças.  Como Kandinskys pintados de ambos os lados, passei a compreender que, ali, onde se insere a letra à tinta, ela, a Poesia, era feita do outro lado, no anverso do verso do poema rabiscado. A Poesia, tal qual estamos acostumados a compreender, para mim apareceu depois de muitas experimentações e associou-se à minha memória como um carimbo no selo colado no envelope de uma carta.  

Em 1982, já íntimo das secretas adinhações dos versos, entrei para a música a convite de Léo Jaime, numa parceria que envolveu ainda a criativa cantora e compositora Marina Lima. Mesmo tendo seis das minhas primeiras dez canções gravadas censuradas e interditadas para radiodifusão e execução pública, foi com o metrônomo e a insistência de rimas homofônicas, que aperfeiçoei minha escrituração de poemas.

Ao longo de vários anos, fiz sucessos contraditórios em muitos estilos da rica música brasileira. Em muitos casos, sem nenhuma culpa ou arrependimento, utilizando apenas técnicas simples, fiz a chamada MPGD (Música Para Ganhar Dinheiro), com versos melosos e "eu te amos" tão falsos e precipitados quanto "eu te odeio". Mas também caprichei em algumas breguices excepcionais, pondo palavras e declarações de amor na boca de pessoas que jamais entenderão o que estavam realmente dizendo, agindo como fonoaudiólogo e treinador de papagaios extremamente vaidosos. Outrossim, também alegro-me de ter tido o prazer de inscrever palavras em melodias criadas por verdadeiros gênios. Aceite: nesse baile, dancei conforme a música e me diverti muito...

Hoje, prefiro denominar-me simplesmente poeta e tudo que faço tem a ver com Poesia, mesmo que seja trocar o pneu de um carro ou rezar a missa ao contrário.

  

RL - Tavinho Paes: por que é que você escreve?

TP - Além do fato de ter uma caligrafia excelente e multiforme  (às vezes, acho que psicografo, tal é a variedade das letras que desenho em meus alfarrábios e cadernos de notas), escrevo essencialmente por conta de três teoremas endógenos à minha quixotesca personalidade: psicose, prazer e paixão.

Às vezes, escrevo por impulso; outras vezes, por estar estupefato com certos fatos. Quando escrevo política, enxovalho canalhas; quando escrevo romantismos, abestalho-me apaixonado. Já escrevi puto da vida: arranjei encrencas que até hoje me cobram dízimos impagáveis. Escrevi prefácios e orelhas para livros de amigos e, neste particular, orgulho-me da minha expansiva generosidade. Cartas de Amor? Só para as Dulcinéias que me alucinaram com seus moinhos de ventos, nos quais entrevi dragões. Notícias? Já escrevi muitas, afinal editei O Pasquim (1985/1986) e RioCapital (1993); mas atualmente só noticio fatos que ainda vão acontecer. O fato é que se escrevi maravilhas, garanto que fui melhor quando rascunhei bobagens. Escrevo sempre como poeta; ou seja. Por uma necessidade agônica de quem espera milagres de deuses que lêem em braile. Acredito tanto na força da Poesia, que aconselho cegos a freqüentarem cinemas...

Na verdade, tenho necessidade vital de expressar minhas agonias e dar forma aos meus desesperos, especialmente quando estou em pânico comigo mesmo, de saco cheio com a burrice e a mediocridade reinante e disposto a suicidar-me por razões espirituais contingentes. Todavia, também acho que escrever tenha sido a mania que me lapidou um humor autofágico, capaz de me fazer esbanjar esperança e alegria a ponto de, em ocasiões de delirante embriaguez, sentir-me profeta e prever coisas que Nostradamus esqueceu de publicar. As palavras que me habitam são minhas fadas: eu apenas manuseio na escrita suas varinhas de condão...

Entretanto, como ignorantes e imbecis são fartos e predominantes nas searas contemporâneas, muitos acham que "escrever" pode ser associado às práticas sexuais heréticas como a masturbação. Eu, que sempre escrevo à mão antes de teclar nos computadores o resultado destas possíveis punhetas, não chego a discordar destas espirituosas antas, posto que o prazer que recolho em meus pusilânimes orgasmos solitários são vertiginosos, relaxantes e, muitas vezes, me satisfazem desejos perversos, incestuosos e de uma sexualidade profundamente desequilibrada. Minha libido relaciona-se com minha escritura sem intermediários: apossa-se dos meus desejos e dá-lhes palavras para suas satisfações mais ordinárias. Não faço amor com a sexualidade lírica de meus poemas; mas abuso de suas infatilidades maravilhosas, com uma pedofilia que recomendo aos tristes e mal-amados. No fundo, eu não escrevo nada: sou escrito por uma possessão desvairada!

 

RL - Como pode avaliar a Poesia da sua geração?

