A CIDADE PROIBIDA

 

 

Do derradeiro pântano

emerge a cidade.

             Luiz Ruffato

 

E a cidade? a cidade? a cidade?

confusa geografia a me cuspir...

            Whisner Fraga

 

O homem em estranho ritual invade o breve espaço de minha visão como um bólido. E eu não sei se ele conhece Mozart ou leu Machado de Assis. Mas noto que há uma sombra que o acompanha.  Há em seus passos um grande mistério, semelhante à tristeza que percebi na vida daquela menina de Ituiutaba que eu conheci numa madrugada no Beirute.

Brasília chegou cedo em sua vida. Eu soube. Disse-me um sujeito que bebia ao meu lado. Ainda em tenra idade, veio da Paraíba com os pais que chegaram ao Planalto Central naquela tarde seca de um setembro distante. A cidade ainda buscava-se em meio aos redemoinhos de poeira, os "lacerdinhas", que dominavam o horizonte da Capital em obras.

Aquele homem está ali, em-si-mesmo, nem tão superior nem humilhado, mas entregue às suas licenciosas indagações. Parece homiziado, atravessando a cidade de uma asa à outra, a cidade que se abre de Norte a Sul (como um pássaro em solene e interminável vôo) e que os seus ajudaram a construir. E sob a luz do sol que lança afoita e livre sobre os edifícios monótonos da Esplanada dos Ministérios seu indisfarçável lençol de claridade que quase cega, eu o vejo mergulhando, pressuroso, a sua enorme e desengonçada ossatura sobre o desnudo canteiro central, como quem carrega um crocodilo nas costas.

Izolino respira com dificuldade o ar seco dessa época do ano e vai regurgitando sua fugidia esperança. Atravessa as superquadras do Plano Piloto num balé desconcertante, em muda órbita, qual Aracne em impulsos projetados na solidão de sua teia. 

Quando sentiu o tédio pela primeira vez no meio da cidade que o viu (de)crescer?

Na escuridão dos primeiros tempos — sem parentes, sem vizinhos, sem esquinas e sem lazer, ninguém o notara — e agora petrificado em sua monolítica condição, risca uma diagonal pelo gramado em frente ao Congresso Nacional e torna remota e improvável sua estada no mundo.

 Está desesperado? Perdeu a bolsa e os sonhos? Veio ver o pôr-do-sol atrás do Lago Sul? Sem demora, o homem viaja sem rumo, cortando a cidade que ele viu emergir tímida e expandir-se desordenada em meio aos redemoinhos de poeira vermelha. Diante do espelho d’água das torres gêmeas da Câmara e do Senado, uma parada, qual narciso às avessas, para dialogar com a água malcheirosa, sobre as quais circula o que sobrou da enésima geração de gansos presenteados pela rainha da Inglaterra na inauguração da cidade. Até os monumentos da Praça dos Três Poderes pesavam-lhe como um túmulo em que guardava seus dias, cidade impessoal, depositando-lhe cansaços, instigando-lhe padrões que repetiu aleatório e sorumbático nesses anos todos.

Continuou a caminhar e era imprescindível essa corrida. Contra quem? Contra o quê? A que (des)lugares desejava chegar, se pensava em alguma coisa a não ser em sua inconclusa situação de habitante de lugar algum? Do outro lado, o mundo: os motoristas de táxi enrolando conversas, as pombas cagando sobre a estátua da Justiça (antológico e inerte bloco esculpido, com seus olhos vendados para não enxergar o óbvio), um jardim de pedras e ausências compondo o quadrilátero em que o Legislativo, o Judiciário e o Executivo delineiam seus círculos de vício e ócio.

O sonho tinha suas fronteiras e ele não ousou transpô-las. A cidade o agredia e de suas vísceras psicopáticas de medo e lendas, ele via o passado, o presente e o futuro sendo engolidos pela noite interior, liquefeitos pela bile irresistível.

Longe está o tempo em que a desconfiança dos meganhas o importunava, obrigando-o a esconder as leituras de Marx e Gramsci. Foi o velho padre Mamede que deu a idéia da passagem secreta que dava acesso a um cubículo no fundo da oficina de automóveis na Cidade Livre, onde albergava sua literatura e seus sobressaltos. Hoje a luta era outra, contra inimigos invisíveis carunchando sua alma.

