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O escritor e jornalista Moacir Amâncio reúne em Ata (Record, 2007) seus seis primeiros livros (Figuras na sala, O olho do canário, Colores Siguientes, Contar a romã e Óbvio), além de inéditos. A publicação dos títulos em apenas um volume foi uma conseqüência natural, segundo o autor, que tinha livros espalhados por várias editoras: foi feita a observação, em críticas publicadas em jornais, que os livros se desdobravam, quer dizer, havia uma seqüência e uma unidade que parecia indicar o projeto de um único livro. A paixão por idiomas transparece em seu trabalho. Em Ata, o autor utiliza quatro línguas em seus poemas (português, inglês, castelhano e hebraico). Para o autor, é mais uma possibilidade de experimentação da linguagem, dos limites e dos contatos entre os idiomas no âmbito do fazer poético. "Às vezes, o que não ocorre num idioma revela-se em outro com clareza, comentou. No conjunto, imagino que os textos em outros idiomas funcionem como uma colagem, se o leitor entende o que está escrito, muito bem, caso contrário, muito bem também, porque o ruído está ali", disse. Sua primeira obra poética recebeu um Prêmio Jabuti em 1992.

 

 

 

 

 

Editora Record — Em Ata, você reúne seus seis primeiros livros e também inéditos. Como analisa a transformação de sua poesia desde o primeiro livro, Do objeto útil, de 1992, até estes inéditos?

 

Moacir Amâncio — Logo no início dessas publicações foi feita a observação, em críticas publicadas em jornais, que os livros se desdobravam, quer dizer, havia uma seqüência e uma unidade que parecia indicar o projeto de um único livro. A palavra transformação me parece bastante adequada, pois as metamorfoses são constantes, elas vão se acumulando e se comunicando a partir da busca de possibilidades da linguagem, que é a matéria da poesia, claro.

 

 

ER — Sua poesia é marcada pelo multilingüísmo. Em Ata, temos poemas em quatro línguas (português, inglês, castelhano e hebraico). Qual a sua intenção ao optar por diferentes línguas? Imagina que cada sentimento ou palavra tem um significado único, intraduzível?

 

MA — Bem, isso é uma espécie de acaso. Parece que a intenção é posterior à escrita. Em primeiro lugar, são experiências espontâneas, que de início vieram aparentemente do nada. A primeira foi em castelhano, quando tomei as dores do Góngora numa disputa com o Quevedo — dois poetas enormes. Depois vieram as demais. Em inglês, uma vez, na Coréia do Sul, comecei a tomar notas e continuei no vôo de volta, em Los Angeles, e isso prosseguiu naturalmente depois. Agora, faço alguma tradução também, não do que escrevo, claro, porque aqui eu sinto a distância entre os idiomas. O castelhano, por exemplo, diz coisas que só em castelhano são possíveis, e nós, como falantes do português, percebemos isso muito bem. Tanto que nem traduzimos algumas palavras, incorporadas ao dia a dia. No conjunto, imagino que os textos em outros idiomas funcionem como uma colagem, se o leitor entende o que está escrito, muito bem, caso contrário, muito bem também, porque o ruído está ali. Outra coisa decorrente dessa experiência é uma lição babélica. Apesar da diferença entre os idiomas, surge a idéia de que um idioma não pode existir sem o outro.

 

 

 

 

ER — Você foi um dos escritores brasileiros convidados da 23a Feira Internacional do Livro de Jerusalém (junto com outros nomes importantes como Rubem Fonseca, Luis Fernando Verissimo, Ignácio de Loyola Brandão, Affonso Romano de Sant'Anna, Marina Colasanti, Walcir Carrasco, Ana Maria Moretzsohn, Pedro Bandeira). Como foi a experiência e a troca entre os autores?

 

MA — Foi uma experiência ótima e muito rica. Até porque havia muita descontração. O Gabriel García Márquez conta que as grandes reuniões de pauta do tempo dele de redação ocorriam no bate-papo do bar, após o expediente. Ali surgiam as idéias. A viagem permitiu a pessoas que não conheciam aquela realidade, isto é, só pela mídia e suas tendências evidentes ou insuspeitadas, mas presentes. E isso significa muito. Sem contar que as pessoas puderam entrar em contato com raízes da cultura ocidental, raízes comuns a todos os povos e essa me parece uma experiência fundamental.

 

 

ER — Seu trabalho quanto à forma dos poemas varia bastante de livro para livro — e até dentro dos mesmos livros. Você acredita que cada poema pede uma forma?

 

MA — Acredito sim. Porque cada texto é uma busca desse mesmo texto. Tem a ver com a tradução e seus limites, concorda? Então, o desafio de cada texto vem do vazio. O texto não existe, existirá, ou não? E se vai existir, como será? Há o caso de um poema que comecei a escrever há cerca de 30 anos. Um texto muito curto. Voltei a ele no ano passado, acrescentei algumas palavras, três ou quatro à meia dúzia anterior. Alguns meses depois percebi o que sobrava: a segunda sílaba da única palavra do título. Então, o texto se completou.

 

 

ER — Quais são suas principais influências literárias? Acredita que seu estilo se pareça com algum outro poeta, do passado ou presente?

 

MA — Não só acredito como tenho certeza, claro. E até mesmo autores de que nem tenho conhecimento. Acho difícil avaliar influências em termos quantitativos. Há famílias de sensibilidade: por exemplo, vários escritores absorvem a experiência de um outro, antigo, não porque o admiram de modo ingênuo, mas porque percebem a existência de um espelho fantástico que os reflete em abismo e assim vai. Onde estão as fontes primeiras, alguém sabe? Acontece também que de repente uma única linha de algum autor tem uma importância maior do que os dez volumes de outro, nessa perspectiva. Todo escritor está relacionado com toda a literatura de seu tempo.