TP - Minha geração produziu muita Poesia sob pressão. Existem nomes e trabalhos que estão prestes a ser resgatados e muitos que já estão sendo republicados, repaginados e tratados com deferências elogiosas. Tenho conhecimento de teses de mestrado envolvendo a produção de meus pares em algumas universidades importantes; pois os poucos trabalhos disponíveis, críticos e/ou analíticos — apesar dos esforços louváveis de seus autores — são inconsistentes, fisiológicos e mal-abastecidos de informações sobre os fatos que circundavam aquelas cirandas sepultadas no tempo e no espaço.


É certo que, depois da glasnost e da perestroika, com as utopias e a dialética amaldiçoadas pelo positivismo republicano que ainda domina o planeta e a éstética da arte lançada no limbo das conjecturas, exumar certos cadáveres pode parecer oportunismo; mas, como hoje em dia tem marketing para tudo e mortos não reclamam de nada, não existem impedimentos para que isto seja imediatamente realizado!

Minha geração não teve escolha: tinha que ser underground; entretanto, alguns de nós fomos beyond the surface, se é que você me entende! Lutamos no front da retaguarda, tentando superar as vanguardas. Com a democracia advinda de um longo e tortuoso processo de anistia, assistimos de dentro das trincheiras a terra sepultar nossos esforços realizados. Passamos anos colocando medalhas nos resistentes asilados; mas, desde que a história de Gabeira, um autêntico filme B para TV foi parar no Oscar, acho que se abriu um viés para anunciarmos que nem todo mundo que merece consideração e respeito histórico esteve no Araguaia: muita gente boa, mesmo sem ser tropicalista, estava vendo pôr-de-sol no rio dourado de Arembepe. Nem todo mundo que resistia aos desmandos da ditadura pegou em armas; e nem por isso é menos capaz ou digno do que um José Dirceu ou um Genoíno.

 

RL - Você é da geração mimeógrafo e tem 99 booklets e panfletos, realizados desde 1973, sempre em produção e distribuição independente. Apesar disso, você é muito pouco conhecido e, praticamente, nunca foi estudado. Você se sente um poeta maldito?

TP - Não sou nem nunca me senti "maldito"; embora, como muitos dos meus camaradas, sinta-me um desterritorializado. Aliás, no meu caso, sou até famoso demais. O problema é que a fama que eu tenho não cabe nos maneirismos da hipocrisia que tomou conta da sociedade, nem serve de lastro para negociações financeiras com os gestores instalados tanto nas altarquias públicas, quanto no setor privado. Não tenho fama de bem-sucedido, logo posso ser chamado de maldito, irresponsável, desequilibrado... Quem sabe isso um dia acaba num velório espetacular?

Na verdade e sem modéstia: morto eu devo valer uma nota, nem que seja apenas nota no obituário. Tenho um passado que não pára de acumular histórias e documentos fantásticos. Comigo não dá para fazer um longa: tem que ser um seriado como Alexandreplatz. Embora eu ainda acredite que terei melhor sorte do que Franz Biperkof, sei que o fascismo está sendo remixado como djs remixam músicas do passado em suas maquininhas eletronicamente corretas e que o futuro de curto prazo de que ainda disponho não me é lá muito favorável. Só continuo a cultivar passados como poeta, porque acredito que se houver alguma esperança no futuro, vai ser com a poesia, que ela aparecerá e, mesmo que eu não esteja por aqui para anunciá-la, vou poder influenciar, para que a história não se repita como farsa.

Pensando nos meus arquivos X, onde uma vida praticamente extra-terrestre está esperando para ser passada a limpo, para poder desfrutar de algumas vantagens deste tesouro imaginário, tenho procurado tornar-me um commoditie vivo, tentando colher migalhas dos lucros da safra que será colhida com as velas do meu velório e as flores murchando no meu campanário. Tenho um mundo de informações guardadas em HDs e caixas de sapato. Verdadeiras relíquias de uma guerra fria e suja, que herdamos por tabela depois que os exércitos de Stalin chegaram primeiro aos portões de Brandenburgo. No momento, não dá para parar e organizar os ossos destes papéis amarelados, posto que atividades ininterruptas e projetos imediatos, submissos aos padrões de estresse recomendáveis pela contemporaneidade, não têm tempo para facilidades. Além disso, rearrumar gavetas e armários de mortos é tarefa bem mais fácil. Este legado ainda vai render uns trocados. Se eu tiver sorte, ainda verei exemplares raros de panfletos como Netuno Afogado, O Onanista Maneta, Mãezinha de Luxo, A Cinderela Descalça ou Quando as Limousines viram Abobrinhas, Kalmaminina80, O Travesti Bossal e muitos outros livretos vendidos à êsmo por aí, serem disputados a tapa em leilões. Mas só se eu tiver muita sorte mesmo!

 

 

RL - Depois de morto todo mundo é ótimo, mas eu queria mesmo é saber se ficar tanto tempo fora do mercado te incomoda. O que você acha que vai ficar de sua produção no futuro? 