A corrupção, a solidão do poder, a transitoriedade das pessoas, a empáfia da classe média, o verniz dos poderosos, a indigência dos puxa-sacos, a miséria da periferia, as invasões, a grilagem em terras públicas: síndrome da cidade adulterada, que expulsou os que a levantaram, estupro aos sonhos dos criadores — tudo isso o comovia e inquietava: Brasília aos quarenta anos, de rugas já feita, cuspiu os homens, babélica realidade, sodomizada pelas cópulas de suas cúpulas num tempo estranho em que tentava fugir de seus miasmas, de suas CPIs arquivadas, de seus propinodutos por onde sumiam a verba e a esperança.

Passou as mãos nos cabelos cor de prata, desceu-as pelas duas faces travestidas de dor — ó, como a (c)idade cravou-lhe estranhas esculturas em seu rosto —, roçou ainda os pêlos encanecidos do peito, expandiu os pulmões, e como se quisesse absorver o impossível, foi se repetindo em gestos desalinhados, em expressões compulsivas, como quem foge de algo muito grave, num ritual de desespero e desatino, estrupícios se cumprindo em sua vida.

Em casa teria deixado a família (que família? — a velha Sinhana com tantos janeiros nas costas colecionando folhinhas do Sagrado Coração de Jesus e esperando a sorte grande que não vem? o Jairinho roendo as unhas? o cunhado chegando sábado para dormir o fim de semana e comer às suas custas? o vizinho crente impingindo-lhe as pechas de ímpio?) antes de anunciar seu desespero em praça pública, a desilusão com o emprego, um chega-pra-lá em tudo, um chute no azar. Vomitava a sensaboria burocrática das ações repetitivas, dos despachos sempre-os-mesmos, da burrice de alguns colegas satisfeitos com sua função gratificada, sem perceber a inutilidade social que nasce da subserviência. Não! O ricochete de um rotundo não! ressonava dentro dele, prestes a estourar, erupção vulcânica de anos de imposto comedimento, agora transformados em vindima alucinatória. Estava cansado da rotina, de ser reprodutor mal-remunerado de pareceres e expedientes redundantes na bovina e sem perspectiva ambiência funcional. A cidade administrativa: Washington desdentada; Londres na terceira idade. Tudo era uma prisão, um desencanto, uma escolha do destino, que lhe impunham amargo ritual ao longo dos anos, agora transferido para o território do desgosto íntimo, lá onde se concentram todas os recalques, cismas, frustrações, vinganças e autoflagelo espiritual.

A cidade não (o) tolerava mais. Um mútuo ressentimento parecia construir um muro de retórica antipatia, como uma força centrífuga dilatando o sofrimento e era preciso correr, gritar, mas tudo parecia com uma serpente a morder o próprio rabo. 

Bebeu ainda um pouco mais do ar quase rarefeito daquela hora, vizinha da noite, em que  a decisão amadurecida só precisava encontrar a praça em que o golpe de misericórdia fosse a exortação mais consciente do acerto de contas. No horizonte, circundado por uma névoa seca (nessa época de baixa umidade do ar em Brasília, as partículas de poeira precipitam-se, formando um cinturão róseo-pardacento a envolver a cidade) ele infiltrava seus olhos, com a vontade de perder-se para nunca mais no infinito penumbroso. Feria-se com o mundo à sua volta, com a realidade pungente e tudo o mais em derredor não lhe apetecia.

Os carros oficiais circulam imune ao seu tormento ambulante, cadáver antecipado.

Já não dava conta de si, perdendo-se no emaranhado de outros automóveis que circulavam já, à farta, por aquelas bandas, confuso, dilacerado, ziguezagueando sem rumo, acompanhado de sua solidão hereditária. De um veículo chapa branca que passava por aquele quadrilátero da burocracia, que um dia foi palco do movimento das Diretas já e ressonância das vozes pelo impeachment,  ele percebeu a vinheta de O Guarani, de Carlos Gomes abrindo a chatíssima Voz do Brasil. Dividia com o tempo presente, com os homens presentes, com a vida presente a sua pressa: horário em que nas repartições públicas, nos ministérios, nas autarquias e outros órgãos o funcionalismo voltava de mais um dia de serviço (quem sabe, a maioria não se sentia como ele: sem-lugar, assalariado, desidioso, apequenado pelas circunstâncias, habitante de um dos mil pombais iluminados que são os blocos residenciais iguaizinhos espalhados pelas superquadras) e ele nem se dava conta de que na noite que acabava de chegar, o fluxo vertiginoso de faróis a empalidecer o asfalto refletia menos que sua dor íntima. A noite havia se inaugurado nele há mais de três décadas e só agora se deu conta do black-out.

