Rebelião
na Zona Fantasma
é o nome do primeiro CD de poesia falada de Ademir Assunção. Nada a ver
com poemas recitados em fundo musical idílico, com coro de passarinhos.
Trata-se de uma rebelião ao som de blues. Algo que pode ter
personificação anterior em Jim Morrison e outros, que fizeram a fusão do
blues com a poesia. É uma rebelião sob o comando de Ademir e sua poesia
escrita com o próprio sangue.
"Homem Só", a peça que abre o CD, é permeada pelo violão
de aço de Luiz Waack, que pontua a voz de Ademir. Depois vem "Escrito a
Sangue", com um lisérgico solo de guitarra de Waack e coro de Madan,
dois músicos de primeira, que acrescentam muito à sonoridade da canção.
Então, Ademir interpreta "E Então?". Quando ele, o poeta, pergunta "Você
já ficou mudo de medo?", vem um silêncio isomórfico, proposital, de quem
não responde a pergunta e se paralisa, congelado com a possibilidade. Eu
gelei. Já em "Nada Demais", o bardo paulista flerta com o canto e recebe
a ajuda de Edvaldo Santana, num tema jazzblueseiro de excelente
qualidade. O momento calmo da rebelião é o que vem a seguir, com "Noite
& Dia" e "Câmera Indiscreta". O primeiro, cantado por Madan e o
segundo, por Zeca Baleiro. Em ambos Ademir faz intervenções, dizendo os
poemas. Mas não é de uma hora pra outra que a calmaria passa. "O Espinho
no Dedo de Deus" é mais uma música lenta e belíssima, em que a voz de
Ademir ecoa dizendo "meu sangue não/meu santo é negro" e "meu sangue
não/meu sangue é de leão". Como um lindo refrão.
Estamos
ainda na metade do CD. Atenção: vem aí "O Coisa Ruim". Um grande poema
de Ademir que ganha muito quando falado pelo autor, com a voz que se
altera de acordo com o que tem para dizer, como pede a canção. Digo aqui
canção e não sonorização. Pois de tal forma estão casados
poema e instrumentos, que só poderiam formar esta unidade: a música, não
importa se falada.
"Ratos"
é um blues moderno, à moda de B. B. King atual, à maneira de Robert
Cray. Nele o poeta cita Lou Reed e o clássico Take a walk on the wild
side e, mais uma vez, incorpora muito bem o clima que pede a música.
A poesia não canta, mas é como se cantasse pela voz de Ademir com um
ritmo próprio, que dá ao poema um ganho sonoro de alta qualidade. Também
aqui é importante ressaltar a participação de Madan, cantando enquanto o
poeta diz seu poema de alto impacto.
O
rock está presente em "A Lira e o Lixo". Ademir tem aí uma
performance digna de Cazuza e a música tem a fúria da voz de um
hardcore em seu final. Uma voz que começa doce e termina
malandriada e raivosa. O poeta cata opulência no lixo e encontra um
poema maior que diz entre, outras coisas, "pensam o poeta/um ente
otário", "profeta picareta", "um junkie
solitário".
"Pó"
é uma balada rock que começa falada e termina cantada por Madan e
Ademir. Nela a formação básica do rock é preservada: voz, guitarra,
baixo e bateria. O poema pede que prendam o poeta, porque ele é "negro
bicha e louco". Enquanto denuncia o preconceito, exige a aceitação das
diferenças. Não é uma canção caretamente engajada. Afinal, não há futuro
num simples protesto sem arte. A arte é a revolução maior que existe em
tempos bicudos.
Depois,
o gran finale. Algo
me lembra this is the end/my only friend the end, do The Doors.
"Tantas
Pontas" tem um clima triste, melancólico, só quebrado de forma apolínea
pela risada de Yan, que aparece depois de tudo, dando um sopro de luz e
alegria e esperança ao CD. Os fantasmas não são tão tristes
assim.
Os
poemas foram escolhidos a dedo, funcionando muito bem quando
acompanhados, ou como música, num projeto cuidadosamente elaborado. Em
dias em que a mesmice sonora alcança os píncaros da glória, é de deixar
de queixo caído esta Rebelião na Zona Fantasma. Quem dera que a
indústria do disco lançasse pelo menos um CD como este por ano. Seria um
alívio para nós, constantemente obrigados a escutar tanta porcaria por
aí.