TP - Digamos que uma espécie de ostracismo light já me fez companhia em muitas ocasiões durante a década final do século passado. Sobre isto, garanto que esta indiferença coletiva não me maltratou nem me deprimiu; muito pelo contrário: possibilitou-me um olhar diferenciado sobre como mitos são inventados e cultuados pela mídia. Percebi, por exemplo, que por trás de toda celebridade instantânea, um poder econômico sustenta e manipula aquela imagem, pura forma sem conteúdo, a seu favor. Assim sendo, não chega a ser incômodo passar por "maldito", já que, num futuro bem próximo, ser chamado de "maligno" criará outro tipo de excluído com muito menos chances de ressurreição.

O fato é que com o baixo nível cultural da massa ignara dando subsídios para que os publicitários vendam seu produtos (incluindo-se políticos e imagens do Estado), a imposição de tragédias culturais bancadas e assistidas pelo capital vai criar uma maldição sem precedentes na história do Brasil. Em nome da democracia, muita baixaria ainda está para ser implementada. Por isso, não tenho nenhuma mágoa pelo fato de ainda não ter um livro editado, nem ser mais conhecido pela opinião pública.

Aliás, boa parte do que escrevi, conforme já dei uma pista no início desta entrevista, era, como chamou o Affonso Romano de Sant'Anna, lixeratura barata. Conforme o andar da carruagem está sinalizando, com Presidente da República e Presidente do Congresso maltratando o idioma em discursos e entrevistas, danças da garrafa e sertanejos apaixonados virando artigo de primeira necessidade da classe média e outras coisinhas mais, mais dia menos dia e todo aquele lixo literário pode virar coqueluche entre as bestas quadradas que, deslumbradas, circulam nos salões de nossas elites roceiras, talvez as mais imbecilizadas do planeta. Associe-se a isto o fato de que tudo está sendo nivelado por baixo e o nível não pára de cair; logo ter minha imundície lançada com êxito no mercado é questão de paciência. Sem ironia alguma: acredito piamente que ser imbecil e idiota vai virar padrão de elegância social dentro de muito pouco tempo.

 

RL - Mudando de foco: quem foram os artistas que mais influenciaram sua produção artística?

TP - Tirando os artistas plásticos, cujas influências atingiram meu parassimpático e deram estoques sobressalentes de sangue para que eu agüentasse a vampiragem, no plano da Poesia em si, as primeiras e definitivas influências foram Carlos Drummond de Andrade (esse gigante) e Manuel Bandeira. Vieram na cola: Murilo Mendes, Raul Bopp e Oswald de Andrade. Depois, interessei-me pelos estrangeiros e Baudelaire pegou na veia: depois dele, tudo que chamam de moderno é uma maluquice. Aí, aprendi inglês fluente e viajei pelo Burroughs, a Sylvia Plath, Kerouac...

Quando veio a música, achei o Bob Dylan, Jim Morrisson, a Patty Smith e os Stones. No nosso quintal, percebi a Poesia do Alceu Valença, do Chico, do Vinicius, do Caetano e do Arrigo Barnabé. Só depois conheci melhor o Tom Zé, o Serge Gainsbourg, o Leonard Cohen e o Tom Waits. A lista é grande demais. Vai parecer necrológico.

 

RL - E hoje? Alguém ainda te influencia?

TP - Hoje o que leio na internet não tem mais limite. No meu site www.poemashow.com.br tenho até um e.Zine só com material coletado em diversas línguas e tenho conhecido muita coisa importante na área latino-americana. Por conta da idéia de fazer um festival internacional de Poesia no Rio de Janeiro — o poem@RIO — tenho me relacionado diretamente com revistas literárias e poetas do mundo inteiro. Tudo contemporâneo e com a língua afiada. Aliás, acabo de ser publicado pelo prestigiado eZine www.undergroundwindow.com, com poemas escritos em inglês.

No dia-a-dia, meus influenciadores são meus caros amigos. Aprendi muito lendo e escutando Mano Melo, Patrícia Carvalho-Oliveira, Marianna Cersósimo, Luis Felipe Leprevost, Chacal, Guilherme Zarvos, Fausto Fawcett, Ricardo Ruiz. Aos 50 anos, todos que freqüentam os quase 30 projetos em atividade no Rio são minha fonte da juventude.

 

RL - Você é co-fundador do Cep 20.000, com Chacal, Carlos Emílio Lima e Guilherme Zarvos. O que mudou no Cep 20.000 nestes quase quinze anos? Qual a importância do Cep para a Poesia carioca hoje?

TP - No CEP 20.000 eu vi que a Poesia tinha que mudar seu jeito de acontecer, para chegar mais perto das pessoas e acompanhar o mundo em mutação à sua volta. Foi ali que começei a perceber que eventos de Poesia, apesar do sucesso da Elisa Lucinda e do Michel Melamed, devem ser recheados de atrações múltiplas, com portas abertas para todos os estilos. Um evento de Poesia que se preze tem que abrir a roda.

Quando começamos, a primeira coisa diferente e discutível que inserimos no contexto, foi a criação de bases sonoras e fundos musicais, para fortalecer os recitais, ampliar seu impacto na platéia, estendendo os limites da expressão a todas as experimentações que poderiam e deveriam acontecer nestes eventos. Assim sendo, nos primeiros passos do CEP, tivemos experimentos dos mais variados no palco, envolvendo dança, audiovisual e outras coisas inesquecíveis.