O homem que fugia. A terra dos cansaços. Do canibalismo funcional. Terreno movediço aquele, onde a satisfação durava menos que o desejo e o que lhe movia era o incompreensível, vindo do escuro e fundo universo de suas dúvidas. Teseu e Minotauro redivivos se digladiando. Sísifo se repetindo. O fígado comido pelo abutre renovando a sua dura e prometéica lida. A permanente contingência de labirinto e fossa. Condenação kafkiana em tribunal interior.  Despenhadeiro psicológico tornando forte a frágil relação com o mundo. No fundo, a sepultura dos sonhos. Contemplar lá atrás o mundo latejando e ele convulso sobre campos desidratados, o feudo da solidão.

Estava farto do homem politicamente encubado em si. Esses anos todos, teria pensado e não coube em si de tanta insatisfação nesse acordar (tardio?). Uma leitoa solta em plena cidade proibida. Idéias madurando na sua cabeça.  A vida com algemas não tinha sentido. O tédio dos domingos chuvosos. Da macarronada e do frango assado comprado na padaria da 103 Sul. Do holerite magro todo dia cinco: odisséia financeira para suportar o mês.  Do câncer que não veio. Da vida carimbada pelo diabo. Da extorsiva mediocridade. Da cooptadora alienação.

Só tive tempo vê-lo rasgando a noite, como um lâmina, mergulhando no ocaso. E depois ouvi o grito surdo de um estopim metálico depois que Izolino embrenhou-se derradeiro pelo cerrado em direção à Vila Planalto, já engolido por um silêncio trevoso e sem testemunhas. Meu copo já estava vazio pela quarta vez e o sujeito que bebia ao meu lado desapareceu.

Durante vários dias vasculhei os jornais e nada encontrei.

 

 

A MARCA

 

 

Depois fica a marca. Depois fica o medo.

E depois fica a vida com seus dedos quebrados

tateando um mapa na tentativa de esquecer.

         Álvaro Alves de Faria

 

 

Lembrou-se de um sábado escuro e malfazejo em que a vida tinha lhe preparado uma triste recepção.

Naquele dia, havia recebido um telegrama: "Seu pai morreu de madrugada. Venha logo. Enterro amanhã, às quatro horas". Curta e grossa, a mensagem da mãe não tinha o menor sinal de dor, como se cumprisse um dever social como outro qualquer. A viuvez parecia um prêmio.

O caminho entre a Capital e Santa Rita não passava de trezentos quilômetros, mas a agonia o prolongava a um deserto intransponível e poeirento. O percurso delineava uma paranóia: W parecia não ver terminada a película da vida que rodava em sua cabeça. Seu rosto vagava e invadia o horizonte com olhar perplexo.

A cada lembrança, era o susto na descoberta do filho que poderia ter sido e não foi: a vida em si mesma mostrando o lado improvável, o que deixou de ser e que agora era irrecuperável. "É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã". A música de Renato Russo guilhotinava sua consciência. O trajeto multiplicava-se ao influxo de migalhas de remorsos interiores.

A varanda do sobrado (estaria cheia de gente velando o corpo do Seo Onofre?) não teria mais as tardes de crochê e conversas em que a mãe falava sozinha e o pai, sempre ausente com seu silêncio e suas fugas psicológicas, fazia ouvidos moucos. As poucas lembranças do pai levam-no à sapataria, onde via uma bíblia sempre fechada na prateleira dos sapatos consertados e o pai dando ordens e nenhum carinho. Só abria a boca para reclamar de W e nunca um agrado ou um aperto de mão (quando muito, um sorriso comercial); nunca um abraço a circular-lhe os ombros ou um beijo na face. Sempre uma distância e um olhar difuso, em que o pai parecia gravitar em outro mundo.

A única companhia durante anos naquela infância insossa era a do papagaio do verdureiro Eusébio, que fugia do quintal lindeiro para a laranjeira perto do tanque dos fundos. Lá, W conversava a perder horas com a pequena criaturinha, ensaiando-lhe pequenas melodias que ele depois repetia em alto e bom som. Esse papagaio parece uma maritaca, tira isso daqui, menino, me deixa em paz. 

