WILMAR SILVA - Sem a origem é impossível falar da vida: como foi a sua infância em Mossoró, no Rio Grande do Norte?

 

REYNALDO BESSA - Começando com Cacaso, como falar de um país em que vivo já há muitos anos em exílio? Mas tentarei, querido poeta. Quando comecei a rabiscar as primeiras linhas nessa grande folha em branco que era o meu passado, e que agora se encontra quase sem espaço e totalmente rasurada, minha mãe fazia os meus calções e as minhas camisas. Tinha medo do som dos tambores que vinha dos terreiros, mas ao mesmo tempo queria conhecer esse som. Riscávamos as paredes dos muros com o sumo vermelho da castanhola. Não subia em árvores com receio de machucar as bichinhas. Os jasmins me davam vontade de chorar e o apito do trem ao longe me passava um sinal de que crescer seria uma coisa triste. Os adultos me diziam coisas boas, mas seus olhos os desdiziam. Mossoró sempre foi uma cidade muito quente, então sempre vejo o meu passado fervendo do outro lado. Homens suando, gritos, becos sem saída, mulheres grávidas, galanteios, gatos fujões, amores, crimes, frutas, vaga-lumes e mugidos. Tudo tremulando como uma vela aflita num deserto escuro. Não devia sair muito de casa, não devia dormir sujo, devia comer muito, não falar com estranhos, lavar as mãos antes de comer, jogar menos bola, mas eu sempre arranjava um jeito de me contagiar de mundo. Uma boa infância é constituída de pequenas transgressões.

 

 

WS - Falando em hebraico, que Brasil é o Brasil de Natal?

 

RB - Um chão mais próximo da nossa raiz, mas ao mesmo tempo mais próximo da nossa culpa: a África. Convivemos com isso: a África debruçada sobre a janela como ainda hoje encontramos algumas donzelas debruçadas melancolicamente sobre algumas janelas, num final de tarde de uma rua histórica do país-Natal. Esse país se liberta aos poucos do pensamento-província (esse mal que nos amarra) e começa a mostrar a sua verdadeira cara, a sua vontade de contar as suas próprias histórias, a sua força e o que é ainda melhor, assumir as conseqüências, pagar o preço. Essa "cara" leia-se; a música, a dança, o teatro, a poesia, a literatura e tudo que expõe o ser em carne viva. O progresso leva embora as conversas na calçada no cair da noite, mas em compensação nos deixa a vontade de questionar sobre o que é a "noite". É o estar fora e não dentro. O país-Natal e todo o estado do Rio Grande do Norte, hoje, já me reconhecem como seu representante. Fico feliz por isso e agradeço. Shalon! Natal, Shalon! Rio Grande do Norte.

 

 

WS - Se a música é a fonética dos idiomas, como descobriu a música em sua língua?

 

RB - Um alemão uma vez me disse: A palavra que mais gosto no português é "estacionamento". Com um sorriso infantil boiando no rosto, ele ficava repetindo lentamente essa palavra: E-S-T-A-C-I-O-N-A-M-E-N-T-O. Algumas pessoas não entendem isso, mas é forte. Existe. Desde muito cedo tive esse fascínio pelo mistério das palavras, por essa força, mas até encontrar um cego tocando sanfona na feira, eu ainda não havia encontrado a cola. Essa coisa música e letra ou vice-versa. Numa mistura de medo e admiração encontrei o meu destino. Colocar um texto dentro de uma célula musical, perfeitamente, só se compara ao Fiat lux. Mas descobri também a responsabilidade disso. Cuidado com o que você diz, pois tem sempre alguém que acredita. Então tenha consciência do que diz. O Músico não faz umas musiquinhas aí, man. Boa ou ruim, isso é uma mensagem, uma informação. Então descobri o "como" e o "por quê?". É importante descobrir esses dois.

 

 

WS - Que memória preserva de sua descida a São Paulo quando realmente pisa sobre a cidade, a exemplo de sua letra/música "Lamento Urbano"?