Quinze anos depois, podemos dizer que os principais poetas da atual efervescente cena carioca, passaram ou se criaram naquela arena mutante. Ali o circo voou muito além do permitido. Escrevi um texto especial sobre isso, para o livro que Guilherme Zarvos está lançando em novembro sobre os 15 anos do evento.

Contudo, como quase tudo, apesar da vibração não ter mudado muito, o entorpecimento do raciocínio analítico e a esterilização ética do juízo crítico (a dialética é uma prática simplesmente impossível na atual platéia) é notável e alastra-se como uma epidemia. A informação hiper-massiva, desordenada e atrelada aos vírus da multimídia (orkuts e outras comunicações mecânicas one-by-one) tornaram o evento descompensado em si-mesmo, embora novos talentos, vindos de todos os pontos do país, ainda sustentem a febre que ali ocorre. Com a tecnologia girando a roleta como um parafuso num garrote medieval, o novo ponto de mutação passou a afetar a criatividade e a criação em si. Isso para não falarmos do posicionamento daqueles que realizam experimentos focados na opinião que alguns façam dele e os que esperam, com suas singularidades forçadas, encontrar pares numa platéia mais interessada nas bebidas do parque de alimentação ao largo e nos possíveis amores que lhes amputem a solidão e evitem a tentação de um suicídio. No mundo atual, as crianças não brincam mais com os brinquedos, os brinquedos é que brincam com elas.

Fora isso, a segmentação criou uma verdadeira erosão naquele campo de futebol em que jogávamos nossas peladas. Valas profundas separam os barulhentos shows de novos roqueiros dos sussurros dos poetas falantes. O público emburreceu terrivelmente e mesmo os mais ligados parecem vesgos, tirando fotos com maquininhas automáticas. Até os que usam drogas se tornaram caretérrimos, cheios de preconceitos, metidos em grupinhos incompossíveis, levando papo de mula-sem-cabeça, girando que nem pião num carrossel, onde os cavalinhos foram arrancados e substituidos por peças de empalamento suave. O que se chama de "moderninhos", quando não são visualmente esnobes cafonas, agem com as atitudes mais retrôs deste planeta, dignos do neofascimo que está sendo recomposto. O vazio está cheio e neste cano entupido, o humor varia a cada minuto. A solidão, esta sim, é senhora do ambiente. Em cada um, ela manifesta sua desgraçada graça. O desespero tende a suceder aos orgasmos. O amor descamba para o óbvio ululante. Criar algo novo é como matar pela primeira vez um semelhante. A guerra pela paz será sangrenta.

O CEP, meu caro, só não morreu nem morrerá, enquanto tiver dois poetas (Chacal e Guilherme Zarvos) no comando da nave e esta nave, ainda que não vá a lugar nenhum, tem na sua tripulação o espírito de um Raul Seixas cantando plunckt-plact-zumm...

 

RL - O que foi o Poema-Terror?

TP - ...é melhor não falarmos disso agora!!! (risos) Mas, só para dar uma palhinha: é uma Poesia adequada às irresponsabilidades mais absolutas. Não é um poema exatamente escrito; não tem versinhos rimados, nem é declamado em anfiteatros. Passa longe do papel e da pena. É um retro-poema, não um vírus inoculado.

Atua diretamente na realidade como um ato terrorista, cuja rebeldia crua e intimista é capaz de mal-entendidos variados. Cria muita discussão e, no fim das contas, é o poeta que explode com ele na mão. Tem uma estética imoral sustentando suas cretinices. É de uma gratuidade insuportável, e tem um estigma pavoroso corrompendo a inocência da Poesia. Opera na zona do impossível de forma suicida. Avança sobre a ética e a moral. Pode ferir pessoas, invocar a ira dos mortos, provocar violência e pânico... é como uma serpente pondo seus ovos num ninho de cegonhas!

 

RL - Como foi organizar o evento Dia Mundial da Poesia?

TP - Há dois anos, o dia 14 de março, que passou a ser também Dia do Vendedor de Livros e Dia dos Animais, tem sido um sucesso. Sávio Neves e o pessoal do Trem do Corcovado entra com o lanche e as passagens do trenzinho que leva os poetas ao topo da montanha. Recitamos no estacionamento que tem lá no alto, de frente para as torres de televisão e para o belíssimo cenário da Lagoa e dos bairros do Leblon e de Ipanema, com o Cristo Redentor segurando a barra, de costas, monitorando a paisagem da Baía de Guanabara.

Fazemos um evento aos pés do monumento mais fotografado e visitado do mundo, recitando initerruptamente poemas até o pôr-do-sol, por trás da Pedra da Gávea. É pura magia e beleza. Nunca choveu. Na festa de 2005, foram mais de 100 poetas, de todas as tribos, idades e tendências. Estivemos em contato com um evento co-irmão, que o poeta Luís Turiba e seu pessoal realiza em Brasília via telefonemas.