A sua alegria estava fora de casa. Longe da mãe apagada, do pai omisso. De Corina, a empregada autoritária, mesmo que de mau humor, ainda prestava-lhe alguma atenção. Da tia doente da cabeça, que só tinha seu pai pra cuidar. Do irmão que não quis saber de nada e vive pelos cantos. Da mais velha que casou e foi viver em São Paulo.

O quintal da casa da tia Honorina, no outro lado da cidade, que ia até a beira do rio, de onde contemplava as canoas dos tiradores da areia, parecia dar-lhe lições de despedida. Lá ele gostava de ficar, nas raras vezes em que a mãe ia visitar a irmã mais velha.  Partir estava dentro dele. Coração partido, corpo apartado, muitas vezes sentiu vontade de mergulhar no rio Pomba e deixar que as águas o levassem leito abaixo: Vista Alegre, Santo Antônio de Pádua, São Fidélis... o Atlântico. A imensidão o atraía e preferia perder-se no mar continental a viver enclausurado e ocioso nos contrafortes de sua casa. Era a oportunidade de fazer o que queria, como naquela manhã de 17 de outubro, já adolescente e leitor compulsivo,  em que sonhou ir ao Père Lachaise para visitar o túmulo de Baudelaire, mas teve que se contentar em acompanhar o amigo depressivo ao cemitério de Leopoldina, onde se sentaram na lápide de Augusto dos Anjos e declamaram poemas. Paris parecia longe. Mas, se hoje mergulhasse naquelas águas no fim do quintal sem as amoreiras de antigamente (ah, nem o quintal era o mesmo: sem o chiqueiro, a casinha do Rex, os varais em que Donana todas as tardes pendurava as roupas para quarar, o canteiro de cebolinhas, onde urinava com preguiça de ir até o banheiro, os pedaços de pneu velho em que a mãe plantava rosas miúdas, o mofo e as heras cobrindo os muros...), ainda seria a hora,  poderia pelo menos duelar com seu destino imposto e sair de braçadas contra ele.

O cortejo já estava perto da Ponte Velha, quando W desceu do ônibus perto do Clube do Remo. A maleta com poucos pertences parecia vacilar em suas mãos trêmulas, ele estacado ali, olhando como um estranho, e não sendo visto, o séqüito passando silencioso, aquelas cabeças sob guarda-chuvas solenes protegendo-se do sol da tarde tórrida. O som dos passos entreverados dos acompanhantes parecia impingir-lhe uma melodia surda. A sensação de impotência caminha com ele no breve e angustiante trajeto entre a calçada e o centro da rua, onde o caixão avança em marcha fúnebre, conduzido por umas pessoas desconhecidas. (W tinha ojeriza a papa-defuntos, necrológios, panegíricos, orações à beira do túmulo). Ainda não tinha sido reconhecido. A mãe enlutada, enfeixada por uma roupa escura, apertava o lenço contra o nariz, limpava os olhos que marejavam debaixo do véu. Contemplava, de braços dados com a empregada de três décadas, o carrinho da funerária com seus pneus que dançavam sobre os paralelepípedos. Não tinha visto o filho. Decerto, em seus pensamentos, amargava a possível ausência. Enquanto isso, cenas turbilhonavam em sua cabeça que procurava alcançar sobre as outras um ponto de fuga. Lembrou-se das poucas vezes em que ele e o pai foram juntos à matinê no Cine Machado assistir às incontáveis reprises de Peter Pan, seu primeiro e inesquecível filme. Depois, o carrinho de pipoca numa das pontas da praça, a volta para a casa, descendo a rua da Estação até a fábrica velha, depois subindo a rua do Senai até o fim. Não se recorda de nada mais ameno, a não ser as ranhetices de dona Aurora, as cobranças de seu pai, a proibição de brincar com o vizinho (filho da Leninha, a desquitada). Cuidado, que a mãe dele não é boa bisca, o que vão falar da gente? cansou de ouvir. Não, não queria ficar remoendo-se, mas, inevitavelmente, as lembranças vinham, resistentes, apesar de tudo, como se algo tivesse detonado os arquivos secretos de tantas coisas esmiuçando-se de forma desagradável num momento daqueles.

