A poesia de Claudio Daniel é uma
avalanche. Uma avalanche não costuma ter ordem. Mas a poesia de Claudio
Daniel tem ordem em meio ao exuberante caos que provoca no leitor, pelas
suas imagens, metáforas e linguagem conotativa.
O poeta não despreza nenhum recurso
poético para obter o seu intento: o de alçar um vôo encantatório pela
diversidade temática de seus poemas. É assim em Figuras
Metálicas (Editora Perpectiva, 2005). No livro — uma
compilação de vinte anos de poesia e inéditos — Claudio Daniel
demonstra virtuose desde os primeiros poemas publicados ou escritos.
Fato que deixa o livro no alto nível full time.
"Travessia poética" — como nos diz o
subtítulo do "Opúsculo" — demonstra uma tentativa muito bem
sucedida de mapear a poesia do autor. A capa (toda preta com detalhes em
prata, que desenham o mapa da América do Sul) já revela um diálogo
importante que o bardo paulista trava com a América Latina. Se no início
a produção de Claudio Daniel flerta com as vanguardas expressionistas,
aos poucos ele vem camaleonicamente transformando a sua
estética, até chegar ao neobarroco: movimento que cresce na América
Latina e que é a sua atual praia e especialidade. O poeta
lançou também O jardim dos camaleões (Editora Iluminuras,
2005), uma bela antologia de poesia neobarroca.
Sofisticação é outra marca da poesia aqui
estudada. Não se trata de uma leitura fácil. É poesia para quem entende
de poesia. Ouso dizer que no Brasil atual Claudio Daniel é um dos
maiores poetas para poeta — se é que se pode fazer esta
classificação: a de poesia feita para poetas. Poderia aqui adjetivar
mais ainda a força poética dos poemas de Figuras Metálicas. Mas
seria perfumar a flor — como diria João Cabral de Melo Neto —
ou melhor dizendo: perfumar a resenha. Prefiro agora percorrer a trilha
de opulência deixada em mim, ou ainda mais especificamente, no que ficou
nas minhas entranhas ao travar contato com esta leitura, que é, como
diria o cantor, a mais completa tradução do que vem a ser inventividade
nos tempos pós-modernos. Ressalte-se que não considero esta poética
pós-moderna. Ela é a primeira manifestação — falo aqui sobre o
neobarroco — que vai além da definição de pós-modernidade e
extrapola os conceitos, para fundar uma nova estrutura, uma nova ordem
na movimentação artística em torno da poesia. Claudio Daniel e muitos
outros poetas da América Latina estão escrevendo seu nome na História,
ao fazer ressurgir o barroco com uma nova forma, marcada pela
inventividade e características próprias. É o primeiro grande movimento
literário do século XXI, ainda que o termo neobarroco já venha sendo
usado desde meados do século passado. Acredito que só agora, pela
quantidade e qualidade dos poetas dedicados ao estilo, ele atingiu o
status que lhe é de direito no latifúndio da literatura
mundial.
Uma alternativa de Claudio Daniel para
fundar uma nova escrita — uma escrita inventiva — foi abrir
mão de dar continuidade aos poetas que o influenciaram. João Cabral e a
poesia concreta, por exemplo. O poeta escolheu andar por outros mares,
os da poesia de invenção, não se tornou um poeta concreto, nem um
seguidor da poesia cabralina. Posso citar algumas de suas influências.
De quem não lida angustiadamente, à maneira de Harold Bloom, com seus
antecessores de força. Como ele mesmo afirmou em texto de sua autoria,
leu com vigor Baudelaire, Edgard Alan Poe, Mallarmé, Lautréamont, Paul
Celan, Herberto Helder, Bashô, Byron, Shelley, Keats e Blake. Todos
passaram pelo liquidificador poético de Claudio Daniel e, de forma
antropofágica, foram mixados, resultando na polifonia
claudiana. Cá entre nós, esta postura do poeta, a de não ser um
continuador, prova que a poesia continua evoluindo, percorrendo novos
mundos onde jamais esteve (aqui este escriba faz uma brincadeira com o
seriado pop-cult da década de 60, Jornada nas Estrelas).
Nesta sua jornada pessoalíssima o escritor
utiliza muito do simbolismo com animais, para obter o efeito desejado na
mente do leitor, que pode sair aturdido ou desorientado de algum poema
de Figuras Metálicas. Até os títulos e subtítulos de seus
livros são admiravelmente inusitados: Um jogo de escorpiões apodrece
as horas, A sombra do leopardo. Na sua escrita surgem
corvos, formigas, elefantes, garças, etc. desorientando a estética. Os
bichos aparecem aí em contextos peculiares. É um trabalho que causa
impacto em quem o lê. O impacto de revelar uma visão estranha do ser
em foco e o que este ser está fazendo. Podemos ver "(...)
jaguares/sob as unhas", "fabricar com as próprias mãos/um pavão real" e
outros, muitos outros exemplos de como Claudio Daniel nivela em
importância as ações humanas e animais. Afinal, o homem é ou não é
apenas e tão somente um animal que pensa?
Cada peça de Claudio Daniel é uma viagem e
tem uma potencialidade inaudita de significações. O autor explora num só
poema diversos pontos de vista. Assim, uma coisa, um objeto, pode
transcender as funções que tem e ser deslocado de maneira que o sentido
e o significante troquem de papel, ora se tornando mais obscuros, ora
mais claros. Isto indica que esta escrita está para além dos
significados. Ela lida de uma forma peculiar com o simples entendimento.
É uma poética da entrelinha que transcende a trivialidade de uma escrita
naturalista.
Também as cores aparecem de modo mais
incisivo nesta poética. É a cor servindo como suporte para a exuberante
imaginação do poeta. É assim em "Pequenas Aniquilações", na seção "Para
dizer as cores do branco", em poemas intitulados "Vermelho", "Verde",
"Amarelo", "Azul" e "Branco". Usando a palheta da criatividade, o poeta
também inventa cores numa poesia de sutilezas. Assim desarticula o óbvio
quando diz: "Azul/o que dói", "(...) corte branco/sol no espelho/da faca
(...)" e em "Paisagem marinha" elabora um hino à cor homenageada: "o
azul mais azul/além do cetim da safira/e do lápis-lazúli".
Por tudo isso, e por além disso —
Claudio Daniel é prosador, tradutor, antologiador, jornalista e
editor da revista Zunái — ele merece um lugar especial na poesia
brasileira. Lugar entre os grandes. Que vem sendo conquistado aos poucos
em cada novo lançamento. É bom lembrar que ele ainda deve percorrer um
caminho de iluminação intensa, pois tem somente 42 anos. Resta desejar
que ele, cuja obra é sólida, continue desafinando o coro dos contentes.
Com toda a sua força e inventividade. Nada de envelhecer a
estética!
O livro: Claudio Daniel. Figuras
Metálicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 2005.
outubro/2005
Rodrigo de Souza Leão, 1965, Rio de Janeiro. É autor do livro de poemas Há Flores
na Pele, entre outros. Participou da antologia Na
Virada do Século — Poesia de Invenção no Brasil (Landy, 2002).
Co-editor da Zunái — Revista de Poesia & Debates.