Queremos voltar a ter o dia incluso com destaque nos calendários oficiais das cidades e do país, afinal é data de nascimento de Castro Alves e Glauber Rocha, se não levarmos em conta que Einstein também freqüenta este grupo e Karl Marx faleceu neste dia. O curioso é que, no Japão, é Dia dos Namorados!

 

RL - Quais os eventos que você está organizando agora?

TP - Tirando a atividade mensal do poemaShow e de outros eventos paralelos, meu tempo e meu raciocínio está integralmente tomado pelo POESIA VOA (Festival de Poesia do Circo Voador), a ser instalado na Lapa entre os dias 23 e 27 de novembro. É um conjunto de desafios sendo posto à prova e uma tarefa que, pessoalmente, tenho que dividir com os participantes, afinal, são eles os conteúdos ativos da festa.

Todos os principais grupos da cidade, muitos com mais de 3 anos de exercício constante, foram convocados. Nosso principal objetivo é fortalecer nossa presença na área cultural e promover uma grande inclusão social, com participações populares, workshops, amostras e intercâmbio.

Um dos principais desafios é que a poesia, ao contrário dos grandes espetáculos, exige proximidade entre o público e a platéia, para que os poetas possam interagir, permitindo que uma insubstituível cumplicidade tome conta da festa. No circo o espaço físico é enorme. Outro desafio é fazer com que a sucessão de grupos seja organicamente adequada, para que o evento como um todo flua, misturando tendências e formatos diferentes. É preciso preservar as diferenças e, simultaneamente, manter a unidade.

Outra coisa preocupante é que a captação dos recursos necessários para pôr o trem nos trilhos, apesar de amparada por Leis de Incentivo Fiscal, não encontra eco nas empresas. Olha que temos tributos e números musicais com artistas de nome e prestígio, mas, os patrocinadores sentem falta dos nomes globais; os intérpretes... Mesmo assim, ninguém esmoreceu e vamos realizar a festa no peito e na raça, se assim for necessário.

Para mais detalhes, é conveniente visitar www.circovoador.com.br.

 

RL - E o Festival Internacional de que você falou?

TP - O poem@RIO é um outro modelo, com outra manobra logística orientando seus argumentos. Foi imaginado como um evento bienal, atraindo poetas de todas as latitudes do planeta ao Rio de Janeiro. Muito mais accessíveis e baratos do que grandes astros do show-business, os participantes deverão ser transladados à cidade pelos seus Consulados, órgãos culturais nacionais e outras organizações de apoio à cultura existentes em seus países de origem. Ao invés de hospedados em hotéis, boa parte deles seria alocada em residências de famílias, que se dispusessem a acolhê-los, o que demanda uma comunicação social de grande escala e custos de manutenção pelas estadias repassados a estas famílias. Hospedar um angolano ou um miamarense numa favela não é nada impossível. A idéia é infiltrar os poetas na sociedade e deixá-los conhecê-la por dentro. As questões envolvendo segurança são preocupantes, mas poetas exigem menos do que a maioria dos astros pops que nos freqüentam.

Muitos teriam como palco os pátios das escolas da rede pública e privada e falariam em suas línguas natais, com tradução eletrônica (outra demanda de material específico). A idéia é ouvir essas línguas alienígenas e pressentir o que a Poesia delas exige. Imagine um russo falando num dialeto cossaco numa escola pública em Bangu...

Para que alguns patrocinadores se sintam felizes em gastar o dinheiro que o governo abrir mão pelas Leis de Incentivo, poderíamos ter atrações especiais de luxo. Tom Waits, pelos USA; Leonard Cohen, pelo Canadá; Mick Jagger, pela Inglaterra. Mas isso seria só o marshmelow, o confeito. O sorvete mesmo estaria nos dispostos a viver uma temporada de turismo cultural cheia de aventuras, longe dos benefícios cintilantes das estrelas, vivendo uma vida carioca, sem lenço ou documento. No final, estes corajosos e diferenciados turistas teriam como única obrigação, relatar suas impressões sobre a cidade. Os que ficassem alojados em casas de famílias teriam a oportunidade de ver o cotidiano desta gente. Imagine o que seria esta experiência quando ela fosse transladada para o papel, depois que eles retornassem para suas bases. Imagine mais: todo esse o material produzido sendo disponibilizado na web, bem como os links e e-mails para intercâmbio. Depois de uma festa assim, duvido que o COI não queira investir e sediar uma Olimpíada, o mais ecumênico dos eventos esportivos do mundo, nesta maravilhosa cidade... Duvido!

 

RL - Para que serve a Poesia?

TP - Diria que a Poesia serve para colocar os imbecis junto a seus pares em seus devidos lugares; mas esta serventia só faz sentido se se tornar claro que sem a Poesia as borboletas não sairiam de seus casulos, o zero seria nulo, o arco-íris não teria sete cores, as flores não teriam odores, não haveria sol na lua e o primeiro amor de nossas vidas acabaria sendo o último. Não serve para nada, mas sem ela tudo não teria sentido; nem a vida.