Quando o acompanhamento estava subindo o morro da Industrial, W foi notado, entre frieza e distância. Primeiro, a descrença, a palidez, a muda troca de olhares entre parentes e circunstantes. Tristes e desérticas, as pessoas diziam palavras convencionais. Depois, o abraço em soluços da mãe, sob as vistas ressabiadas dos mais próximos. Não disseram nada, apenas os mútuos braços inermes que se envolviam, no último adeus a quem chega ao seu momento, sem que despertasse outras sensações, senão a óbvia tristeza da partida, da perda e nenhuma outra menor comoção. Dever cristão – era isso o que sentiam mãe, filho, empregada, e o irmão, sempre alienado e ainda sem esboçar uma mínima crispação na face.

Diante da via estreita que divide a longa esplanada de sepulcros, um quadro de geométricas solidões. Seus olhos abismam por aquela realidade que nos espera um dia, além das frivolidades da alma, das lutas insondáveis do espírito. O choro não vem, a angústia encalacrada, o movimento lento de sua cabeça contorna em derredor da campa, onde dois coveiros entrelaçam as correntes para descer o esquife, entre movimentos das mãos para expulsar as moscas e o cheiro de cravo de defunto. Hora derradeira. De crepúsculo selvagem. De solidão da carne viva e de inércia do corpo encubado numa gaveta fria e numérica. De perguntas não respondidas. De nós não desatados. Do perdão que nunca foi construído. A vida nada diferente dela mesma, pensou.

Alguém fuma um cigarro, enquanto o caixão desce esbarrando nas laterais e pequenos tufos de terra vão sujando a tampa, que não foi aberta para as últimas despedidas. Ao ver a fumaça circunavegar sobre as cabeças paralisadas no último ato, ele imagina a vida evolar-se sem deixar vestígios.  Aos poucos, as pás de terra e cal vão se misturando às flores quase murchas atiradas na cova. Lembra-se da única vez em que em o pai o abraçou na vida: quando o irmão caçula foi enterrado naquela mesma sepultura, depois de ter sido esmagado pelo caminhão de areia do Agenor, que adentrou o portão da obra enquanto ele, em meio aos tapumes e restos de concreto, brincava de engenheiro e  construía uma cordilheira com tampinhas de refrigerante, quando ainda moravam na pracinha do Rosário, numa casa cuja construção não acabava nunca.

Até hoje a mancha de sangue no cimento é uma marca que não se diluiu. Dói-lhe com uma angústia crescente, redundante, a inscrever-lhe uma culpa irremediável. Foi ele quem mandou Serginho ir brincar nos fundos, para não incomodar a mãe que preparava o almoço para os peões.

 

FÍGARO

 

 

Estou unindo a capa preta da Bíblia

 com o avental azul da barbearia,

com uma caixa de sapatos

da infância e aí vai.

Fabrício Carpinejar

 

Não sei por que estou de novo aqui. Isso dói!

Que tarefa medonha o esquecimento.

 Cristovão Tezza

"Uma noite em Curitiba"

 

 

        Recebeu na cara o vento inaugural da manhã e olhou fixamente um céu distante e pavoroso.

 

        Diante do nada, o silêncio reverberando inquieto, cerimonioso. As imagens se sucedem: desconexas, saltitam e comicham, cascavilhando a memória em sua trajetória de insistência: mancomunando contra a sua resistência em rever o passado diante daquela sacada. Tudo parecia emergir de um sono (de um sonho? Não, porque a realidade era próspera, próxima demais para ser esquecida), mas naquele canto — quietude e angústia se misturando — ainda soavam as tesouras, os fregueses esperando a sua vez, o cheiro de álcool recém-passado nos rostos escanhoados, os braços agitados do velho pai com suas pernas cheias de varizes e sem hora pra comer, as folhinhas velhas penduradas na parede, o antigo ventilador Eletromar colocado estrategicamente num canto a digerir os verões.  Dias & dias ressurgiam insolentes (solenes?) da infância do menino.

        No começo do ano, tinha ido à cidade: visitou os parentes mortos. O cemitério era uma cidade ao menos reconhecível, porque dos vivos não conhecia mais ninguém, nem as pedras da rua trocadas pelo asfalto ordinário, nem o cheiro de urina dos animais de carga e suas carroças parados na Estação, nem as pedras portuguesas da Praça Rui Barbosa, nem a carrocinha de pipoca do seo Sebastião, nem o footing noturno com suas marés de gente rodando a praça em movimentos divergentes: fluxo de interesses e sutilezas nas noites de sábado e domingo.

