©fábio martins
 
 
 
 
 
 
 

A revista americana e especializada em jazz Downbeat tem uma tradição louvabilíssima, o teste da "cabra-cega": seus editores mandam uma gravação qualquer para um crítico, músico ou aficionado opinar sem que este tenha a mínima informação sobre quem o esteja tocando. Esse teste permite que a opinião saia pura, como água de moringa, sem a contaminação da fama, da imagem ou do prestígio do alvo da crítica. Foi numa situação dessas que chegaram a meu e-mail alguns poemas de um autor não identificado pelo remetente, o editor José Mario Pereira, da Topbooks.

O material era de primeiríssima qualidade — e isso era possível de sacar à primeira leitura. No universo dos epígonos, o autor desconhecido mostrava uma originalidade impressionante, quase lancinante, em versos como estes: "Gosto de poema / que fala de ovo frito / latido de cão / e cheiro de queimado". Pode ser que o prezado leitor já tenha lido algo parecido, mas há-de perdoar este escriba aqui, que não tem a mesma felicidade de tropeçar com freqüência numa sinceridade assim tão flagrante que chega a ser pungente. Este poema, aliás, merece ser reproduzido na íntegra, como o é (depois eu saberia) na contracapa do livro (lançado pela Record, com a coragem que deve ser louvada e reconhecida a quem se arrisca a editar poesia num mercado viciado pela auto-ajuda): "Poema que com pequenos cortes / vara as coisas pequenas / fura a casca / o odre / rasga a placenta / e deixa gotejar / o fino / sangue".

Leve suporte — Pois é, amigo leitor, aí está uma definição que vale por um manifesto. Pois o autor, ou melhor, a autora, Marina Colasanti, só vende o que produz e só entrega o que promete. Sua poesia, que já havia arrebatado um prêmio Jabuti (da Câmara Brasileira do Livro) com Rota de colisão, volta agora revitalizada pela prática competente e cotidiana da escrita profissional (da cronista e da contista), com uma franqueza, cuja força repousa, paradoxalmente, na delicadeza. Arte do contraste por excelência, a poesia é o meio desabrido de ser que a autora encontrou para falar da leveza que suporta o peso da obra humana inteira.

O adolescente francês Arthur Rimbaud confessou ter perdido a própria vida por delicatesse. O olho de Marina observou e sua língua expressou o paradoxo sem nexo da fraqueza que se impõe à truculência nos versos ascéticos e ágeis de "Modigliani desenha", sobre as cariátides esculpidas nos frisos do Partenon: "Mas se eu dissesse: / lápis / traço / e acrescentasse / a levíssima mão de Modigliani / então sim / eu teria essas mulheres sustentando o mundo".

Forte doçura — Esses versos são francamente feministas, não são? Mas a autora conhece também os mistérios da força da doçura feminina, ao registrar a submissão que conquista em estrofes boas de cantar, como a segunda de "Sim, mas também" (belo achado de título, não é mesmo?): "Porque é meu amor / em qualquer lugar / onde ponha a mão / toda me estremece". E nos versos com que inicia "Aberta frincha": "Há tempos não abraço meu amado / com essa alma aberta / mais que os braços. / O corpo dele é tão parelho ao meu / que às vezes quando o envolvo / nos meus braços / é como se em meus braços / me abraçasse".

Ela não tem pudor de contar o que vê quando a paisagem que contempla são pele, músculos, pêlos e mucosas que pertencem à própria carcaça corporal: "vejo ao longe a montanha emoldurada / pela encosta das coxas / canyon talhado em luz / que se aprofunda / na escura sombra do púbis" ("Pela janela aberta").

Como aquele "último romântico" da canção popular, ela não doura pílulas. Para dizer certas coisas — registra, sem temor, no poema "Outras palavras": "são precisas / palavras que nascem com / aquilo que dizem / palavras que inventaram seu percurso / e cantam sobre a língua". Assim é o mapa traçado por esta oásis num deserto poético em que se perdem o rigor formal e a frouxidão da libertinagem sem medida: ora são mágoas que remanescem nas reminiscências, ora flagrantes da beleza fugaz de um instante prosaico qualquer suas palavras, sempre um drible no lugar comum, um gol marcado contra a mesmice, a burrice e a sem-vergonhice. Melhor dizendo, para não fugir ao que ela mesma deixou inscrito no último verso deste último poema citado: "precisas palavras que amanhecem". Melhor definição seria difícil achar para o livro inteiro: a aurora rompendo a treva da noite, o frescor do orvalho de uma manhã que se inaugura, um novo ânimo, um novo ímpeto, uma vida nova.

 

Fino Sangue, de Marina Colasanti, Editora Record, Rio, 2005, 128 pp., R$ 24,90.

 

 

 

agosto, 2005
 
 
 
(Texto publicado originalmente no Caderno 2 do jornal Estado de S.Paulo)
 
 
 
 
José Nêumanne. Jornalista, escritor, poeta. É editorialista do Jornal da Tarde e autor do romance O silêncio do delator. Mais aqui.