 

RL - Como você vê a Internet no processo de divulgação de Poesia? Como anda sua movimentação na NET? Como está utilizando a rede? Fale sobre os projetos que vem desenvolvendo nesta área.

Apesar dos contratempos e contradições que as novas tecnologias oferecem, a interface da web para a Poesia é um show à parte. As ferramentas disponíveis, somadas ao alto índice de comunicabilidade e interação que o ambiente oferece, são os fatores que dão ao modelo uma característica revolucionária ímpar. Na Internet não está sendo inventada uma nova Poesia, mas que um novo poema está podendo inventar sua forma, é fato incontestável.

Como já disse, eu mesmo tenho enriquecido meu repertório, viajando na rede e desenvolvendo projetos independentes, que me realizam sonhos quase impossíveis. É na rede que ofereço a Agenda Mínima dos eventos cariocas, diariamente atualizada e divulgando o que os jornais não têm espaço, nem pessoal para divulgar. Além disso, o que mais tem me chamado atenção são as opções para Poesias visuais e outros dispositivos, como o  áudio e o visual, que enriquecem e criam novos mecanismos de contato entre o poeta e a Poesia, num ambiente global.

Neste sítio, minhas experiências com o pessoal do www.cronopios.com.br são ótimas. O Pipol, responsável pelo visual do site, é craque no Flash e os flash-poems que ele põe na rede são magníficos. A mnemoZine, uma revista dentro do site, é um show espetacular das possibilidades que a rede está oferecendo. Meu trabalho feito a 3 mãos, com a interferência dele e sua arte —  faces:transformations — é um exemplo de Poesia visual de alta performance; um passo adiante nas oportunidades que a Poesia concreta e suas teorias mirabolantes esgotaram. Lá, também estou oferecendo gratuitamente um eZine sobre a Poesia marginal dos anos 70, com 48 páginas, em PDF/Acrobat: voce baixa e imprime o eBook — A Poesia era uma lady.

Outro projeto que tem me tomado tempo e atenção é o portal iPoesia, instalado no www.imusica.com.br, no qual estou pondo à venda poemas recitados pelos poetas que são vistos nos recitais da cidade. Já são 12 e até o fim do ano serão 28. A capella ou turbinados (com música ou efeitos sonoros) os números crescentes mês a mês de visitas e downloads indicam que esta é uma tendência in progress.

Em Curitiba, a www.radiocaos.com.br põe no ar, aos domingos, um programa de música cult, entremeada de Poesia falada. Exibido numa estação que fica no 8º lugar do ranking local, na hora do programa a audiência leva a emissora ao 3º lugar.

Meu sonho continua sendo a editora virtual e minha coleção de PDFs não pára de crescer. Além dos meus próprios rebentos, tenho para lançar inéditos de mais de 20 poetas que me enviaram seus poemas...

 

RL - Você dirigiu clipes para a MTV. O clipe é mesmo uma outra linguagem dentro do cinema? Como analisa a programação da MTV atualmente? Você considera válido tirar a programação do ar por 20 minutos e mandar ler um livro? Não seria melhor um programa sobre literatura?

TP - A MTV é responsável pela criminosa segmentação musical brasileira e por manter extrema dependência dos moldes e conteúdos de sua matriz estrangeira, não funciona como brownser adequado para promover processos de inclusão sóciocultural. Digo isso, porque conheci o pessoal da diretoria e sei que seus protocolos são sujeitos à negligência e às verdades do ambiente publicitário. Em curtas palavras: a garotada no ar até pode ser divertida, mas o partido no comando da nave-mãe é totalmente neofascista e manipula aquelas belezinhas alienadas com cheques, festinhas paulistas, carinhos no ego e garantias de um status de sub-celebridades!

Até gosto de seus conteúdos musicais, porque gosto de rock'n'roll, mas ver aquelas pessoas falando com sotaque de Zé Dirceu e dizendo coisas que só um idiota completo leva adiante, é triste. O conteúdo informativo da emissora é lixo que não serve nem para reciclagem. Tirando os clipes, o João Gordo e suas traquinagens, uma ou outra perereca animadinha, trata-se de uma TV infame, com conteúdos de péssima qualidade... 

Como já disse, escrevi um roteiro cinematográfico composto só de videoclipes justapostos — O Rio de Janeiro não perdoa. Acho a linguagem do videoclipe (ou video-music), por conta da independência entre a cena e o conteúdo, uma usina para idéias mirabolantes. Fora isso, a experimentação a que está capacitada esta linguagem técnica, agregada a todos os avanços tecnológicos da indústria audiovisual é a coisa mais moderna do cinema contemporâneo. Num videoclipe as possibilidades que se apresentam são ilimitadas; embora os recursos que permitam executá-las sejam restritos, caros e monopolizados. De qualquer forma, nem como biscate, não é o que mais me interessa há muito tempo...

 

RL - Você foi editor do Pasquim e teve matérias veiculadas em grandes jornais do Brasil. Que avaliação faz de sua militância artística no jornalismo?

