Promessas de Campanha

......Não poderia começar esta coluna, ou isso seria de qualquer forma desonroso, se não mencionasse uma observação muito importante: "Existe uma inversão de valores muito difundida segundo a qual a introdução, o instrumental crítico, a bibliografia são usados como cortina de fumaça para esconder aquilo que o texto tem a dizer e que só pode dizer se o deixarmos falar sem intermediários que pretendam saber mais do que ele". Italo Calvino, num texto chamado "Por que ler os clássicos?".
......Eu me sentiria subitamente traidor se, acreditando no que Calvino disse, fizesse o contrário. Portanto, esta página, seríssima e erudita, vai tratar a literatura e as artes de um modo ligeiramente diverso. Teremos duas partes fixas: uma se chama Thesaurus, e trará a cada mês a definição para termos literários e artísticos (começo, é claro, pela letra A, e seguirei o alfabeto); a outra é a Folha Elétrica, um noticiário, com os fatos mais importantes da literatura.
......O resto será mistério e surpresa. Vocês, caríssimos leitores, serão certamente apresentados a novos escritores & vão reatar a amizade com os antigos.
......Neste mês de março, começamos apenas apontando algumas coisas.


Oyez! Oyez!

......(1) A nossa história (a desta coluna nova em folha e a de nós, leitores do século XXI) poderia começar em algum estranho momento bem próximo do século XIX na cabeça de um alemão que, diante do frio e do tédio inescapáveis, tivesse a idéia de disciplinar um método analítico para a literatura, uma arte nobre. Desse dia fantasioso — mas não de todo inexistente — poderíamos datar o início da medicina legal para um cadáver em particular: a literatura.
......(2) Em meados do século passado, em São Paulo, foram adotadas duas filhas bastardas da inteligência européia: uma, positivista, que exigiu, para a literatura ser levada a sério, que se transformasse, de algum modo inesperado, de arte em ciência; outra, teórica, que a recobriu de todo tipo de obstáculo. À junção das duas proposições se deu o nome de teoria literária.
......(3) O espectro da teoria avança sobre a prática: escritores eram ensinados na escola pelo método acima descrito, e, assim, a arte de comentar os textos que admiravam desapareceu. Começaram a construir engenhocas verbais para justificar cada passo que se dava, ao mesmo tempo em que se fornecia uma teoria para confrontar os teóricos (similia similibus curantur?), com palavras tão ou mais estranhas ao vocabulário humano do que as de seus confrades acadêmicos.
......(4) Como resultado, progressiva apatia do público em relação ao que os artistas e críticos e teóricos etc. chamam "alta literatura" (ver Thesaurus). Faculdades de letras e círculos de poetas e artistas passam à autofagia: inventam suas coisas e as consomem eles mesmos. São gerados os tipos "Sorbonne" de intelectual, os da velha sátira de Rabelais. Jornais e periódicos literários descrevem a crise da crítica, do pensamento, da crise, entre outras finesses. Todos discutem furiosamente para provar a tolice alheia. Há um impasse no mundo das artes.
......(5) Giulio Carlo Argan argumentava que esse é o fim da arte, porque, afinal de contas, estamos numa era industrial (ou de serviços) e a ligação da arte era com o artesanato, que sucumbiu aos monstros de Ford. Em parte ele tinha razão; mas, se se pensar bem, pode-se perceber que aquilo era apenas mais um marxismo (os meios de produção determinam etc.), e eu vou apostar num anacronismo, na origem divina da arte. E, é claro, no público. No doce "leitor hipócrita", descoberto por Baudelaire.


De la poésie avant toute chose.

..........Poesia não é senão ficção retórica posta em música. DANTE ALIGHIERI

..........Poesia é um tipo de matemática inspirada. EZRA POUND

..........Poesia é uma arte, porque tem leis. ISIDORO DE SEVILHA

..........Poesia é o que se perde na tradução. ROBERT FROST

..........Poesia: Criação Rítmica de Beleza. EDGAR ALLAN POE

..........Prosa — palavras em sua melhor ordem;
..........Poesia — as melhores palavras em sua melhor ordem. COLERIDGE

......Talvez ninguém possa ser poeta, ou sequer apreciar poesia, sem que seja meio demente. THOMAS BABINGTON, LORD MACAULAY

......Definições. Talvez Lord Macaulay estivesse certo a respeito do "meio demente": o que faz com que alguém desista da comunicação pura e simples para adotar estranhos padrões em compor grupos de palavras? E o que diremos de quem lê essas coisas? Vejamos.
......É possível concordar que as artes desempenham um papel importante em nossas vidas se pudermos perceber como tornam nossa percepção e inteligência mais agudas; como oferecem um uso do tempo menos pragmático; como expandem nossas opiniões e nossa capacidade de entender diferença; etc. Se concordamos com Isidoro de Sevilha, definimos poesia como uma arte.
......Como a poesia é um tipo bastante elaborado de linguagem, quase um código de excelências de uma língua, provavelmente contém muitas possibilidades de leitura. Não implico com isso um paupérrimo laissez faire, laissez passer em poesia. Estou apenas dizendo que não existe um milagre chamado "verdade" numa leitura interessada de um poema. Leitura interessada: quando você não está só flanando gentilmente pelas páginas de um livro. Você está tentando chegar ao cerne do pensamento instigado pelas linhas (espero) engenhosas. Em poesia, ou, em arte, pensamento é forma.


