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A recente publicação de Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século,
organizado por Marcelino Freire (Ateliê Editorial) é bem sintomático do interesse
de uma nova geração de escritores pelo miniconto e bem pode ser uma boa moldura
para adentrar em Mínimos, Múltiplos,
Comuns de João Gilberto Noll (Editora Francis).
Se na coletânea organizada por Marcelino
Freire, o limite era de 50 letras, nos trabalhos de Noll, todos publicados
durante mais de três anos na imprensa escrita, seu limite era de 130 palavras.
Logo chama atenção o esforço bem distante da liberdade plena da arte moderna,
o enfrentar das exigências de um espaço limitado, no caso de Noll, de um texto
a ser publicado em jornal. Longe de restrição à criação, trata-se de um desafio.
E logo que algum adorniano mal-humorado venha falar em indústria cultural, podemos
lembrar que trabalhar dentro de formas pré-estabelecidas, seguindo regras, não
é novidade, está presente em toda uma tradição poética, dos sonetos aos haiku
japoneses.
Há mesmo uma genealogia desta poética
da brevidade que tem como um de seus últimos frutos o miniconto, sem mencionar
os slogans publicitários e as manchetes jornalísticas. Dos pré-socráticos a
Nietzche, Cioran, passando pelos românticos, todo um pensar filosófico se construiu
por fragmentos e aforismos, buscando minar, criticar, polemizar com os grandes
criadores de sistemas de pensamentos totalizantes e fechados. Hoje em dia, este
estilo é uma resposta à pergunta se é possível pensar em meio à rapidez da cultura
de massa, à vertigem do mundo das informações e dos clichês. A literatura não
se fez de rogada, produzindo grandes pequenas obras-primas, não só na poesia,
mas na ficção, desde Baudelaire, Kafka, Borges, entre outros. O cinema gerou
o videoclipe, os poemas visuais e filmes de um minuto.
Se o conto era uma narrativa que
tem que ganhar o leitor como um soco, o que nós leitores podemos esperar de
um miniconto? Ao iniciar a ler a coletânea de Noll, pensei cá comigo, que prazer
depois de um dia estafante de trabalho poder ler algumas estórias do início
ao fim em tão pouco tempo! Mas o risco era ler estes pequenos textos como quem
vê televisão ou vai a uma bienal em que ao fim não se lembra do que viu ou leu
no início.
Os minicontos, e consideramos estes
de Noll como fascinantes exemplares, se situam numa tensão entre a banalidade
da notícia, dos pensamento feitos e frases categóricas dos livros de auto-ajuda
e a reflexão concentrada. A narrativa se faz quase um quadro, numa situação
que possa não reduzir, mas intensificar, pela própria elipse e brevidade, todo
um drama, "instantes ficcionais" nas palavras precisas do prefaciador Wagner Carelli, para melhor definir a
diversidade destes textos, meio causos, parábolas pagãs, retratos de personagens
sem nome ou quase que só definidos por um nome, um gesto.
Se a obra de Noll
desde seu início buscou, por um lado,
uma escrita da contenção, cinematográfica, verdadeiros road
books, repletos de vagabundos, nômades, exilados no seu próprio país, onde
quer que estejam, irmanada aos
trabalhos de Peter Handke e Wim Wenders, que se apresenta de forma mais bela
na novela Rastros de Verão (Companhia
das Letras, 1986); há uma outra entrada, uma poética do corpo, do excesso,
já identificada em A Fúria do Corpo
(Companhia da Letras, 1981) por Silviano Santiago em ensaio do agora reeditado
Nas Malhas da Letras (Rocco), que
pode ser ampliada a todo um debate que delimita uma poética da materialidade,
para além dos ensinamentos de Gaston Bachelard e sua imaginação material, sobretudo
mais recentemente, pelos trabalhos de Hans Ulrich Gumbrecht, e entre nós, por
João Cezar Castro Rocha.
Esta poética da materialidade bem
se casa com uma escrita da brevidade no último trabalho de Noll, sem cair nos
cacoetes que cada vez mais se firmam no cinema e literatura brasileiros que
confundem realidade com estetização da violência, linhagem vitoriosa na mídia,
epígonos pops de Rubem Fonseca e Tarantino, e que apenas reafirmam mais um momento
neonaturalista na literatura brasileira, mapeado por Flora Süssekind desde o
século XIX em seu Tal Brasil Qual Romance
(Achiamé, 1984).
Talvez a leitura deste último trabalho
de Noll ganhe ao ser inserida no "retorno do real", como analisado por Hal Foster, Mario Perniola, Zizek
e, entre nós, por Karl Erik Schölhammer. Não o realismo extremo de corpos dilacerados,
que funcionam como retorno do que toda uma estética do simulacro recalcou, ao
dissolver a realidade e o corpo na imagem, defendendo uma arte de constantes
citações, pastiches e fetiches tecnológicos.
Neste quadro, Noll tem a maestria
de fazer emergir poesia e delicadeza das experiências de maior pobreza afetiva
e material, sem espetacularizá-las. O caminho é menos da contundência do que
do gesto sutil, mesmo quando intenso. Um cotidiano poético, quando nada lhe
seria propício, emerge na esteira
das crônicas de Rubem Braga e dos alumbramentos de Manuel Bandeira, no caminho
do sublime oculto, trajetória indicada por Davi Arrigucci, do sublime a partir
das coisas banais; portanto, menos da austeridade minimalista e mais da grande
tradição moderna e modernista, não
como fuga, escapismo, mas alternativa estética e ética.
O livro: João Gilberto Noll. Mínimos, Múltiplos, Comum. São Paulo,
Editora Francis, 2004.
Denilson Lopes é
professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, autor
de Nós os Mortos: Melancolia e Neo-Barroco
(Rio de Janeiro, 7Letras, 1999) e O Homem
que Amava Rapazes e Outros Ensaios (Rio de Janeiro, Aeroplano, 2002).