 

 

ER — Como você vê o cenário da poesia brasileira contemporânea?

 

MA — Acho muito estimulante. A variedade é tão grande quanto as dimensões do país. Há surpresas a todo momento. Não dá para acompanhar tudo, mas quem trabalha com poesia desenvolve uma perícia na pesquisa, de farejar as coisas. A internet ajuda muito e abre o panorama. Não se procura mais um poeta do seu próprio país, mas um poeta de qualquer lugar do mundo numa língua acessível. Algo que vejo como muito positivo nisso tudo é que aquelas atitudes fechadas, totalitárias, não se sustentam. Ninguém é dono de nada nem pode ter certeza de coisa nenhuma. Ninguém pode ler a priori, isto é, exigir que o mundo seja escrito como ele acha que deveria. E a gente vê essa abertura na variedade temática e formal dos poetas brasileiros e estrangeiros. O Octavio Paz falou certa vez em vasos comunicantes da poesia. Porque, apesar de tudo, os poetas acabam se sintonizando, mesmo quando tentam evitar a sintonia.

 

 

ER — Como é sua ligação com a crítica especializada e com o público? Acredita que a resposta destes ajudam a dar um norte para a sua produção?

 

MA — Leio com o maior interesse as críticas escritas sobre meus livros e também ouço leitores. Acho sempre interessante a reação deles. Porque isso ajuda a pensar, a refletir sobre o que você está fazendo. Quer dizer, dão sinais que podem apontar para regiões insuspeitadas, por que não? Cada leitura pode ser uma revelação e uma revelação é sempre surpreendente e enriquecedora.

 

 

ER — A metáfora da casca da cebola (Klipat Batsal, no hebraico original) é recorrente em sua poesia, como observa a professora Berta Waldman no ensaio intitulado "Poesia Nômade", que apresenta Ata. Como trabalhar essa idéia de camadas sobrepostas que revelam e escondem dentro de um contexto poético?

 

 

MA — Acho que aí se abre uma possibilidade de leitura. Mas veja, se cada poema é um poema, a gente não pode esquecer, sobretudo, que cada leitor é um leitor e ele precisa se assumir como tal, não é? E nunca perder a perspectiva de que a leitura é um diálogo com o autor, visto como um primeiro leitor, e outros leitores, não é?

 

 

ER — Antes de publicar poesia, você escrevia prosa. Chegou a escrever uma novela, Estação dos Confundidos, em 1973, e O Riso do Dragão, uma coletânea de contos, em 1981. Como foi sua transição para a poesia? Foi uma imposição interna?

 

MA — Fiz as coisas pelo contrário, de ponta-cabeça. Normalmente as pessoas começam escrevendo poemas e passam para a prosa o mais rápido possível. Comecei escrevendo novelas e alguns contos. No entanto, de repente, a prosa se tornou impossível, a narrativa se partia e as frases se voltavam para elas mesmas. Deixei tudo de lado e passei mais de dez anos sem publicar coisas assim. Só publicava artigos, crônicas. Do objeto útil foi o primeiro resultado desse período.

 

 

ER — Você é professor de língua e  literatura hebraica na USP e foi jornalista por muitos anos. Como foi sua trajetória nestas duas carreiras e de que modo elas influenciaram ou influenciam no que escreve?

 

MA — O jornal é uma grande escola de texto. No jornal, embora o que a gente faça não seja literatura, é trabalho com palavra. A diferença talvez seja a mesma entre o pintor de paredes e o artista plástico. Não estou falando em valoração, ambos têm sua função. O que quero dizer é que no jornal a gente aprende a pesar as palavras e suas conseqüências, a importância da síntese. Durante muitos anos trabalhei em primeira página, onde o redator é obrigado a resumir a uma linha e meia reportagens longas, etc. Há também a relação com o público, quer dizer, no jornal a palavra está compromissada, você não pode brincar com ela, no mau sentido. É só trocar "jornal" por "literatura" e a gente vê como as coisas podem ser. A transição do jornal para a sala de aula existe e não existe. Porque vejo a universidade como mídia também. Ali, estou divulgando literatura, procurando formar leitores — o meu objetivo no jornalismo cultural sempre foi esse. Agora, se o público é mais reduzido do que o do jornal, há o compromisso de manter continuidade das pesquisas. Se não fosse pela universidade eu não teria escrito um estudo sobre a obra do romancista israelense Yoram Kaniuk, juntando-a à arquitetura de Frank O. Gehry, no âmbito da expressão artística e judaica contemporânea, nem feito outro estudo, que dará outro livro, sobre a poetisa israelense Yona Wollach, sem contar projetos em andamento e ensaios diversos. Tenho me ocupado da poesia hebraica medieval também, que é um mundo fantástico, rico, importante. Então, procuro ver o que une, os pontos de contato. Essas atividades podem influenciar o que escrevo pelo aspecto negativo, ou seja, um modo de atacar a instrumentalização da linguagem. Agora, só uma observação: um jornalista será sempre jornalista, é um modo de funcionar.

 

 

 

 

dezembro, 2007
 
 
 
Moacir Amâncio. Poeta, jornalista, professor de língua e literatura hebraica na FFLCH da Universidade de São Paulo, é autor de livros de poemas, ensaios, reportagens e crônicas. Ata (Rio de Janeiro: Editora Record, 2007) é o seu livro de poemas mais recente.
 
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