Exemplo

......Posso exemplificar de um modo mui agradável, com uma pequena história ilustrativa à maneira de "era uma vez".
......Quando eu estava na faculdade, aconteceu de alguns colegas meus arranjarem uma visita da poeta Orides Fontela para uma leitura de poemas e posterior discussão com um monte de graduandos com cadernetas ansiosas nas mãos. A Sra. Fontela não estava acostumada à paparicação literária, pois, apesar de ter publicado alguns livros muito meritórios, e durante anos, ainda precisava sobreviver com uma aposentadoria simplória e levar uma vida de muito tormento.
......Pois bem: deslumbrada com a formidável audiência de quase uma centena de pessoas jovens apinhadas para ouvi-la, a Sra. Fontela se sentiu muito à vontade. Um professor, solícito e empenhado, fez a apresentação e começou com uma pergunta inevitável: ele perguntou qual era o processo de trabalho da sra. Fontela. E ela respondeu:

......— Trabalho? Você acha que se eu gostasse de trabalho estaria escrevendo poesia?

......Ela era famosa por esse tipo de dureza. Digamos que a maneira de escrever de Nabokov, por exemplo, permitia aproximações com algum tipo de coisa regular, pois ele acordava e tinha o dia esquematizado à frente de uma máquina de escrever: às seis, café da manhã; às sete e meia começamos a escrever; meio-dia, pausa para o almoço, etc.
......Mas nós não diríamos, creio eu, que ele estava batendo ponto.
......Para Orides Fontela, o trabalho fora uma angústia diária, portanto, sua poesia não era trabalho, mas possuía uma dimensão íntima e filosófica, heraclítica.

 

FALA

Falo de agrestes
pássaros......... de sóis
que não se apagam
de inamovíveis
pedras

de sangue
vivo ........de estrelas
que não cessam.

Falo do que impede
o sono.

(de Teia, Geração Editorial)


Poesia hoje

......Muito maliciosamente, se diz que há mais críticos do que poetas e mais poetas do que leitores de poesia; além disso, se diz também que um dia chegaremos ao ponto de ter mais editores do que livros. Mas isso, como eu afirmei, é o que diz a malícia. Vejam, mais ou menos, o que consta no Registrum, de Hugo de Trimberg, (1280):

 

Pra ser rico a valer,
........eu não viverei do saber:
aqui não se paga o lavor
........e a arte não tem mais valor.
Hoje, Platão, o sutil,
........seria o mendigo mais vil;
Virgílio e sua Musa
........partilhariam uma blusa; Homero teria sossego
........em crises de câmbio e emprego?
O poeta, aqui, come apenas o vento
........e deita de noite ao relento:
Os ricos, palermas cevados,
........não manjam poesia, estou errado?
 

......A poesia provavelmente foi uma coisa importante para sociedades do passado. Nós sabemos que moleques gregos de doze anos que se considerassem bem educados tinham que conhecer um bom punhado de versos da Odisséia de cor; na corte espanhola do século dezessete seria uma vergonha não entender um intrincado poema de Góngora; e Confúcio, sobre as Odes: "Por que você não estuda as Odes? Elas vão fazê-lo crescer, vão alimentar seu pensamento, ensinar como fazer amigos, mostrar como se indignar, e vão ajudar a lembrar os nomes de muitos pássaros, animais, plantas e árvores".
......O fato é: não concordo precisamente com a falência da poesia, embora a expressão usada por Ezra Pound em Hugh Selwyn Mauberley, "the dead art of poetry", deva ser considerada com muita atenção. Nos próximos meses, teremos a oportunidade de ler autores vivos, com obras igualmente vivas.


Não mandar as coisas acontecerem; deixar que aconteçam.

......Título edificante. Significa o seguinte: decreta-se a morte do verso, alguém faz um livro inteiro de versos vivos. Decreta-se a morte da métrica regular, ela ressurge num belo livro. Decreta-se que a poesia épica acabou no século dezesseis, Derek Walcott escreve Omeros no fim do século vinte. Define-se o que é o verso, alguém faz o contrário, e é verso.
......Cada caso merece verificação específica, pois a generalidade destrói a precisão e mesmo o amor à variedade, que é o amor da arte.

 

chamaeleonte@yahoo.com