TP - Foram dois anos de folia. Não se recebia nenhuma fortuna, mas os crachás para as melhores festas e eventos da cidade eram uma delícia. Quando entrei com Walter Queirós e Torquato Mendonça na redação, o jornal estava falindo. Mudamos o editorial; entrevistamos Cazuza (foi a primeira entrevista dele), Marina, Jorge Amado... uau: aquilo não era trabalho nem militância, era uma festa! Lamento que tudo acabou em pizza e o hebdomanário do Sig tenha desaparecido, depois de tantos anos de resistência. Parece até que foi a democracia que acabou com ele...

 

RL - Qual era a sua relação com Hélio Oiticica? Como foi dirigir e produzir H.O.N.Y?

TP - Hélio foi uma amizade doida e muito elucidativa. Ficávamos horas discutindo coisas absurdas. Ele era uma pessoa dotada de idéias extraordinárias e tinha convicções firmes sobre seu processo criativo, que me passavam segurança para enfrentar desafios. Quando ele se foi, eu estava em Nova York e só soube meses depois. O filme veio a partir de entrevistas que ele havia dado junto com Antônio Dias, falando de suas experiências com a migração americana e comentando criticamente a produção artística que se fazia naquele momento do Brasil e no mundo (1980).

H.O.N.Y — Hélio Oiticica in New York — foi um documentário independente, em VHS, que eu e Marcos Bonisson fizemos, a partir do conceito de "Delírios Ambulatórios". Basicamente, visitamos as pessoas que passaram a morar nos lugares que Hélio havia morado em Nova York e pedimos que elas falassem dele, mesmo não o tendo conhecido. Informadas sobre o conceito-motriz do projeto, as pessoas encontradas falavam de suas próprias experiências, como se o fantasma do artista ainda estivesse naqueles apartamentos. Uma delas, Jolie, era fã de Sinatra e havia conhecido pessoalmente o artista: falou de Hélio como se ele fosse um mafioso. O outro era um sujeito versado em óperas (trabalhava como figurante nelas) e habitava o apartamento em que Hélio havia desenvolvido seus "ninhos", dormindo praticamente numa das plataformas abandonadas na mudança. Este cara falou sobre Hélio como se ele fosse um cara ligado àquele show-business culto. No produto final de onze minutos, sempre com base no conceito-motriz, colocamos legendas em português nas falas destes personagens coletados ao acaso do delírio, dizendo coisas mais estapafúrdias ainda, sem nenhuma relação com a tradução correta. Até hoje, o filme é cult e um sucessso!!! 

 

RL - Os anos 80 voltaram? Tem saudades?

TP - Infelizmente e felizmente, os anos 80 não voltarão mais. Posso lhe afirmar, com absoluta certeza, que não tenho nenhuma nostalgia deste passado recente, inclusive, porque ainda há muita coisa para se encontrar neste sótão e parece que ele está vivo a cada vez que uma lembrança retorna. Saudades não dá para ter: tomava-se tantos psicotrópicos, que a memória ficou cheia de vazios e quase ninguém que viveu intensamente aquelas noites de loucura lembra de alguma coisa com começo, meio e fim. Para mim foi uma década importantíssima: fiz sucessos de rádio e gastei fortunas, viajando para tudo quanto é país, tive meus dois primeiros filhos; aprontei todas... Saudade não é a palavra exata: divertidas recordações é mais adequado!

 

RL - Como eram suas performances ao vivo na época?

TP - Minhas performances à época eram muito doidas. Eu tinha mania de falar com videotape. Conversava com monitores de televisão ao vivo, passava clipes, reportagens absurdas, etc. Os nomes dos eventos são um capítulo à parte: Rimbauds Efêmeros (na cola dos Robôs do Fausto Fawcett), TV DADÁ SHOW...  Em agosto de 1986, numa sessão à meia-noite, no Mistura Fina de Ipanema, fiz o TV-JAM-TV, com Jorge Salomão e Joe Atanásio (tocando guitarra). Era uma loucura de primeira: começávamos com 5 minutos de gritaria pura e guitarra em altíssimo volume, tudo para limpar os ouvidos das pessoas e permitir-lhes assimilar informação nova (que loucura!). Depois, fazíamos perguntas à platéia, numa espécie de "quiz" sobre imagens de revistas pornográficas hard-core, triple X reproduzidas nos monitores de TV do palco... Tinha uma sessão de encerramento com um jornal maluco, onde relíamos à nossa maneira o noticiário do dia. O evento foi todo registrado. Ano que vem, comemorando os 20 anos daquele absurdo, vou exibir o registro, que está sendo recuperado.

 

RL - Não está na hora de uma candidatura a ABL? Brincadeiras à parte: o que falta para Tavinho Paes?