 

RB - Apesar dos contratempos típicos de uma cidade grande como é São Paulo, sou apaixonado por essa cidade, porém já são mais de vinte anos aqui e queira ou não a gente perde um pouco as impressões obtidas do começo de tudo. Lembro que logo que cheguei tudo parecia muito rápido. Os gestos das pessoas pareciam violentos demais. Passei um dia inteiro numa praça, pois achava aquilo tremendamente lindo. As flores não me remetiam às flores da minha terra. Apesar desse distanciamento que você acaba ingerindo com o tempo, vez ou outra, ainda me encontro numa "São Paulo" que está dentro de São Paulo. Não sei porque, mas acho que isso tem sempre a ver com a lua cheia, essa aranha amarela tecendo a noite. Há algo nos néons, esquinas e pistas molhadas, pois estão sempre a disparar flashs, insigths. Então, mesmo longe do computador, passo a escrever longos capítulos e também poemas que jamais me lembrarei novamente. Só pelo prazer do diálogo com a cidade. Quando chego de alguma viagem e o solo de sampa já úmido e a garoa me dizem "bem-vindo', é inevitável não cantarolar essa canção feita por um rapaz cheio de sonhos e medos.

 

 

WS - Sendo um músico apaixonado por poesia, o que pensa sobre o pernambucano de Olinda, Chico Science e sua "Nação Zumbi"?

 

RB - Chico Science não era um desavisado. Era antenado. Ligado em tudo o que acontecia ao seu redor e por isso causou todo esse burburinho. Muitos músicos hoje querem revolucionar. Falam sempre em mudar as coisas, mas não sabem que pra fazer isso é preciso embasamento e não só ficar tocando suas guitarrinhas e depois beijar suas meninas. Science mudou o jeito de pensar e fazer música, ditou comportamentos. Com suas letras fortes e suas misturas antes consideradas impossíveis, criou seguidores e talvez o maior movimento musical-poético-panfletário. Science não cuspiu na tradição como costumam fazer, pelo contrário, usou-a como suporte para criar uma idéia totalmente nova. Nos termos de hoje, diria que ele fez um upgrade da tradição. Vejo o mangue beat como uma quase mistura de Alceu Valença, o Rock clássico, o eletrônico, os tambores dos terreiros, os lamentos nordestinos e isso tudo regido por João Cabral de Melo Neto (queira ele ou não).

 

 

WS - A música "O Novo" apresenta um Reynaldo Bessa repleto de verdades inassimiláveis pela sociedade ou, puxando à memória Ricardo Reis/Fernando Pessoa, a letra é apenas "música que se faz com idéias"?

 

RB - Vejo o futuro como alguém metendo a mão dentro de um covil de cobras no intuito de trazer algo que muito lhe interessa e com isso levando algumas picadas. Então esse fujão traz sempre algumas coisas desagradáveis. Não quero ser pessimista, mas hoje ainda vai, amanhã não sei. Parece que a coisa tende a degringolar. Parece que isso virou o grande barato. Então a canção "O Novo" surgiu do cansaço dessa apologia à banalidade, ao fácil, ao vazio. Desse endeusamento ao extremamente fácil em detrimento do pensamento, do filosófico. Acho essa tendência preocupante, pois o mundo não acaba em nós. Sempre ouço pessoas dizendo "precisa mudar, aparecer alguém novo, algo novo", mas aí quando esse algo aparece, é imediatamente pichado, renegado. Isso em todas as áreas. Enquanto um produto vazio é elevado ao posto de "sucesso", uma coisa de qualidade é esquecida. A canção "O Novo" é o meu desabafo, o meu alerta, o meu grito na noite mais escura do mundo, mesmo sabendo o quanto isso é inócuo. Ela é o presente que não eu quis receber. Não tenho o menor intuito de mudar o mundo, não sou ingênuo, mas quero me reservar o direito de me transformar, ouvir e dizer o que penso. Se o mundo tiver alguma possibilidade de mexer um pouco o seu eixo em direção ao belo, ao criativo, ao pensamento, creio que isso só será conseguido com "idéias" e não com armas, como estão fazendo.

