Rodrigo Leão – Ana, qual a importância da literatura para a construção da teoria do inconsciente?

 

Ana Portugal - Este é um dos pontos que meu livro pretende pesquisar. O que poderia dizer é que literatura e inconsciente (ou psicanálise) têm uma base comum, que é a língua falada, pois isso supõe não se poder dizer tudo, ficando sempre algo em espera, pulsando, para se fazer expressar. Nessa empreitada, a literatura, muito mais antiga e rica, apresenta ao psicanalista formas de contorno a esse ponto, formas que podem lhe dar boas indicações de como trabalhar aí, sem se deixar paralisar.

 

 

RL - O que Freud procurava quando estudava textos literários?

 

AP - Em vários momentos Freud confessa sua paixão pela literatura. Acredito que, na maioria das vezes, ele tentava entender os personagens, deduzir a razão de seus atos, e aplicá-la ao escritor, tendendo, muitas vezes a apelar exageradamente para o conteúdo biográfico, o que o levou a enganos, que, aliás, ele nunca teve vergonha de confessar. Mas, em outras, ele está interessado nos malabarismos do escritor no uso da linguagem, e foi daí que fez muitas aproximações com a teoria do inconsciente. Por exemplo, na elaboração da teoria sobre os atos falhos, ele sempre usa exemplos de dramaturgos e escritores, mostrando como eles também exploram tais atos em sua criação dos personagens.

 

 

RL - A teoria do inconsciente poderia ter sido criada sem respaldo literário?

 

AP - Tal como Freud a concebeu, não. Seus três primeiros livros — Interpretação dos sonhos, Psicopatologia da vida cotidiana e Os chistes e sua relação com o inconsciente — que mostram toda a estrutura da teoria, são muito entremeados das questões literárias.

 

 

RL - O que é ficção e o que é realidade na teoria do inconsciente?

 

AP - O que poderia dizer, de antemão, é que a realidade psíquica é ficcional, e ao mesmo tempo, vale para o sujeito como o que há de mais real, pois ela é causa de seus sintomas, de seus afetos e desafetos, enfim, de todas as suas realizações, apesar de parecer sempre uma invenção, uma fantasia. É muito comum se ouvir dizer que os neuróticos — e psicóticos — estão "inventando" coisas, mas para cada um, é o que há de mais real.

 

É como a realidade na ficção literária: quanto mais ficcional, mais real. Num capítulo de meu livro, recorro a Jorge Luis Borges (A arte narrativa e a magia) para dizer da força da arte narrativa, que não é a imitação da causalidade do mundo real, tal como é representada pela ciência, mas segue a causalidade e a lógica da magia, que é tida por Borges como lúcida e de primitiva clareza.

 

Por outro lado, encontramos em alemão e no texto de Freud duas palavras que em português são traduzidas por "realidade". São elas Wirklichkeit e Realität. A primeira diz respeito à efetividade do fato, e a segunda, de raiz latina, corresponde ao que chamamos realidade. Então, para a realidade psíquica valem as duas num único fato.

 

 

RL - Por que o estranho fascinou Freud?

 

AP - Desde seu ensaio de 1913, Totem e Tabu, no qual aborda a onipotência dos pensamentos e dos desejos, Freud já se ocupava deste tema, que, em alemão, se expressa pela palavra Unheimlich. Esta palavra, como esclareço no meu livro, contém a ambigüidade estranho/familiar, uma vez que tem por raiz o Heim, que quer dizer lar, casa, família, e, pela negativa Un (Não), traz o estranho, o não-familiar. São aquelas coisas que, de tão íntimas e secretas, nos soam estranhas, clandestinas. A experiência do inconsciente traz algo assim: o sujeito tem contato com algo estranho — um sonho, por exemplo —, mas ele não pode negar que aquilo lhe pertence, lhe concerne.

 

Não podemos dizer que o estranho tenha fascinado Freud. O que parece ter acontecido é que ele encontrou em sua língua cotidiana uma palavra que expressava com certa "primitiva clareza" (Borges) essa divisão do sujeito diante dos fatos do inconsciente. E, instigado pelas questões que a clínica lhe apontava, resolveu fazer uma pesquisa pela literatura e pelo campo dos fenômenos que traziam essa atmosfera de estranheza familiar.

 

Curioso é que o conceito de Unheimlich é antigo na literatura alemã — e aqui me refiro não somente à ficção literária, mas também à filosofia (Kant) e à estética — sendo associado a uma experiência de certa maneira sublime. O feito de Freud neste ensaio sobre o estranho é colocar isso mais à mão, como uma maneira de cada um saber um pouco mais de sua sujeição ao inconsciente. Tanto é que ele utiliza, além da literatura, exemplos pessoais. Gosto muito da expressão de Hélène Cixous sobre o ensaio: "estranho romance teórico", com a qual ela mostra o quanto o texto se deixa impregnar pela estranheza, para descrever o tema do qual deve tratar.

 

 

RL - Goethe é fundamental para entender a opção de Freud por ser médico?

 

AP - Não, acho que não. Freud faz muitas referências a Goethe em sua obra, principalmente sobre o Fausto, sua ambição de saber tudo e de ser imortal. Certamente você está se referindo a uma passagem do livro, em que digo que Freud se apoiou em um poeta para ser médico, pois ele diz que foi ouvindo o fragmento de Goethe sobre a natureza que o fez decidir-se. Mas afinal o fragmento nem era de Goethe.

 

Há um estudo de Ricardo Sobral de Andrade, A face noturna do pensamento freudiano — no qual também me apoiei em minha pesquisa —, que mostra as raízes do pensamento de Freud no romantismo alemão, e que nos faz supor a curiosidade de Freud sobre as questões do corpo não dissociado do psiquismo, portanto, um corpo atravessado pela linguagem, mas, antes de tudo, um corpo.