TP - Sabe que você está me dando uma idéia! Eu preferiria ver o Chico lá, mas, como aquilo é um "Big Brother" de luxo, não custa nada me candidatar. Não só para ocupar cadeira de quem bater as botas: quero ser logo presidente e incluir uísque escocês no chá das cinco. O que não me agrada nesta coisa toda é que passo a ser imortal, comprometendo toda aquela especulação para tornar minha obra um commoditie feito milho e café... (risos)

 

RL - Você enfrenta algum preconceito nos meios literários pelo fato de ser um poeta marginal?

TP - Não! Não existe preconceito neste sentido, porque não existe informação sobre o que é ou sobre o que foi a Poesia Marginal. O termo é vago e não tem bases para criar um preconceito sólido.

Agora, eu não sei como os meios literários me avaliam, só sei que eles não sabem nada a meu respeito e eu não me relaciono com ninguém importante daquele clube. Tudo que podem fazer, se quiserem pegar no ar informes tão vagos quanto escritos de Heráclito, vão acabar me tornando um mito e inventando histórias que só os santos e seus milagres possuem e fazem jus. Sei lá quem são esses caras, mas que eles existem e atrapalham, ah... isso a gente ouve falar!

 

RL - Tem algum mote que o acompanhe pela vida?

TP - Seja como for, aonde for ou com quem for: leve consigo seu Desejo!

 

RL - Qual o papel do poeta na sociedade? 

TP - O mesmo que o bisturi tem numa cirurgia.

 

 

 

 

poemas que viraram música
 

[blá blá blá]
publicado in Rock'n'Roll = booklet 1/4 A4 <1984>
recomposto em parceria com Lobão, gravado no CD Vida Bandida <1986>

...ela adora me fazer de otário
para entre amigas ter o que falar...
vive na onda da paixão paranóica
praticando sexo como um mero jogo de azar!

uma noite ela me disse: "— Quero me apaixonar!"
como quem pede desculpas para si mesmo
porque a paixão não tem nada a
ver
com intenção e vontade
quando bate já é o alarme de um louco desejo
que não dá para controlar

sua vida burguesa é um romance
um roteiro de intrigas para Felini filmar
cercada de drogas e amigos inúteis
ninguém imagina que ela só quer namorar

reconheço que ela me deixa inseguro
afinal: sou louco por ela
e perto dela não sei o que falar

eu queria que ela entrasse na minha vidinha
quebrasse a minha triste rotina
ficasse comigo e desejasse me amar
mas isto eu não posso controlar
porque isso não dá para controlar
nem dá para planejar

aí eu ligo o rádio e tenho que aturar
aquele interminável
blá-blá-blá
em todas as canções de sucesso
tem sempre alguém repetindo em excesso:
...eu te amo!

 

[sexy yemanjah]
publicado originalmente in Netuno Afogado = panfleto envelopado <1978>
musicado por Pepeu Gomes <1993>


se essa noite vai ter lua cheia
quem eu amo virá me ver
as nuvens vão ser passageiras
nem um pingo vai chover
e tudo pode acontecer

tem tudo a ver com o mar
e com as marés desse lual solar
o amor que me incendeia
ardendo em brasa na areia
enquanto eu sair de mim
para amar minha sereia

vou me preparar como um poema
com perfumes de alfazema
para este divino banho de mar
e quando minha deusa chegar
quero estar pronto
para ser todo seu
amando seu corpo de espumas
do primeiro beijo salgado
até o momento do adeus
mantendo entre nós
só sexo e deus

quando ela me chamar
e quiser me amar: eu vou
sexo, amor e yemanjah
têm tudo a ver com o mar
e nessa noite de lua-de-mel
quando eu chegar lá no céu
vai ter lua cheia!

 

poema para ilustrar venda de livrinhos nas ruas

[poema à venda]
inédito -
dedicado ao poetas independentes do século 21 <2005>

sempre que um
poeta
aproximar-se de
você
tentando lhe
vender
seus
poemas
dele não tenha pena
nem compaixão

logo no primeiro contato
use o dom divino da sua
imaginação
e imagine com o coração
que o poeta está tentando vender
pingos de uma chuva de
verão
antes que eles caiam no chão
 

 

 

Tavinho Paes, 1955, poeta, 100 microlivros publicados. Compositor musical gravado por Caetano, Lobão, Rita Lee, Ney Matogrosso, Maria Bethânia, Marina Lima, etc. Jornalista, editor de O Pasquim. Performer, artista plástico. Produtor de trilha musical para cinema, carnavalesco fundador do Bloco dos Valérios, diretor de eventos de poesia como poemaShow, Semana Santa em Santa e Poesia Voa (Festival de Poesia do Circo Voador). Webmaster/designer de sites como www.poemashow.com.br e www.pasquinet.hpg.com.br.

 

 

 

 

outubro, 2005
 
 
 

 

Rodrigo de Souza Leão (Rio de Janeiro, 1965), jornalista. É autor do livro de poemas Há Flores na Pele, entre outros. Participou da antologia Na Virada do Século — Poesia de Invenção no Brasil (Landy, 2002). Co-editor da Zunái — Revista de Poesia & Debates. Edita os blogues Lowcura e Pesa-Nervos. Mais na Germina.