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Curiosa é a trajetória de Moacir Amâncio. Quando quase todos se iniciam pela poesia, ele começou pela prosa. E quando a maioria converge do experimentalismo para a conformação, ele enfrenta o áspero caminho contrário. Penso que um dos equívocos da crítica literária seja o de resguardar, sob as asas da literatura, dois pólos tão díspares da manifestação artística, a poesia e a ficção, quando, parece, esta dialoga com a história e aquela com a filosofia. O grande diferencial que Moacir Amâncio oferece, no quadro atual da poesia brasileira, é exatamente este: ele domina, como poucos, o seu ofício, e, como menos ainda, tem o que dizer.

 

Se em Estação dos Confundidos, novela de 1973, Moacir Amâncio flerta com uma literatura bem-comportada, embora de excelente fatura, na coletânea de contos O Riso do Dragão, de 1981, já se percebe nitidamente o desconforto do autor com os limites do gênero prosa de ficção. As tramas se rompem; a narrativa cede lugar a uma profusão de imagens aparentemente desconexas; a objetividade se esvai. E é nesse impasse, que dura 11 anos, que ocorre a gestação do poeta.

 

Nesse período, acredito, Moacir Amâncio buscou no silêncio a lição do que viria se tornar a marca de sua poesia: o não dito. E, a partir de 1992, com Do Objeto Útil, reiniciou sua carreira literária, agora totalmente dedicada à poesia, consolidada com os títulos Figuras na Sala (1995), O Olho do Canário (1998), Colores Siguientes (1999) e Contar a Romã (2001). Agora, lança, pela simpática Travessa dos Editores, de Curitiba, Óbvio, um livro, sem dúvida, que desdobra e sintetiza suas preocupações estéticas.

 

Óbvio compõe-se de três partes. A primeira, Luz Acesa, um longo poema em decassílabos, ocupa quase dois terços do livro. A segunda, Arghvan, um poema escrito em inglês (sim, em inglês! — o autor já havia questionado a mordaça das línguas anteriormente escrevendo em espanhol Colores Siguientes). E a terceira, que dá título ao livro, uma composição em sete seções. Três partes, na verdade, que se entrecruzam e se explicam, que têm um único alvo: a luz e seus espectros (luz aqui entendida conotativa e denotativamente).

 

Talvez possamos tomar como parâmetro inicial Luz Acesa. Aos mais afoitos, pode sugerir a poesia de Moacir Amâncio uma dicção cabralina — e não será equivocada a analogia. Porém, o que em João Cabral de Melo Neto é descrição do indescritível, em Moacir Amâncio é a narração do indizível, a fuga da concretude, a tentativa de agarrar o inapreensível. A metáfora da luz acesa é significativa: o poeta não busca tatear barrocamente os fundos incompreensíveis da mente humana, mas encontrar, como um novo Diógenes, a verdadeira substância das coisas, o que há para além dos objetos quando iluminados.

 

São 183 seções, variando de um a 13 versos, rigorosamente decassílabos, que enfeixam sutis uma narrativa coerente, que se inicia com o incandescimento da lâmpada "suspensa sobre a sala", "aquário onde não prende o conteúdo", e finda com a "ausência suposta" da luz. Nessa trajetória entre o aceso e o apagado, entre o que é artificial e o que é treva, o poeta como que investiga aquela fagulha, o fiat lux que o Logos inaugura. Aqui, evidencia-se o peso da tradição judaica: o poema vislumbra a manifestação, para além da clara luminosidade, daquele cujo nome não se pronuncia.

 

Arghvan, a segunda parte do livro, poema escrito em inglês, estabelece sutis vínculos com Eliot e seu mestre Pound e pode ser compreendido com um inteligente comentário (teológico) à Luz Acesa, resumido no verso: "the light doesn t project its/shadows, on the contrary". Arghvan é uma espécie de "conto em versos", um "conto" com fins de aprendizado, uma peça "pedagógica", maiêutica. Finalmente, na terceira parte, Óbvio, o poeta como que retoma os temas anteriores e faz avançar sua investigação, que termina justamente onde começou: a força da imagem só é possível porque "a letra o/espaço/move".

 

Moacir Amâncio é uma rara voz da poesia metafísica no Brasil. Se desejarmos encontrar sua família literária, será necessário remontar aos fins do século 19, quando reinavam nomes como Mallarmé e Yeats, ou meados do século passado, em nomes como Eliot e Wallace Stevens.

 

 

 

 

abril, 2005
 
 
Luiz Ruffato é escritor, autor de Eles Eram Muitos Cavalos
 

 
 
(Texto publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo)