matmos

 

escrever a violência

do inalador num livro

para imortalizar a memória

da asma

 

observar o escape

das bolas de fogo do meio

das nuvens como se fossem

um jorro de colegiais

 

às cinco horas

 

 

 

 

 

calma

3: vicodin

a metragem de um salto
interceptado pelo vôo
imperito de um pássaro

2: xanax

distorce com estas paredes
a vista de vidro e de jaulas

contorce com os mesmos ossos
outros passos os mesmos silos

decanta a bisturi o lay out
de carne fresca deste asilo

percebe sobre os ombros a
escada de descida aos destroços

1: valium

a visão era uma: amarelo
queimado de um pasto
à morte: gravetos e cinzas
uma presença ígnea o lustre
suado das testas dos
incendiários; outra presença
a menina nua segurando
a escada para o irmão
atravessar o fogo: outravia
de excessos estranhos,
declínio, sorte, sopa
se estende a negra linha
de madeira ou toalha
acetinada mesa rubra
posta, os pratos fumegantes
bebidas trincando o vidro
suando (as testas dos incendiários
molhando o lenço) mas só uma
pessoa à mesa. liquefação
de ossos tristes e absorção
quase industrial de martinis:
na casa os outros não dormem 
— os empregados alquimizam
o carteado de truco na cozinha
empilham cafés e conhaque
gargantadentro: no casebre vizinho
um velho urina as calças rindo
ouvindo the blower's daughter
no rádio.

 

 

 

 

 

Seiten no heki-reki

1:

Yuki estende o lençol
branco no varal de
cordas plásticas azuis
espera paciente o marrom
avermelhado da tempestade
de areia, demarca territórios e
idiomas solta um gemido lento
desativa suas lembranças de
neve do branco de seu olho e dentes

2:

um risco transversal
no bambu cru elidindo
um poema. uma estória
de bar incisa no mastro
forte de um barco médio
uma unha decepada inteira
depositada na cova de plantio
sob os carpetes lisos do bistrô

3:

um cardume de velhos tristes
acertando bolas com martelos
de madeira pelas goelas de traves
pequenas abertas insinuantes o
esquadro calculado para uma tacada
que os devolva suas almas aprisionadas
na barrigada em tecnicolor de um fugu

 

 

 

 

 

 

menina com infravermelhos

 

sob o pretexto de

transfundir significado

de volta ao abalo sísmico

que é cada plano,

 

ajeita a faca, amola com

a lima escuta cada coisa

que se pareça com promessa

entalha um código secreto

 

no tronco de que se faz

a casa na árvore onde dormem

os mapas os dias os segredos

os estojos de explosivos

 

não sobram os olhos grandes

para fora das lentes binoculares

outra coisa que se pareça com

sorte, uma moeda de cobre ou um

 

calendário de um ano passado

(e esquecer)

para só querer lembrar

 

 

 

 

conversa cinemática

 

abriram a caixa para

achar dentro os restos

siderúrgicos de um uivo

 

e esse despido de noite

escura como o kevlar de

um colete à prova de balas

 

não traz novo nenhum: é

só ação morta como o cedro

da bengala de um velho,

 

a última vez que o marinheiro

vê o filho pequeno na amídala

da mulher holográfica que acena

 

 

 

 

 

origami

 

esguia sua presença como rocha

quieta e assemelhada num lago

 

de água imóvel. Só a casca

fina e translúcida em reflexo

 

recendendo a um limpo círculo

de vidro o porto para que

 

deslizem. A lisura que engole

os corpos ou se parte pouco

 

consorte à indelicadeza com que

chega a espessa cortina de tempestade

 

 

 

 

desentranhado do galho mais estranho da árvore genealógica de minha família

quinta-feira em chamas com as brasas e
cinzas deixando áspero o assoalho debaixo
do atrito das botinas e das correntes arrastando

metros à frente o rombo na cerca de arame
os três cães decrescentes cheirando fiapos de pano
enroscados nos ganchos: alguma pele ou pêlo

que pudessem evocar um alce ou urso,

eram uma imagem de família, troncos serrados,
uma outra árvore, a história que contaram mais

uma vez antes que alguém esquecesse ou que
tivessem que anotar palavras e cenas numa pedra
ou na madeira de um casebre infestado de fantasmas.

 

 

 

 

norte negro com mil sóis
todos de fusíveis queimados

homem com bengala parado
na esquina pensando em alguém

baleia morta no oceano índico
esmagou na costa ovos de tartaruga

sirenes de bombeiro ouvidas
de um lado a outro do mundo

fuga de formigas minúsculas
de dentro de uma cesta de frutas

pintura de alguém em Guiné
sentindo o fuso-horário nos nervos

luz fraca de lanternas
montando mosaicos na parede

uma pessoa escondida em cada
pedaço de outra pessoa que se mostra

uma cidade que espera calma
o engolir de um gentil maremoto

nós todos tendo um dia difícil
e rachando uma pizza às oito horas

num bar onde a cerveja é servida
em canecas plásticas de leite e suco

 

 

 

diáfise

cavalos-marinhos estalando
na frigideira

o ar massageando
nossas costelas

a boca fechando
seca de abraços

 

 



epífase

beleza na palma nua das mãos
que detém o avanço da lâmina

cortadas ao meio apenas
as minúsculas asas das moscas

e o filtro do teu cigarro

 

 



cartilagem

ou um ou outro tom
de sombra com que se borra
a pintura quieta da cidade
quadro colado na parede do
quarto de visitas
onde trancamos pessoas
e nunca mais as deixamos sair

 

 

 

 

 

este poema salvará sua vida

 

como um motor de furgão velho
tropeçando em cada esforço
gutural-resfriado
sem perder a paciência com
a sujeira das aves nas gaiolas
tentando dar um jeito com
uma flanela úmida
e detergente
as entranhas ardendo
com o diálogo dos órgãos
a vida parecia feita de duplos:
queimava e era ínfima
como um punhado de fósforos

 

(imagens ©digital vision | john knill | mark weiss)

 

 

 

Renato Mazzini (Santa Fé do Sul-SP, 1981). É advogado. Trabalha como professor, escreve crítica musical, publica seus poemas no blogue Renato Mazzini e traduz alguns de seus poetas favoritos de língua inglesa no Chopsticks — Poesia com Pauzinhos junto de amigos. Não publicado em livro. Alguns inéditos seus podem ser lidos na edição 20 da revista Inimigo Rumor, no blogue Escolhas Afectivas e em banheiros públicos.