 

 

WS - A verdade, Reynaldo Bessa: que país é São Paulo?

 

RB - A minha verdade será sempre e somente a minha verdade. Sampa se revela de maneiras diferentes a cada um. Quando você muito a quer, ela percebe e aí te nega um colo, um beijo, uma foda, mas quando você decide ir embora, ela te abre os braços e as pernas e passa toda a noite ouvindo atentamente o que você tem a dizer. Ela é astuta, maliciosa, porém frágil, é preciso ouvi-la de vez em quando. Afortunados e famintos dividindo o mesmo solo (solo, não o teto). Felizes e infelizes comungando o mesmo banco no ônibus lotado. Há segredos nas esquinas. Podemos encontrar um revólver, um novo amor ou um futuro amigo. O risco está sempre em nosso encalço. O jogo de vencer ou perder. Espalhadas pelas ruas como contas de um colar que arrebentou, encontramos: a promessa de um dia de sol e céu azul, a mistura de raças, de culturas, a fome, o desdém, o auxílio, o desamparo e o consolo. Tudo isso convivendo como engrenagens de uma grande máquina que precisa funcionar. Costumo dizer que São Paulo é uma cidade onde o atalho pode tornar o caminho mais longo. São Paulo é feminina e nunca se conhece inteiramente uma mulher.

 

 

WS - Exemplo do nome em si, "Angico" revela um substantivo/árvore em estado profundo de ecologia. O que pensa sobre os índios, um dos problemas irreversíveis no Brasil?

 

RB - Angico é sim o nome de uma árvore muito encontrada no nordeste. É uma árvore de madeira resistente, por isso muito procurada, derrubada, saqueada como tudo nesse país, mas o nome do meu terceiro disco, o "Angico" é uma alusão à estância que meu avô possuía, onde eu sempre passava as férias da escola. Só depois de muitos anos é que fui saber que tinha esse nome, porque era grande a quantidade de angicos encontrada por lá.

 

Sobre os índios, sem dúvida nenhuma, um genocídio. Mas me preocupo com a situação do índio no mundo. Longe de ser militante nesse assunto, mas me incomodo muito com isso. Minha avó tinha sangue índio. Com a conquista do Oeste (essa busca insana pela posse) os índios americanos foram trucidados à vista e os índios do Brasil com uma boa entrada e depois em suaves prestações. Um crediário genocídico, se assim posso dizer. Pior do que os assassinatos covardes é a descaracterização de um povo original e que amava e entendia tudo ao seu redor. Krishnamurti dizia que o mundo foi dividido em oriente, ocidente, paises, regiões, por puro medo. Os índios nunca delimitaram nada, eles já estavam lá. Não sou cineasta, mas tenho vontade de ainda fazer um filme em que devolvo a real posição do índio (defensor de suas terras) e coloco a cavalaria no seu devido lugar, o de invasor. Sempre nos foi passado o contrário disso.

 

 

WS - É possível uma música-verdade extraída da experiência humana do ser em busca do amor?    

 

RB - A música é uma eterna dança sonora, rítmica entre o possível e o impossível. Tudo pode acontecer. Vinicius de Moraes dizia — quando lhe questionavam o que significava determinada passagem de uma de suas músicas — que era tudo mentirinha. Vinicius era um poeta passional demais. Queria viver sempre na linha vermelha da existência. Tinha uma mala cheia de experiência, então acredito que ele dizia isso ou porque não queria explicar ou porque aquilo já não fazia mais sentido, pois foi desbotado pelo tempo. Mais ou menos como um homem já com bastante idade tentar explicar como ele se sentia numa foto de quando tinha cinco anos de idade. Então o que sei dizer é que toda a matéria-prima da minha música é a verdade. Sempre no encalço da busca, como um cachorro correndo atrás de um osso amarrado a algo que corre mais do que ele. Quando faço uma canção, vivi aquilo, só que pinto, visto um pouco essa história. Uso os meus truques, mexo as minhas mãos, mas a verdade sempre estará lá, como vivência, como o real motivo dessa música existir.

