O multipremiado João Gilberto
Noll lança seu melhor romance, Lorde (Francis, R$ 112
páginas, R$ 32), seu primeiro inédito publicado pela W11, editora que
está relançando toda sua obra. É um livro diferente e — simultaneamente
— complementar a Berkeley em Bellagio, sua ficção
anterior de 2002. O que muda? Em Berkeley em Bellagio,
o personagem escritor passa a perder o idioma ao voltar de uma temporada
italiana e só consegue se comunicar no Brasil mediante língua inglesa
ginasial. Em Lorde, o protagonista de meia idade, mais
uma vez um escritor, tenta apagar os vestígios de sua nacionalidade
brasileira, "habitar outra carnação", em uma temporada em Londres. O que
era esquecimento acidental em Berkeley em Bellagio
converte-se em esquecimento propositado em Lorde. O
estranhamento irrompe desde o princípio, atendendo os caprichos da
sedução e o aliciamento do insólito. Um convite do exterior é aceito no
escuro, com as despesas custeadas por um misterioso inglês. Trabalho?
Prazer? O passageiro, na verdade, desconhece o que vai fazer na
Inglaterra e mesmo assim viaja.
Em romances de Noll, sinopses
são perigosas. Exigem cuidado. Esse personagem, escritor gaúcho com sete
livros publicados, se aloja em um apartamento no bairro de Hackney, ao
norte de Londres, junto de imigrantes vietnamitas e turcos. A paragem
está excluída dos mapas de turismo e é percorrida, na maioria das vezes,
a pé. Sua única preocupação é se abandonar, exercitar a estranheza até
bem depois dos limites. Assumir um heterônimo, uma carne alheia. O
primeiro ato é comprar um espelho, que logo é virado para a parede
porque o controle diário da aparência não o ajuda a ser diferente. Em
seguida, decide pintar o cabelo de castanho claro e começa a ficar
excitado consigo. Ele se apaixona por aquilo que deixou de ser.
Lorde apresenta uma história de amor, uma história de
amor espelhado, de narcisismo solidário. Em cada encontro, o personagem
vai transmudando, se redescobrindo, sacrificando os condicionamentos e a
identidade que o proíbe de sentir o cotidiano, apesar de escrevê-lo. Um
exemplo é a paixão entre chás e aromas pelo professor Mark. "Por fim
parou, fixou o olhar em mim e me convidou a entrar na banheira com ele.
Ah, eu já não sabia dividir a minha nudez com ninguém". Releitura de
Narciso, Noll administra o ego, censurando-o antes de terminar no elogio
da vaidade ou em denúncia da desvalia.
A prosa desliza voluntariosa
para ação, sem permeios ou piruetas. Não há gente psicanalisada ou a
atmosfera intimista de querer entender e de se fazer entender aos
outros. "Tinha me acontecido de ultrapassar aquele indívíiduo que eu
mecanicamente formara para os outros". Noll lida com uma subjetividade
objetiva, ficando livre para surpreender. Ultrapassa o romance de idéias
em nome de uma encenação em tempo real de desejos, inquietações,
ardências, capaz de atingir o êxtase do grito e do gemido e consagrar o
instante para não coagulá-lo em pensamento. Ele interpreta a vida, não a
defende ou a acusa. Executa parágrafos longos e descritivos, uma música
estática, que transporta o leitor pela sua força e intensidade. Como a
paisagem onírica incitada pelas composições de Philip Glass, utiliza
consecutivas repetições de modo que a entrada de um novo acorde enfatiza
o corpo e a textura do som, tornando-se ainda mais revelador. João
Gilberto Noll reduz a música aos seus elementos primordiais para
acentuar as diferenças. Primitivismo e magia, em que o ritmo é mais
importante do que o tema e resgata a sublimação da experiência com o
mundo.
Em Lorde,
uma mudança significativa acontece na trajetória de Noll: uma paz que
não existia nos enredos nervosos do romancista. Uma serenidade difícil
de se encontrar na prosa contemporânea. As figuras de Noll continuam a
não ter noção do destino, do desembarque. São aparições em linguagem
viva, com as pupilas dilatadas. Não sabem onde vão terminar e dão o
mesmo valor aos fantasmas do que às novas amizades. A conversa de fora é
uma conversa por dentro, onde o protagonista mistura apelos externos com
internos, negocia lembranças, trafica sensações, vacila em impressões
tardias. Mas a figura de Lorde tem uma característica
que o diferencia do ator de Harmada ou dos viajantes de
Hotel Atlântico e Canoas e Marolas:
conta com um lugar para voltar, Porto Alegre. Antes, a cosmogonia de
Noll não desfrutava de um endereço, de um regresso possível. Agora, isso
muda até o tom da fábula, serena a dicção, porque os laços criados com
uma origem asseguram uma espécie de conforto espiritual e de funções
sociais demarcáveis.
Nem mais os girassóis
elétricos de Van Gogh, muito menos a cor explosiva das banhistas de
Cézanne. Noll pára diante do vaso de flores calmas e esbatidas de
Gauguin. Isso não significa uma mudança de estilo, porém a maturidade de
um olhar, que passou por provas e provações e adquiriu o seu direito de
celebração. Noll completa sua proposta de "desativar o homem", anunciada
em Canoas e Marolas, e o cumpre alcançando a calmaria,
depois de desafiar os métodos, as convenções sociais, as opções sexuais
pré-determinadas (como ao trazer a homoafetividade à tona sem um
engajamento que o justifique ou peça licença).
A forma literária que
possibilita esse acesso ao homem dentro do lobo é curiosamente
encontrada no abandono do hiperrealismo, em clara retração do campo
lingüístico. Noll disse que "todo livro narra a história de uma fé". A
fé já é o milagre.
O
livro: João Gilberto Noll. Lorde. São Paulo, W11 Editores,
2004.
Fabrício
Carpinejar é autor de As Solas
do Sol (Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1998), Um
Terno de Pássaros ao Sul (São Paulo, Escrituras
Editora, 2000), Terceira Sede (São Paulo,
Escrituras Editora, 2001), Biografia de Uma Árvore
(São Paulo, Escrituras Editora, 2002), Caixa de Sapatos
(São Paulo, Companhia das Letras, 2003) e Cinco Marias
(Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2004). Mais em seu site,
blogue
e aqui.