Coisa estranha, a memória, esse aluvião: às vezes é pântano, às vezes um cupim de aço tirano revirando o íntimo. Remotas lembranças fluíam, frenéticas e sem cor, de um escuro labirinto, como aquele dia em que o farmacêutico Herculano meteu-lhe o pé na fuça, porque sujou a meia na engraxação. Nunca esqueceu aquele semblante rancoroso fitando-o severamente, com ódio, rosto que dias depois ele contemplaria: transido e escoiceado pela vida no enterro de sua filha Milena. A meia suja não podia entrar na igreja, o casamento do filho caçula do industrial ia ser dali a meia hora (não custava ir a casa, mas preferiu a estultice, o gesto tresloucado, a demonstração canina de desagrado associada à humilhação).

Nas tardes de sábado, ia apanhar sapatos para engraxar nas casas de classe média,  os que moravam nas Avenidas e não freqüentavam salões modestos.  Outrora, a bicicleta velha carregava o escovão com o qual (i)lustrava a sala dos promotores e juízes com cera Parquetina. E contemplava a Avenida Brasil com suas mansões enfileiradas, sarcófagos da burguesia ensimesmada, com suas membranas de intransponibilidade e sisudez, lugar de casamentos fatigados, de vidas cascatosas e vazias, onde fermentavam desejos inconfessáveis de luxúria e poder.  E nos olhos bordava o futuro com as cores misturadas do ontem e do hoje, ave solitária pairando suas asas sobre o horizonte dos outros.

Recordações ébrias vacilavam em sua mente, tocaiando aqui-ali, como o dia em que um homem foi morto porque chutaram o seu cachorro no Bar Elite. O som esfuziante da bala ainda e(s)coava pela Rua Tenente Fortunato e ia ricochetear na porta da delegacia: o rio Pomba lá embaixo não testemunhava nada, senão os areeiros em sua solene e imutável lida, lançando pás ao fundo de um leito sem vida para retirar miríades de grãos.  Havia ainda a recordação do pão com molho na cantina do Colégio — muitos foram os dias em que não tinha um cruzeiro mirrado para forrar o estômago — lambia com os olhos o lanche dos meninos da turma "A". Certa noite, isso ele não esquece, acordou entorpecido por sonhos miliários de águas abundantes carregando seus livros — poucos, é verdade, mas adquiridos com o suor de cuidar de mil sapatos — e a água do Meia Pataca já entrava casa adentro, lambendo os colchões e dona Lourdes apavorada colocando tudo para cima e o porão onde "habitavam" virou um cais de objetos boiando na água podre: as bonecas da Cristina, o livro do Curso de Admissão emprestado para a prova de fim de ano, a coleção de rótulos de cigarro submersa, os guarda-roupas encharcados: a estranha sensação de expulsos pelas intempéries, sentimento que se repetiria nos anos seguintes, quando março e suas águas recalcitravam com suas desavisadas mãos. E não sai de sua cabeça o desespero da mãe: "Ah, eu devo ter jogado pedra na Cruz, porque todo ano é esse sofrimento, meu Deus" e o pai trabalhando de manhã à noite, cabelo, barba, bigode, as contas de fiado enxertando a caderneta, sem hora pra almoçar nem jantar, a freguesia que não dava trégua nem pra urinar no mictório do Bar Coperão, e dinheiro que era bom, nada..., o filho mongolóide, os outros menores precisando tratar os dentes, murmúrios que se repetiam como goteira artificial em cabeça de condenado em solitária.

        Certa vez, ouviu conversas atravessadas, o avô tinha morrido de nó nas tripas, o pai não tinha o dinheiro para o velório, estava devendo ao Alarico dentista a colocação das dentaduras, não tinha pago as compras dos últimos três meses, e já era enorme a vergonha diante da caderneta encompridada de anotações no Armazém Alvorada, vão pelo menos dar um pouco por conta?, disse dona Euterpina, a mulher do seu Laércio, depois foi aquela lágrima entrevista na fresta da porta enquanto conversava com a mãe, acho que vou ter que pegar emprestado com o italiano agiota, foi a primeira vez que ouviu essa palavra e ela tinha uma sonoridade causticante: a-gi-o-ta. Não tardou em saber que o pai vivia pendurado, agora ele sabe o porquê daquele homem acompanhado de sua chaguenta flebite aparecer toda semana de cara feia, conversando baixinho mas severo com o velho num canto da barbearia, enquanto os fregueses olhavam desconfiados, de esguelha, e um constrangimento, uma sem-graceza com os presentes, a tentativa de camuflar do garoto (sete anos, mas vivo como ele só) a má sorte, as cobranças e o porquê de nunca ter dinheiro para mandá-lo para a casa da tia no Rio nas férias sempre iguais e nos finais de ano repetidos: sem passeio nem Papai Noel.