 

 

WS - Quem Reynaldo Bessa convidaria para "uma viagem ao desconhecido" (Vladimir Maiakovski)?

 

RB - Já não estamos numa viagem ao desconhecido? Precisamos de outra? Isso já seria praticamente um presente grego. Sinceramente, não conheço essa passagem de Maiakovski, lamento, mas acho que já temos incógnitas demais.

 

 

WS - Por falar em geografias, a música tem a língua do sublime ou realmente as águas e as montanhas dividem povos e terras?

 

RB - Uma vez um poeta me disse que quando se mora entre as montanhas, tudo o que ele diz e faz volta para si mesmo, pois ricocheteia e assim o resto do mundo não toma conhecimento do que ele está fazendo (risos). Achei isso interessante, mas não concordei, pois acredito que a arte — música, poesia, etc. — sabe das fendas, voa alto ou existe além-matéria. Acredito que quando a mensagem é vital, encontrará sempre um destino certo e nunca haverá obstáculos pra isso. Ou mais, acho que primeiro nasce o destino dessa criação e depois é que nasce a criação. Os alimentos nascem da fome e não o contrário. Os maiores movimentos, como o Surrealismo, Dadaísmo, etc., aconteceram ao mesmo tempo em diversos lugares que até então não tinham nenhuma relação, nenhum contato. O que é isso? Acredito que os verdadeiros obstáculos são o ódio, a indiferença, o desdém pelo próximo, e mesmo esses, a arte encontrará sempre um jeitinho de burlá-los. O mundo vale a pena pelo insondável.

 

 

WS - O CD "O Som da Cabeça do Elefante" é estranho a partir do nome. O poeta Alberto Pimenta escreveu "os artistas mais ousados apresentam a floresta em cima da virgem ou a virgem em cima da floresta". Mais que metáforas, que sentido tem o idioma sonoro de "O Som da Cabeça do Elefante"?

 

RB - Oscar Wilde disse que um homem é sempre menos sincero quando fala de si mesmo. "Dê-lhe uma máscara e ele contará a verdade". Mas vamos lá. O que dizer da famigerada cabeça do elefante. Gosto desse título, gosto da sonoridade, gosto da estrutura, da construção, mas gosto ainda mais do que ele incita, do que propriamente o é. Explicar é limitar, cercear. A única coisa que digo sem titubear é que voltei pra casa com esse disco. Achei minha estrada, mas nem por isso vou caminhar por ela. Mas sei exatamente o seu lugar. Hoje não sei quem eu sou, mas sei quem não sou. Gosto da reação das pessoas quando se deparam com o titulo desse novo trabalho. Gosto de vê-las pronunciando. O significado está nos significados de cada um. Nasce um a cada dia. Agora, o título é uma alusão descarada ao meu lugar de origem, Mossoró que fica na cabeça do elefante. O Mapa do Rio Grande do Norte tem um formato de um elefante.

 

 

WS - A propósito de "Ismália", poema de Alphonsus de Guimaraens musicado por você, o que pensa sobre a poesia de João da Cruz e Sousa?

 

RB - Gosto dos simbolistas, e Cruz e Sousa é sem dúvida alguma o maior do Brasil. Se ele não tivesse existido, não deixaríamos de ter o Simbolismo, mas com certeza demoraria muito mais tempo pra nascer aqui. Delicio-me sempre que releio Missal e Broquéis. Acho que o que o matou realmente foi o racismo e não a tuberculose. Ele foi um Simbolista, mas ainda com alguns resquícios do romantismo, como: o culto à noite, a angústia do fim, o pessimismo, o satanismo. Tinha um estilo refinado, preocupava-se com a forma e carregava muito nas imagens e isso era muito forte também em Alphonsus de Guimaraens. Toda grande e bela arte terá sempre que nascer de muito sofrimento?

 

 

WS - Seu diálogo com a língua mostra um artista no rastro de uma poesia em "permanente hesitação entre som e sentido", a exemplo da fala de Paul Valéry?

