____________________________________

 

Trechos do romance Santo Reis da Luz Divina,

de Marco Aurélio Cremasco,

vencedor do 1º Prêmio SESC de Literatura-Romance (2003) 

e finalista da 47ª edição do Prêmio Jabuti, na categoria Romance,

cujo vencedor será anunciado no dia 31 de agosto  de 2005

____________________________________

 

 

 

1.14

Farda bonita a minha, branca como a pureza das virgens prestes a serem rompidas. Sustenta medalhas de bronze e de prata, polidas pela barba do Imperador. Deixo-me entre alguns aleijados. Posto-me de joelhos ante o altar. Oro para que os meus atos sejam perdoados, pois minha alma arde no inferno da culpa e da vergonha. Não posso olhar para as crianças que me procuram em sorrisos de curiosidade e de orgulho. Orgulho de quê, pequeninas almas? Tenho vergonha. Muita vergonha. Mesmo Cristo, crucificado, pendurado em suas chagas, debruça sua cabeça cansada sobre o dorso, de olhos postos no chão, apenas para desviar o seu olhar do meu. Pelas cinco chagas de Cristo, morto no Calvário! Pelas três chagas de Sampaio, morto em Tuiuti! Pelas inúmeras chagas que corroem a minha alma. Filho de Deus! Posso contar consigo para me defender no juízo final? O latim do padre ladra o Inferno, apregoa que os filhos do demônio López foram devidamente castigados pela força de homens de Deus, na graça de Pedro II. Deus me perdoe, mas sinto ódio por este santo padre. Chega de ódio! Quero penitência e castigo ao tempo que busco o paraíso do perdão. Não dentro desta Igreja, mesmo por que destruí tantas outras em terras paraguaias. O paraíso que me habita está corroído por sangue contaminado: ódio, ódio, isso mesmo, ódio de ter sido jovem, irresponsável. Achei que, ao cerrar fileiras, iria ser reconhecido como um grande homem. Hoje vejo que sou um grande homem aos pequenos olhos dos paulistanos, das damas que - por certo - me trarão suas filhas donzelas para assim desposá-las. Desabrochei flores paraguaias na marra. Quantas vestes, tais como pétalas, arranquei aos dentes para mergulhar, faminto, a língua no suor de suas vaginas. Tragam-me suas donzelas. Tragam-nas que as tragarei para o meu poço de culpa. Ah! Cristo! Abaixe a cabeça nessa cruz, pois a minha a sustentarei sempre no prumo de um precipício.

 

3.5

O farmacêutico e a professora. As crianças e os cães. A igreja e a escola e a farmácia e a delegacia. Os dias de chuva e os dias de sol e os de granizo e os de ventania e de todo o dia em Luz Divina. O silêncio do olhar. A delicadeza das palavras. O aprendizado das horas, das honras. As conversas trocadas. As histórias dos avós, dos pais, das famílias, da cidade, do Estado. A reconstrução da memória. A partilha dos sonhos. A descoberta do sorriso e da falha. A rispidez do ato. O nervo de aço e o caule da flor. A construção do tempo. As coisas de cada um. Os amores. O segredo e a revelação. Minha dama! Meu lorde!

 

3.11

Sou ambicioso, sim, meu Capitão. Não há qualquer problema com a ambição. Tenho a ambição de Dédalo, aquele que a tudo inventou a partir da incapacidade de domar os elementos. Veja meu Capitão, a história do labirinto do Minotauro. Ele usou o tutano para vencer a força e assim aprisionar a sua própria natureza. A maior conquista foi a de voar. Construiu para si asas e com elas ganhou os céus. Imagine. Que visão não teria do mar e das montanhas e dos pescadores sob o seu corpo? O poder! A ambição de Dédalo levou-o a triunfos imagináveis. Não contente, fez asas para o filho, Ícaro. O filho era muito mais ambicioso, não se contentava apenas em voar. Inexperiente, quis voar mais alto do que o pai. Dédalo sempre lhe dizia: não voe alto, filho, e mantenha o olhar no chão. Adiantou? Claro que não, foi tanta ambição que voou até o Sol, o qual lhe derreteu a cera das asas. Ícaro tombou no mar. Morto pela própria ambição. Meu Capitão, qual a sua ambição: a de Ícaro ou a de Dédalo? Na política, assim como na vida, temos de ser ambiciosos. Eu me contentei com Luz Divina e assim mesmo posso me queimar, casou eu queira, hoje, atingir o palácio em Curitiba. O seu lugar é na delegacia e na farmácia. Mantenha-se lá. Estou lhe dando asas. Asas de passarinhos grudadas com cera volátil. Elas se derretem fácil. Lembre-se, a prefeitura é minha, como minha são as plantações de café desse médio Itararé. Você, meu Capitão, contente-se em olhar para o Sol de Luz Divina sem tocá-lo.