 

 

RL - Como surgiu o título do seu livro O vidro da palavra?

 

AP - O título surgiu em decorrência dos destinos que tomou minha pesquisa, apoiada em 3 bês: Borges, Benjamin e Blanchot — ao que acrescentaram mais um: Baudelaire. Para Benjamin, o vidro é a transparência, a derrocada das barreiras que o burguês erige para se iludir de que tem algo de individual, de pessoal. Para Blanchot, o vidro é a separação: você vê o que está sob o vidro, mas não tem acesso. Quando falamos de literatura e psicanálise estamos numa posição semelhante: de proximidade e de separação. E aí proponho que o estranho é um denunciador — como um vidro — da impossibilidade de que estes campos se superponham: não interessa fazer análise psicanalítica da literatura, pois isso não acrescenta nada ao campo dos saberes, já que os personagens sabem mais que nós; e, também, não interessa, para a psicanálise, ficar somente num campo literário, sem ter que dar conta do que a clínica lhe exige, e se comprometendo em avançar numa formalização, cada vez maior e mais clara de suas questões.

 

 

RL - Em que aspectos os espectros em Macbeth (em Shakespeare) são manifestações esquizofrênicas?

 

AP - Considero que são manifestações do real no texto, daquilo que escolhe formas não convencionais para se expressar, já que a linguagem se mostra insuficiente. Não acho que seja o caso de fazer diagnósticos.

 

 

RL - Alguns especialistas dizem que o século XX foi freudiano e que o século XXI será junguiano. Concorda?

 

AP - Não. A pesquisa de Jung separou-se radicalmente da de Freud, pois ele propõe um inconsciente coletivo e trabalha com arquétipos. Freud não acompanha essa hipótese e permanece fiel a um sujeito que se atormenta, se defende, mas por outro lado se realiza na trilha de um desejo. O século XXI, com todo seu clima fast-food tem muito a lucrar com o que Freud sistematizou em sua teoria, desde que os freudianos, principalmente através da leitura de Lacan, que é muito rigorosa, se impliquem com o dia-a-dia dos sujeitos, na lida com o mal-estar atual.

 

 

RL - A psiquiatria é prosa e a psicanálise é poesia?

 

AP - Se me permite aqui um jogo de palavras, posso dizer que sim. A psiquiatria fica bem prosa (no sentido de faceira, contando vantagens), porque tem a seu alcance todo o progresso da farmacologia, que é quase milagroso no controle dos delírios, ansiedades e depressões. Mas se ela permanece num esquema descritivo, prosaico e não atenta para o sujeito, se não se dedica a escutar um pouco, a acompanhar seu esforço de afirmar um lugar onde caiba seu desejo e seu sentido na vida, essa prosa não vai muito longe, e limita-se a uma repetição enfadonha e sem fim. Nesse caso a psicanálise é poesia, é buscar pontos de condensação das expressões sintomáticas e fazê-las funcionar de um outro modo (a transferência serve para isso), um modo menos atormentado e sofrido para o sujeito.

 

Há alguns anos escrevi um ensaio — "Inconsciente e Poesia: fome de realidade" — sobre as proximidades entre inconsciente e poesia, tendo como base os textos de Octavio Paz. E começo assim: "Dizem que todo poeta é um sonhador. Mas dizer que todo sonhador é um poeta...". Aí precisamos da psicanálise para explicar essas conexões.

 

 

RL - Todo o psicanalista não deveria ser um médico, assim como Freud era?

AP - Não necessariamente. Acompanhando a história da psicanálise, encontramos as mais diversas profissões. Há um ensaio de Freud sobre isso, a questão da análise leiga, onde se vê claramente que tipo de disciplinas se exige de um psicanalista em sua formação. Elas têm muito mais a ver com uma linha humanista: história, literatura, arte, antropologia, lingüística, história das religiões, e estão bem distantes da biologia e da química. Hoje ainda acrescentaríamos a lógica e a topologia.

 

 

RL - Por que a psiquiatria e a psicanálise não se entendem?

 

AP - Não acho que seja assim. Elas têm pontos de disjunção bem mais claros que os de conjunção, mas não é impossível o entendimento, desde que cada campo saiba buscar no outro as especificidades deste. Acho que essa questão é muito mais ampla do que o que pretende o meu livro.

  

 

 

 
 
novembro/dezembro, 2006
 
 
 
 
 
 

Ana Maria Portugal (São João Del Rei–MG, 1944). Psicanalista, Doutora em Literatura Comparada pela Faculdade de Letras da UFMG, defendeu a tese "O Vidro da Palavra: O Estranho Como Objeto-limite Entre a Literatura e a Psicanálise". Graduada em Psicologia (PUC-MG) e também em Música — Violino — na Escola de Música da UFMG. Membro da Escola Letra Freudiana (Rio de Janeiro). Coordena seminários de estudo para psicanalistas. Publicou O vidro da palavra — o estranho, a literatura e a psicanálise (Autêntica, 2006). Participou da organização dos livros O porão da família (Ed. Casa do Psicólogo, 2003); A escrita do analista (Autêntica, 2003); Destinos da Sexualidade (Ed. Casa do Psicólogo, 2004). Publicada em vários livros e revistas nacionais e internacionais, tanto da área de psicanálise, quanto de estudos literários. Vive em Belo Horizonte.

 

 
 

Rodrigo de Souza Leão (Rio de Janeiro, 1965), jornalista. É autor do livro de poemas Há Flores na Pele, entre outros. Participou da antologia Na Virada do Século — Poesia de Invenção no Brasil (Landy, 2002). Co-editor da Zunái — Revista de Poesia & Debates. Edita os blogues Lowcura e Pesa-Nervos. Mais na Germina.