 

RB - Valéry, Valéry, Valéry, que palavra boa de se pronunciar. O mundo não precisa de padres e médicos, precisamos sim é de mais poetas, os bons, é claro. É exatamente isso. Total hesitação entre som e sentido, meu deus, isso soa como deve soar o estalinho da fechadura do cofre no ouvido do assaltante no meio da noite.

 

 

WS - A música "Se Deus Quiser Falar Comigo" é uma provocação a Gilberto Gil ou a Novalis, quando escreve que a poesia é "a religião original da humanidade"?

 

RB - A idéia da letra surgiu após uma leitura de um dos contos de Voltaire que fala sobre um anjo que desce à terra, e solicita a um dos moradores, um relatório sobre o que era bom e ruim em sua cidade. Dependendo disso, ele iria ou não destruir a dita cidade. O morador, um homem simples, porem muito inteligente, questionou por que ele, já que um anjo tinha mais poderes pra isso, afinal de contas era um anjo? No que o anjo respondeu, sou anjo, por isso não entendo essa coisa de humano, então tem que ser alguém que entenda. Daí resolvi criar a letra partindo da idéia de que só o homem pode ser responsável por si mesmo, afora isso, nada tem autonomia para julgar seus vícios e suas virtudes. Nunca aceitei essa coisa platônica de céu e inferno. Maniqueísmo nunca foi o meu forte. Não acredito que Deus (infelizmente não tenho outra palavra para colocar no lugar) saiba o que significa depressão, fome, saudade. Se não sabe, não pode julgar. Ponto. Quando surgiu a idéia do título foi que resolvi provocar Gilberto Gil. Acho o Deus do Ministro, tremendamente afetado, burguês e vazio. Não acredito em nada que precise de oferendas em troca. Nada que precise de incenso, silêncio, imagens e tarará. Isso é baseado na posse, na barganha. Isso é uma coisa do próprio homem. A única coisa que concordo com Gil é quando no final da música ele diz: que tudo isso pode ser nada, nada do que podemos imaginar... acredito nisso. Acho que com essa frase Gil salvou a música e manteve o fã, tanto que faço uma provocação-homenagem. Continuo achando que Deus é que tem que entender o homem e não o contrário, por isso ele tem que descer na esfera do humano. Deus é complicado demais, mas confesso que sou menos indiferente a Deus do que às pessoas que tentam vender esse equivoco desbotado por séculos e séculos e séculos.

 

 

WS - Seu projeto "Com os dentes" apresenta um conteúdo explícito de poesia contemporânea brasileira. Que trem é esse (usando uma palavra-carruagem de Minas Gerais)?

 

RB - Meu pai era, o que hoje chamamos de vendedor ambulante, ou seja o caixeiro-viajante, então ele viajava sempre e deixava a sua ausência como sentinela. Quando voltava, passava boa parte do tempo gastando o dinheiro que ganhou nos botecos da vila. Me acostumei a esperá-lo e acho que até hoje, após muitos anos ainda continuo esperando-o. Paciência, vou chegar lá. Tentei negociar com a ausência e disso surgiu a paixão pelos livros muito cedo. Não quero parecer pedante, mas aos oito anos já lia Mark Twain, Daniel Dafoe, Cecília Meireles, Castro Alves, Gonçalves Dias, e mais uma pá de malucos. Acho que lemos para nos povoar. Firmemente decidi pela música, mas meu primeiro contato foi com a literatura, a poesia. Então quis sempre fazer algo que tivesse os dois, não música e letra, mas músicas e poemas e que não fossem meus, afora a música. Nunca rolava, pois muita gente faz esse tipo de projeto. Tem sempre alguém fazendo um disco de poesias musicadas, assim, não encontrava um motivo forte para tentar concretizar o meu desejo, pois não queria musicar Vinicius, Cecília Meireles, Florbela Espanca, Fernando Pessoa e tantos outros que já me soavam visitados demais. Essa idéia ia e depois voltava, assim, como uma recaída, e como toda recaída, voltava sempre mais forte. Até que percebi que o cenário da poesia, principalmente a brasileira, mudava radicalmente. Para melhor, é claro. Surgiam nomes com quem eu logo me identificava. Diziam a mesma coisa, só que de um ângulo totalmente diferente, jamais visitado. Era a hora? Mas eu ainda estava perdido, pois como transitava mais no meio musical e só lia os caras, não tinha o contato direto com eles, essas coisas chatas de liberação, papelada e terêrê. Eis que surge Wilmar Silva, poeta de uma grandeza humana sem precedentes e um dos poetas musicados no disco. Ele disse: aqui tem um, ali tem outro e vamos nós. Então gravei em duas noites em São Paulo um disco que anteriormente ia se chamar "Meio-a-meio", mas de última hora me veio a idéia de colocar "Com os dentes" trecho de um dos poemas de Fabrício Carpinejar (poeta também musicado no disco) que puxei para batizar um projeto que foi feito com afinco, paixão, sopros, sussurros e, principalmente, com mordidas. Onze músicas, onze poemas, onze poetas e apenas um destino.

