*

 

Aquela reiterada partida

várias vezes simulada pelos trens

move-se sem prumo na memória

 

e é minha a mão assassina

que esmaga o coração

como o rastro sobre a neve.

 

 

 

 

 

 

*

 

Por anos fui

maçã degolada na mesa,

                                     

bagaço quase maduro.

 

Avessa à filiação,

encarno a contradição dos camaleões

                                     

embora as raízes

me firam como farpas.

 

 

 

 

 

 

REFÉNS

 

Na morsa

onde ninguém me procurava

fiei as vértebras.

 

Desde então levo comigo

esses ossos

no encavo do verbo,

e assim fazendo

desprega-se a voz

como planisfério aberto.

 

 

 

 

 

 

*

Disse que tinha olhos tristes.

Mas ficou mudo

quando viu meu coração

sobre a neve.

 

 

 

 

 

 

*

Cruzamos paisagens

como se volta

a uma lembrança

que não se quer lembrar.

                                     

Na foz da galeria

nos é dada

a mesma montanha

e outra face de nós mesmos:

estrangeiros

e já tão distantes

do instinto da língua.

 

 

 

 

 

 

*

Pegar a curva

que entrega a fronteira

além do ponto final;

 

alguma bagagem

para explicar a hesitação

da língua engessada

                           

           e partir no rastro

dos peixes devorados pelo esqualo

 

 

 

 

 

 

*

uso uma língua

de respiração incerta,

pois não percorre

  nem a medula

  nem a torção

                      do verbo

 

: já não sabe amputar os rostos

ainda vivos nos retratos

e deserta em mim a voz

 

 

 

[Do livro A morsa, no prelo]

 

 

 

 

 

 

LAPSO

 

Ela sempre foi, para mim, aquela mulher sobre os sessenta, sem grandes traumas e sem sombras no passado, exceto nos dias em que precipitavam-lhe as avalanches da infância, os desabamentos de neve e gelo que a seqüestravam. Os olhos permaneciam imóveis, sem bater os cílios, embora cavassem no tempo, quase a querer alertar sobre a tragédia iminente. Ficavam engessados pelo pânico que invadira outrora o povoado e todos aqueles que, raspando na neve à procura de algum sobrevivente, viram seus dedos se tornarem roxos de frio. A neve, dura como pedra, na qual espargiu-se o sangue a manchar sua inocência.

Logo, pouco a pouco, os olhos reagiam à pulsação normal dos minutos e ao invólucro veludo da pálpebra, como uma cortina que fecha o mundo dentro de um quarto.

 

 

 

 

A METAMORFOSE

 

Vi meu corpo tornar-se côncavo, virar pelo avesso as partes cheias.

Aos poucos, assisti à regressão das cadeiras, o corpo sem amparos e sem margens concretas onde um futuro pudesse germinar. 

Vi meu rosto sugar-se, enquanto sua boca fartava-se de palavras suculentas. Ela fez da sua boca uma igreja enfeitada de detalhes, entalhes barrocos gravados sobre meu corpo que minguava.

As incisões tinham o timbre da montanha e carregavam solidões e pedras morro abaixo, rolando.

E eu, febril, sangrando dentro das minhas calças e das minhas culpas.

 

 

 

 

[Fragmentos do livro de contos A neve ilícita (São Paulo: Nankin Editorial, 2006)]

 

 

 
 
 

DESTINO

 

El encuentro fue antes

de los frutos

 

antes que se preparasen

malas de abril,

nacimientos diarios

 

océano tatuado.

 

El amor hirió los amaneceres

con gestos de tortuga.

 

 

 

 

 

 

COMPAÑÍA

 

la caligrafía desnuda el cuerpo

a pesar de su ausencia

 

antes del regreso

los asaltos constantes

y manos proscritas

al deseo

 

escondrijo donde esperan

los amantes

 

 

 

 

 

 

CONSTATACIÓN

 

Me mudé para tu ser

con la fantasía perseguida.

