Não poderia haver título mais apropriado para o primeiro livro de Cristiano Moreira que esse "rebojo", de múltiplos sentidos que se casam com a poética renovadora que ele vem construindo.
Significando um redemoinho ou contracorrente causada pela sinuosidade do rio ou pelos acidentes do seu leito ou das suas margens, denota de forma direta a intenção do poeta, presente em todo o livro, de fazer o registro da vida e da paisagem de sua região em suas nuances, observando os hábitos ribeirinhos e marinhos e percorrendo a vida e a cultura dos pescadores, sua lida com a água, os barcos — e o tempo, que ordena sua existência definindo se haverá pesca ou não.
Por isso rebojo é também a mudança repentina de direção do vento, que pode acabar com a pesca e determinar o retorno à margem, denotando o potencial poético a ser explorado e que Cristiano alcança, transcendendo o chão reles do descritivismo e situando-se no amplo campo da linguagem poética em sua melhor acepção.
Para isso, essa poética apresenta a grande virtude de se tecer como uma renda de bilros, típica do litoral catarinense que lhe é caro (nasceu em Itajaí, em 1973) através da escolha preciosista — mas não artificial e exagerada - das palavras, que se ordenam e compõem com os adequados chuleios como um redemoinho, na contracorrente (rebojo) da linguagem comum, pasteurizada, do dia-a-dia, que regra o pensamento.
Essa escrita, assim, se constitui em seu preciosismo delicado como aquela observação de Edmond Jabès, de que "cada palavra é um ninho onde se acoca um pássaro da dúvida", por isso possibilitando uma grande fruição ao leitor, que tem diante de si uma paisagem renovada e enriquecida por esse olhar, que suspende a leitura a uma altura em que o silêncio rege e se ouve a respiração, se vê as crispações das ondas, visualizadas e sonorizadas nos versos: "ouço o aço/ abrindo a pele do rio" — e é apenas um barco ou baleeira passando com todo o seu peso, delicadeza e violência.
Como um vento novo, um rebojo inesperado, mas para a poesia bem-vindo, suspendendo a pesca momentaneamente e trazendo os peixes colhidos para a mesa, essa experiência poética se sugere como no dito de Éluard, mencionado no livro, segundo o qual a linguagem poética seria como "o rio sem margens, é o ideal dos peixes", que se abre para exploração, "o peixe sofrido de quinze dias/ o peixe atravessado pelo metal/ do anzol, do cárcere capital/ o peixe que fede, mas alimenta".
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Cristiano Moreira. Rebojo. Florianópolis: Editora Bernúncia, 2005
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Sintomas e Remédios da Poesia Contemporânea
dezembro, 2005
Ademir Demarchi nasceu em Maringá-PR, em 07.04.1960, e reside em Santos-SP desde 1989, onde trabalha como redator. Formado em Letras/Francês, com Mestrado (UFSC-1991) e Doutorado (USP-1997) em Literatura Brasileira, é editor da revista BABEL, de poesia, crítica e tradução. Tem quatro livros publicados; poemas, artigos e ensaios publicados em livros, periódicos e sites como Revista Coyote, Revista Oroboro e as revistas eletrônicas Agulha, El Artefacto Literario, Tanto e Critério.