 

 

WS - O que pensa sobre a música de "Sol Paulo" — lendo o encarte de Angico: "sun" é sol em inglês, mas pensando que a sua música tem uma atmosfera hereditária de Minas?

 

RB - É, nordestino diz, “SunPaulo” e nem sente. Depois fiz essa ligação com o sun de sol em inglês e essa coisa da busca do emigrante e do imigrante por um lugar ao sol e também dessa dificuldade de fazer sol em São Paulo. Eu penso em brasileiro. Esse povo paradoxal, melancólico e festivo, talvez festivo demais só pra esconder toda a melancolia. Há pedaços, miríades desse povo, dessa mistura, correndo em minhas veias de papel e aço, e por isso aonde chego sou compreendido. Em algumas partes mais, noutras menos. Uma vez um artista carioca ao terminar de ouvir uma de minhas músicas, disse "Você vai se dar muito bem em Minas. Tem algo de mineiro em sua música". Esse oráculo ainda não se concretizou, mas já começa a dar o ar de sua graça. E canto SolPaulo toda vez que piso num solo que ainda não havia pisado. E canto SolPaulo para esse solo. Ou seria "SoloPaulo"?

 

 

WS - Como foi ser gravado pelo grupo Ira! e o que isso mudou em sua vida de artista?

 

RB - No começo foi muito bacana. Realmente, muitas portas se abriram. Devido a isso, hoje sou sondado por grandes intérpretes, mas existe todo um jogo no meio. Coisas do Show Bussiness.

O Ira! É um grupo que surgiu nos anos oitenta, no bum do bom rock brasileiro e a que eu me apeguei muito. Aquele lance já meio underground deles me fascinava. Financeiramente, também foi uma coisa bacana, mas com o passar do tempo você sai da emoção e começa a perceber que isso são apenas conseqüências e que você precisa criar outras. Sabe aquela frase: quanto mais trabalho, mais sorte eu tenho? Mas o mais positivo disso tudo é que ficamos sabendo que os grandes nomes ainda apostam em artistas emergentes e que a qualidade ainda é um quesito importante.

 

 

WS - A música "Nenhuma Música", a exemplo de "Embarque", sendo a voz o instrumento, revelam um compositor na fotossíntese da memória, puxando o baiano de Jequié Waly Salomão. "A memória é uma ilha de edição"?

 

RB - Não conhecia essa expressão, mas é exatamente isso (Grande, Waly Salomão). Meu único compromisso com o presente e com o futuro é o de construir material para poder editá-lo no passado. Afora isso, não tenho nada a ver com eles. Não nasci pra ser sentinela do abismo. Sou um artista do pretérito, por isso me renovo continuamente. Estou sempre dando minhas escapadas para fuçar um passado alegre e doído, sincero e traiçoeiro. É o risco. Afinal de contas, a arte não vive de comodidades. O artista que acha que pode sair ileso disso é melhor desistir desde já. Temos toda a força-memória diante de nós e aí cortamos aqui, cortamos ali. Usamos a machadinha. Mas jamais podemos cortar no lugar errado.  "Nenhuma música" e "Embarque" são canções que estão sempre me dizendo quem eu sou de verdade. São os meu lamentos. O artista nu, de pés descalços e com catarro escorrendo, sem ligar a mínima para conceitos, padrões e tarará. Na maioria das vezes, a música é o que você tem, e não o que você faz. Numa dessas minhas escapadas diárias, quando encontro algo que me emociona, comparo isso, mais ou menos, a um colecionador de arte quando encontra um objeto que o fascina. A diferença é que ele guarda para si e eu canto logo em seguida.

