A revista americana e especializada em jazz
Downbeat tem uma tradição louvabilíssima, o teste da "cabra-cega":
seus editores mandam uma gravação qualquer para um crítico, músico ou
aficionado opinar sem que este tenha a mínima informação sobre quem o
esteja tocando. Esse teste permite que a opinião saia pura, como água de
moringa, sem a contaminação da fama, da imagem ou do prestígio do alvo
da crítica. Foi numa situação dessas que chegaram a meu e-mail alguns
poemas de um autor não identificado pelo remetente, o editor José Mario
Pereira, da Topbooks.
O material era de primeiríssima qualidade — e isso
era possível de sacar à primeira leitura. No universo dos epígonos, o
autor desconhecido mostrava uma originalidade impressionante, quase
lancinante, em versos como estes: "Gosto de poema / que fala de ovo
frito / latido de cão / e cheiro de queimado". Pode ser que o prezado
leitor já tenha lido algo parecido, mas há-de perdoar este escriba aqui,
que não tem a mesma felicidade de tropeçar com freqüência numa
sinceridade assim tão flagrante que chega a ser pungente. Este poema,
aliás, merece ser reproduzido na íntegra, como o é (depois eu saberia)
na contracapa do livro (lançado pela Record, com a coragem que deve ser
louvada e reconhecida a quem se arrisca a editar poesia num mercado
viciado pela auto-ajuda): "Poema que com pequenos cortes / vara as
coisas pequenas / fura a casca / o odre / rasga a placenta / e deixa
gotejar / o fino / sangue".
Leve suporte — Pois é, amigo leitor, aí está uma
definição que vale por um manifesto. Pois o autor, ou melhor, a autora,
Marina Colasanti, só vende o que produz e só entrega o que promete. Sua
poesia, que já havia arrebatado um prêmio Jabuti (da Câmara Brasileira
do Livro) com Rota de colisão, volta agora revitalizada pela
prática competente e cotidiana da escrita profissional (da cronista e da
contista), com uma franqueza, cuja força repousa, paradoxalmente, na
delicadeza. Arte do contraste por excelência, a poesia é o meio
desabrido de ser que a autora encontrou para falar da leveza que suporta
o peso da obra humana inteira.
O adolescente francês Arthur Rimbaud confessou ter
perdido a própria vida por delicatesse. O olho de Marina observou
e sua língua expressou o paradoxo sem nexo da fraqueza que se impõe à
truculência nos versos ascéticos e ágeis de "Modigliani desenha", sobre
as cariátides esculpidas nos frisos do Partenon: "Mas se eu dissesse: /
lápis / traço / e acrescentasse / a levíssima mão de Modigliani / então
sim / eu teria essas mulheres sustentando o mundo".
Forte doçura — Esses versos são francamente
feministas, não são? Mas a autora conhece também os mistérios da força
da doçura feminina, ao registrar a submissão que conquista em estrofes
boas de cantar, como a segunda de "Sim, mas também" (belo achado de
título, não é mesmo?): "Porque é meu amor / em qualquer lugar / onde
ponha a mão / toda me estremece". E nos versos com que inicia "Aberta
frincha": "Há tempos não abraço meu amado / com essa alma aberta / mais
que os braços. / O corpo dele é tão parelho ao meu / que às vezes quando
o envolvo / nos meus braços / é como se em meus braços / me
abraçasse".
Ela não tem pudor de contar o que vê quando a paisagem
que contempla são pele, músculos, pêlos e mucosas que pertencem à
própria carcaça corporal: "vejo ao longe a montanha emoldurada / pela
encosta das coxas / canyon talhado em luz / que se aprofunda / na
escura sombra do púbis" ("Pela janela aberta").
Como aquele "último romântico" da canção popular, ela
não doura pílulas. Para dizer certas coisas — registra, sem temor,
no poema "Outras palavras": "são precisas / palavras que nascem com /
aquilo que dizem / palavras que inventaram seu percurso / e cantam sobre
a língua". Assim é o mapa traçado por esta oásis num deserto poético em
que se perdem o rigor formal e a frouxidão da libertinagem sem medida:
ora são mágoas que remanescem nas reminiscências, ora flagrantes da
beleza fugaz de um instante prosaico qualquer suas palavras, sempre um
drible no lugar comum, um gol marcado contra a mesmice, a burrice e a
sem-vergonhice. Melhor dizendo, para não fugir ao que ela mesma deixou
inscrito no último verso deste último poema citado: "precisas palavras
que amanhecem". Melhor definição seria difícil achar para o livro
inteiro: a aurora rompendo a treva da noite, o frescor do orvalho de uma
manhã que se inaugura, um novo ânimo, um novo ímpeto, uma vida nova.
Fino Sangue, de Marina Colasanti, Editora
Record, Rio, 2005, 128 pp., R$ 24,90.