 

Llegó contigo

la palabra    la intención

     el vértigo anterior al vértigo

 

aquella expresión de mi madre

 

la isla incendiada

con los amores que forjaron

este presente

 

 

 

 

MI HERMANO

 

Para Marina Tvétaieva

 

Tengo un hermano

femenino en la piel.

Nació con el mapa

de los éxodos.

 

No conozco sus pasos       

inauditos.

Ni sus gritos.

Apenas conozco

su retrato.

                           

Éste que calla la lluvia.

Éste que mueve mi soledad.

 

 

 

[Do livro Días emigrantes y otros poemas (Belo Horizonte: Mazza Edições, 2004]

 

 

 

 

 

BABEL

 

Escuto o pulsar incisivo

o tropeçar             

de signos,

 

as escoriações

que hospedamos em nós,

 

- as sirenas foiçando a cidade -

 

enquanto se superpõem

à estase

dos respiros.

 

 

 

 

PONT DE LA MACHINE

 

Após a chuva

seus cabelos viraram fogo.

Não sei porque

vivi uma longa noite

aberta sobre suas alucinações.

 

 

 

 

 

 

ESPINHO

        

Se, como você diz,

ninguém é mais flor do que eu,

por que minhas pétalas

são sílabas

que se tornam palavras

úlceras entre as mãos

ao invés de imitar

o lento abrir-se

de uma rosa?

 

 

 

 

 

 

LES MOTS

 

         já não consigo

contê-las

então resvalam,

gota após gota,

precipitando no fundo,

de onde nos espreitam,

felinas,

 

até que recuperemos

a voz

 

 

 

 

 

 

ABRIL

 

A partir de hoje

tenho três meses

para as revoluções.

Dormirei comigo

novamente,

o açafrão nas costelas.

Depois sairei ao dia

cumprindo a alegoria do sol:

 

a cidade será enfim 

um espelho de púrpura

 

 

 

 

(imagens ©aleksandra)

 

 

 

 

 

  

 

Prisca Agustoni nasceu em 1975, em Lugano, na região suíça de fala italiana. Morou em Genebra (Suíça) por oito anos, onde se formou em Letras Hispânicas e Filosofia, e onde obteve o mestrado em Gender Studies. Nesta cidade, a autora integrou o grupo de teatro de língua italiana, "Il Ghiribizzo", apresentando peças de Pasolini e do futurismo italiano, assim como a dramatização do "Purgatório", de Dante. Organizou eventos, projeções de filmes e encontros literários com escritores latino-americanos no espaço cultural hispânico da cidade. Em razão de um plurilinguismo pessoal, a autora escreve e traduz em vários idiomas, quais sejam: italiano, francês, espanhol e português. Reside no Brasil, onde se doutorou em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas, de Belo Horizonte. No Brasil, publicou os livros de poemas Inventário de vozes (2001), Irmãs de feno (2002) e Días emigrantes y otros poemas (2004), todos pela Mazza Edições, de Belo Horizonte. Em 2006, publicou o livro de contos A neve ilícita, uma coedição Funalfa / Nankin Editora. Publicou poemas, ensaios e traduções em várias revistas literárias do país (Cacto, Babel, Suplemento Literário de Minas Gerais, A Cigarra, Jandira, Ato, Oroboro, Sibila). Assim como resenhas, poemas e traduções em revistas da Itália (L'immaginazione, Semicerchio, Ricerca Recherche Research, El Ghibli), da Suíça (Bloc Notes, Feuxcroisés, Bulletin Hispánico), e de Portugal (revista Saudade, revista Sítio). Alguns dos seus poemas foram escolhidos, em 2002, para representar sua região lingüística na feira cultural internacional EXPO 02 na Suíça. A autora também escreve contos infanto-juvenis, tendo publicado a Coleção Bilbeli (14 contos para a alfabetização), A menina do guarda-chuva invisível (2002), Histórias de longeperto (2004) e O colecionador de pedras (2006).