 

 

WS - Para usar uma palavra acabada por João Cabral de Melo Neto, qual a inspiração de Reynaldo Bessa?

 

RB - Gosto muito de uma definição do escritor norte-americano Henry Miller, por quem sou fascinado: "Você não cria nada, tudo está pronto, você só dispara a capacidade de alinhar a sua mente com a do criador e aí você recebe o belo mais ou menos como um dial". Parece poético demais, fácil demais, mas é o que concebo hoje, talvez pela minha incapacidade de explicar essa coisa toda. Já passei por esse lance de transpiração 99%. Usei muito em canções que pareciam não querer nascer, mas muitas vezes me caíram coisas tão leves e simples como caem as gotas de chuva. Sem a menor força. E isso não me parecia nada com 1%. Longe disso. Pode ser que depois de um grande esforço você dispare algum mecanismo e logo em seguida algo te é ofertado de maneira mais leve, pode ser. Mas isso não seria maniqueísmo psicológico, ou biológico? Sei não. Prefiro a incógnita. O que sei é que tenho muitas inspirações, ou digamos assim, muitos momentos de alinhamento com a mente do criador (não leia-se aqui Deus) ou a definição de João Cabral, mas pra não deixar de responder, sem dúvida nenhuma, tudo o que eu fizer na música, na poesia, ou sei lá mais em o que, terá sempre a ver com "o arrastar de chinelo de minha mãe de madrugada". Esse som, até hoje me mantém atento e forte.

 

 

WS - Se pudesse assinar uma "Música Popular Brasileira" do imaginário nacional, sobre o nome de qual compositor você escreveria "Reynaldo Bessa"?

 

RB - Não assinaria nada concebido por outrem. Essa é a história dele. Talvez tenhamos uma única oportunidade de escrever nossa própria história. Será isso importante? E isso é nosso mínimo. É mais ou menos como um amigo seu que visita uma cidade que você muito admira e na volta, tenta te contar as impressões obtidas. Paris, por exemplo, com suas luzes, seus cafés, seus museus e suas histórias. Você pode até ouvir atento, mas jamais chegará perto do ele sentiu. Cada viagem é uma viagem. Carrego sempre comigo o pensamento que a grande canção, a obra-prima ainda não foi feita. Esse é o meu verdadeiro norte. Minha diretriz. Hoje não, mas quando comecei minha carreira era fascinado por alguns compositores, principalmente os letristas, então se você quer saber uma canção por qual tenho um grande fascínio, é "Tudo Outra Vez", de Antônio Carlos Belchior, mas têm muitas outras.

 

 

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Reynaldo Bessa (Mossoró-RN). Cantor, compositor, violonista. Morou em Fortaleza, no Ceará, e vive em São Paulo desde 1989. Seu primeiro CD, Outros sóis, foi lançado em 1994, de forma independente. Em 1996, lançou o CD O beco das frutas, pela Alpha Music. A segunda música deste trabalho — "Gente" — virou vídeo-clip, que foi exibido pela MTV no Programa Território Nacional, entre outras emissoras. Em 2000, gravou o terceiro CD, Angico, também pelo selo Outro Sóis. Uma das canções do CD, "De dentro pra Flora", foi vencedora de diversos festivais em várias cidades do país, como Mauá (SP), Cruzília (MG), Maringá (PR), Tangará da Serra (MT), entre outras. Em 2007, lança o CD O som da cabeça do elefante. Mais informações em seu site oficial: Reynaldo Bessa.