        Um cartaz velho, surrado, com as letras desbotadas (propaganda escrachada da "Redentora") cobria a parede em frente ao grande espelho que servia às quatro cadeiras do salão — "Comunismo — opressão e incerteza" — e ele fitava intrigado aquela imagem feroz dos tanques atravessando a praça lúgubre e enfumaçada, como uma fruta atingida por um estilingue: um cenário obscuro de uma cidade com aparência outonal e solitária (seria Praga? Varsóvia? Bucareste? Leningrado? — o mais longe que o garoto tinha ido era a Juiz de Fora) e não havia perguntas, só  aquela cena arrogante e estática ferindo o brilho nos seus olhos e as notícias que chegavam truncadas do outro lado do mundo e dentro do seu próprio havia pomares de discórdia. Gostava daquela foto, do que ela queria dizer e não dizer em suas letras que tinham um verniz desolador como a imagem que falava além de todas as fronteiras, como as palavras que não estão nos dicionários, mas saem das pedras, dos rios, do olhar do cão morto à beira da estrada, da prostituta em sua solidão monolítica, do concreto bulício da vida urbana, com suas roldanas de engano corrompendo os homens com alucinação e retórica.

Os pães chegavam cedo, velha prática do interior em que os padeiros em sua procissão de bicicletas tentando equilibrar enormes cestas à frente, iam jogando os pacotes nas varandas, pendurando nas janelas ou nos portões ou os deixando por algum vão, no chão da porta, nas cercas, nos quintais. O barulho do pacote caindo na área contígua ao tanque, o som das chaminés da fábrica Irmãos Peixoto anunciando a chegada dos operários para o primeiro turno, o café sendo coado pelo pai ou pela mãe (que se revezavam semana sim, semana não, levantando os filhos para a escola), a pasta velha debaixo do braço com os livros cadernos lápis borracha apontador tabuada dever de casa lancheira com um café com leite e a broa de milho nem sempre constantes.

Um dia isso tudo acaba: vestibular, formatura, consultório, família, casa nova, filhos, carro, pensou que nunca olharia para trás, as águas devem correr para o rio e o passado um dia vai ser lembrado com saudade ou ironia. Mas o menino que jogava bolas de gude não crescia dentro dele e havia um nó parado na garganta, um pião que não pára de rodar, pressuroso, em sua cabeça.

De mansinho, a noite caía sobre o salão da barbearia e sua caixa de engraxate – pequeno trono invisível onde suas mãos passeavam habilidosas pelos pés de uma cidade inteira – caía em insofismável solidão, um vácuo apoteótico entre a noite e a manhã que começaria sempre a mesma, com seus rituais de tintas, pincel, escova, flanelas e brilhos. Dali, de seu mundo, convivendo com o segredo das mãos do pai requintando rostos contemplava outros, entre miudezas e sonhos. Dali observava — suspendendo suas atividades, em sinal de respeito, como os homens que tiravam os chapéus num gesto de automática reverência — os funerais atravessando a cidade e que passavam em frente, rumo à necrópole, do outro lado da Ponte Velha, enquanto o comércio, em cascata,  obedecia ao ritual de cerrar as portas durante o féretro, e as pessoas taciturnas, absortas e melancólicas formavam o cortejo, e só se ouvia o som das solas dos sapatos nos paralelepípedos, um ou outro falar entre os dentes dos acompanhantes e uma orquestra de silêncios ainda maior dentro do garoto. Escurecia sempre depois de os enterros passarem e sua mão de engraxate era escura como as noites sem fim em que sonhou passar além do seu Bojador, cruzar  a Vila Minalda em direção a Leopoldina e pegar o ônibus pra São Paulo, onde iria arrumar colocação, fazer cursinho à noite e tentar ingresso na universidade. Concurso para o Banco do Brasil ou a Caixa, nem pensar: rejeitava o comodismo de ver sua vida encerrada numa atividade monótona, repetitiva e bovina, compensável (para os outros, nunca cansava de repetir) apenas pelo salário, o que transformava essa elite bancária num rebanho de medíocres e alienados, que trafegavam apalermados pelas ruas de Cataguases com seus carrões & seus vernizes & seus fetiches & suas rotinas bestiais, mediocrizantes e alienadoras,