 

4.8

Vou ajoelhar para quem nunca foi rezado. Beijar a boca de quem nunca foi beijado. Toda vez que Zé Caporá entrava na mata repetia-se o rito. Ninguém entendia por que ele ficava só e abraçado à cartucheira. Depois de beijá-la, levantava-se e fazia o sinal da cruz começando da barriga para terminar na testa. Arregalava os olhos ... um profundo vazio podia ser notado, ainda que em poucos segundos. Era a própria eternidade do caos que lhe vazava do olhar negro, encontrando luz somente na ordem de Santo Reis: é a hora chegada para quem nunca deveria estar por aqui, meu amigo. Zé Caporá sorria com o destino dado e apertava a arma gasta de outras pelejas. Deixa o primeiro e o último para mim, Doutor. Quero lembrar esses getulistas o instante em que nasceram, de novo, na boca da minha menina. Santo sorria nervoso e sabia que podia confiar, pois Zé Caporá era a sombra que inúmeras vezes salvara-lhe a luz no mundo dos vivos.

 

5.24

O que devemos fazer, Coronel Paes? O que justifica a batalha, Major? Coronel, qual o sentido de preparar-se para a guerra, irar-se contra o inimigo, desejar o pior do pior a todos, sentir o cheiro da morte, atrair-se por sangue, embebedar-se de fúria? Pela ordem. Ordem de quem, Coronel? Do vencedor, Major, do vencedor. A nós, os vencidos, resta a resignação da derrota. A derrota, Coronel? Sequer lutamos ou tiramos qualquer ar das fuças daqueles gaúchos filhos da puta. Essa guerra que não houve é pior do que haver perdido a própria vida. Essa guerra que não houve será a marca de Caim que levaremos na testa e a carregaremos até a mais distante geração de nossos netos. Vergonha, Coronel, vergonha. Major, a honra maior de uma guerra é a vida. Olhe a sua volta: este é o seu país. Olhe o seu inimigo: ela fala a sua língua. Devemos ter orgulho por esta guerra. Devemos ter o orgulho ressaltado por termos sido vencidos. Os vencedores que devem estar envergonhados por não nos ter conquistados. Nós, os vencidos, temos de estar orgulhosos de não sermos conquistados, pois esta continua sendo a nossa terra. Estamos lutando para preservá-la. E os vencedores, por quem estão lutando? Um ideal? Os ideais passam como nuvens no céu, mas a terra permanece sustentando os nossos pés e futuro de nossa gente. Tivemos a honra de nos render, pois nos rendemos a nós próprios. Deixe os vencedores pensar que venceram. Isso os apazigua e a nossa conquista é a própria história. A guerra que não houve em Itararé, Major, foi a mais importante da história no Brasil, por que evitou a pior batalha que pudesse existir entre brasileiros.

 

6.30

Verde. Verde de se perder em verde. Verde claro, escuro, cinza, marrom, azul. Todas as cores são verdes. As planícies, vales cobertos pelo cobertor verde. Deus é verde. Tudo o que cobre e o que está descoberto, entreaberto, que se desfaz e refaz verde. Zumpt. O facão corta e revela o verde sempre o verde de enojar de verde, embebedar-se de verde, rolar de verde e pelo verde. Folhas, mato, cobra, salamandra, sapo, rio, lago, lagoa, musgo, erva, vegetação, horta, homem, mulher, macaco, sangue, cipó. Tudo o que se corta e se corta verde, verde. A verdade é o verde. A venda verde da mata que tapa e que não está à venda, pois tudo o que se vê é verde. O Sol verde não amarelece e nem desbota. A roupa no varal, as crianças verdes. Esperança! gritou o farmacêutico na alta madrugada. Esperança o acalmou, limpando-lhe a testa e os olhos raiados, verdes de febre. A caça acabou, meu lorde! Voltaram para Cornélio Procópio após Santo recuperar-se minimamente. Nada ficou contido nos alfarrábios do compadre de Santo, delegado em Jacarezinho. O corpo de Zé Diabo foi enterrado nas margens do Rio do Peixe que, fino em Jacarezinho, alargava-se em direção a São Jerônimo da Serra.

 

7.2

1926. Ano da morte de Margarida Rios do Valle. Mãe de quatro filhos: Helena, Lelete, Carolina e Victória. Quando uma mãe morre, nasce uma estrela no céu. Quando uma mãe morre deixando quatro crianças, nasce uma constelação só para Deus se esconder de remorso.

 

7.18

Estou velho e hoje é o dia da minha morte. Estou só. Nem sei porque escrevo e aqui esclareço que não se trata de crise de solidão. Soltaram uma bomba e acabou-se o mundo. Ouço ruídos. Acendo a luz pelo comando da voz e ela me responde no silêncio de um beijo: mentira. A única verdade é que estou velho e hoje é o dia da minha morte, mas não estou só. Os meus tios e as minhas tias vieram me buscar. Laércia, Anísio e Anita não vieram, pois não partiram. Chico Reis está forte e não cheira a cigarro. Carolina Reis está rejuvenescida e conserva o mesmo sorriso carinhoso. Do lado dela está o filho doido, o Theo. Baba de vez em quando, mas está calmo. Santino e Esperança abrem os braços e dizem que é a hora do meu segundo batismo. Bença vó. Bença vô. Estou indo. Só me deixem terminar este último parágrafo.