,,, idólatras de uma ocupação que nesses tempos neoliberais transformou-se em categoria de terceira, com um caixa, um chefe de serviço, um gerente ou outra babaquice funcional qualquer valendo menos que um vendedor de cachorro quente em porta de faculdade. O que era sonho dos pais para seus filhos, transformou-se em atividade repudiada e..., salve o Consenso de Washington, o sub-emprego, a proliferação das "vans", os medicamentos genéricos, a disseminação do caos, os transgressores do PT, a quadratura do ó, o viagra, a prisão de Fernandinho Beira-mar, o

                                                                                      a

        Mal nascia a manhã, com sua profusão de cores imprecisas e um sol dourado reverberando nas paredes dos prédios em frente, e da sacada do hotel recém-inaugurado, Viriato contempla a linha férrea   os trens não passam mais   a estação intacta     o sino emudecido não enuncia chegadas nem partidas    esconde segredos adolescentes, um túmulo onde o passado gagueja e não dá trégua e um serôdio olhar vasculha em derredor   o guarda-chaves já não altera os desvios   contempla um outro lugar, pessoas prédios coisas detalhes de um mundo tão presente e tão distante, tudo o que não existe ali é seu, tudo o que não existe para ele, tudo demolido pelo presente suntuoso com suas guirlandas de novidades estancando o que um dia houve e retorna em flashes mnemônicos, mas que agora se inscreve inelutavelmente como memória ou sentença, ali, alhures, algures,  onde um dia tudo tinha seu nome e sua hora e não se desgarrava das verdades mínimas, como o rosto de Letícia e as missas do Padre Solindo, antes de tudo se converter irremediavelmente num vale de ossos, num tempo sem notícias, nesse fluxo hemorrágico de lembranças dolorosas. Lâmina do tempo. Temporal de ausências. Infecta nostalgia.

 

        Na fronteira entre a afetividade e a geografia, garimpou o passado remoto com pás insidiosas: peito esburacado, corrosão de sentidos, tumulto de bateias.

 

        Expande os pulmões nicotinizados, respira o ar fresco inaugurando o sábado e, como que amparando o vazio, colhe na palma das mãos os primeiros raios de sol batendo nos telhados e silhuetando as árvores, os prédios, a pessoas, os carros, a vida.

 

 

Do livro A cidade proibida e outros esboços de solidão e espanto, no prelo.

 

 

 

(imagens, respectivamente, ©nino mascardi

e spencer platt)

 

 

Ronaldo Cagiano nasceu em Cataguases-MG, em 15/04/61, e atualmente vive em São Paulo. Colabora em diversos jornais do Brasil e exterior, publicando artigos, ensaios, crítica literária, poesia e contos, tendo sido premiado em alguns certames literários. Participa de diversas antologias nacionais e estrangeiras.  Publica resenhas no Jornal da Tarde (SP), Hoje em Dia (BH), Jornal de Brasília e Correio Braziliense, dentre outros. Tem poemas publicados na revista CULT e em outros suplementos.  Obteve 1º lugar no concurso "Bolsa Brasília de Produção Literária 2001" com o livro de contos Dezembro indigesto, recém-publicado. Publicou: Palavra Engajada (poesia,  Scortecci, SP, 1989); Colheita Amarga & Outras Angústias (poesia,  Scortecci,  SP, 1990); Exílio (poesia,  Scortecci,  SP, 1990); Palavracesa (poesia, Ed. Cataguases, Brasília, 1994); O Prazer da Leitura, em parceria com Jacinto Guerra (contos juvenis, Ed. Thesausus, Brasília,1997); Prismas – Literatura e Outros Temas (crítica literária, Ed. Thesaurus, Brasília, 1997); Canção dentro da noite (poesia, Ed. Thesaurus, Brasília, 1999); Espelho, espelho meu (infanto-juvenil, em parceria com Joilson Portocalvo, Ed. Thesaurus, Brasília, 2000); Dezembro indigesto (contos, Sec. Cultura do DF, 2001); Antologia do conto brasiliense (Projecto Editorial, 2004, organizador). Concerto para arranha-céus (contos, LGE Editora, Brasília, 2004); Dicionário de pequenas solidões (contos, Língua Geral, Rio de Janeiro, 2006) e O sol nas feridas (São Paulo: Dobra Editorial, 2011).