CÂNCER

 

Dentro do poema

ou do ovo,

nenhuma virtude

decerto cabe.

 

Nenhuma certeza

caberá tampouco

dentro da língua,

sintaxe ou fala.

 

Nenhum silêncio

por mais sonoro,

difícil, se rasga,

em nenhum tecido.

 

Apenas o verso,

sobre o chão,

cresce, límpido,

— eterno, mortal —

 

como um câncer.

 

 

 

 

 

 

A BATALHA

 

1. a espera

 

O poema aguarda:

aguarda, tranqüilo,

o tranqüilo reinício

da calma batalha

na vasta planície

de toda palavra,

onde o nada é água

que logo evapora;

na vasta planície

onde o verso arde,

sob o sol quente,

à procura de oásis;

com líquida sede

de brancos papéis

e castas palavras;

o poema, no deserto

de toda linguagem,

dir-se-á eterno,

como se buscasse

ao instante seguinte

morder a longa língua,

a cauda do nada,

o núcleo do silêncio.

 

 

2. a trincheira

 

Cavo este solo:

chão pulverizado

de áridas palavras,

entanto cálidas;

 

esta minha mão

(de poucos dedos,

fundos estigmas),

todavia, escreve

 

(já sem esperança)

sobre o solo áspero

onde ainda brotam

úmidas palavras;

 

de onde brotam

rosas pútridas,

que nutrem a fome

de podres sílabas;

 

que nutrem, ácidas,

o silêncio amargo

de coisas sonoras

presas à boca;

 

esta rósea boca

que não pronuncia

certas palavras,

invisíveis ainda.

 

 

3. o desafio

 

De tua língua, poema,

tu não me guardas;

a palavra maldizente,

invisível vocábulo;

 

tua metáfora inviável;

de ti, poema, lúcido,

eu nunca me guardo;

nesta manhã ácida,

 

fruto do desamparo,

a morte está longe

(embora ao nosso lado),

quase como um pássaro.

 

 

4. o anúncio

 

O poema marcha

quase sem fala;

flores solitárias

crescem do nada;

 

logo surgem nuvens

no céu aberto;

a espera de um dia,

assim, plantada,

 

parece uma pedra

no meio da sala;

uma flor que brota

da áspera poesia

 

de uma palavra;

uma palavra única,

que dá o calmo início

de uma batalha.

 

 

5. o combate

 

De ti, poema,

não me guardo;

teu belo rosto,

esfinge do ocaso;

tua tenra boca

onde palavras

brotam, insontes;

o árduo combate

de mudas sílabas;

tua pele macia

de carícias intata;

tua mitologia

de castos lábios;

entanto, eterno,

o sono prossegue

durante a manhã

repleta de tédio;

cadela mordida

por alvos dentes

de alvar poesia,

enquanto o poema

(surdo vocábulo

de força bruta),

brota do nada.

 

 

6. o clímax

 

O poema atravessa,

como lâmina afiada,

o silêncio pesado

que cresce da fala;

o trabalho da manhã,

ainda não concluído,

desta muda linguagem

de sons e fonemas;

roídos mecanismos,

engrenagens da língua,

do sigilo quase mudo

em nossas bocas cheias

de pútridas palavras;

palavra, enigma do som,

ainda não pronunciado,

cuja sintaxe ainda jorra,

como jorra a clara água

da seca fonte; fonte

que não sacia a sede,

e jamais extingue a fome

de outras palavras; vazias,

em seu magro conteúdo,

contudo quase tão belas

como um homem morto

em pé; palavras ainda livres

de qualquer sentido, mas

que jorram frescas da fonte,

da fonte que nunca seca;

as mesmas palavras que,

belas, nascem de qualquer

fonte; fonte de coisas puras,

ainda sem nome; fonte

igual a qualquer fonte;

fonte de sons, de coisas

ácidas, alucinadas; som

que nos impele à fala;

a mesma fala, soturna,

que nasce de qualquer

língua; do fácil silêncio

de qualquer palavra;

deste combate diário

entre o sono e a alegria,

enquanto o poema cava

o árido chão da poesia;

palavra, difícil palavra,

no verso ainda mínima

que nasce, rosa tranqüila,

em meio a um deserto

de úmidas hortaliças.

O poema jamais cessa

seu trabalho inútil,

ainda não concluído,

pela extinta manhã.

Enquanto surge o dia

o poema atravessa,

lâmina em brasa,

a pele do silêncio:

o núcleo do nada.

 

 

7. a trégua

 

De ti, poema, louco,

eu não me guardo;

entre o nada e o silêncio,

lavras o impossível;

 

entanto, acima do espaço

urbanizado do papel,

tua bandeira tremula

como símbolo de guerra.

 

 

 

 

 

 

DOIS DE MARÇO, 2001

 

Em vão percorro com as mãos, frias,

a alva superfície deste papel

que me chama, humilde, ao verso,

atrás do silêncio e da palavra.

 

Já não resta nenhuma esperança

agora que o dia caíra sobre mim,

como cai um vaso sobre a cabeça

e parte-se ao meio, ao meio dia.

 

Inútil colorir muros, paredes,

escrever poemas, enviar cartas.

Lembrar, triste, a morte de fulana...

Eu sei que é completamente inútil.

 

Há trinta anos em tua memória

a morte sequer existia ainda;

tampouco havia estas palavras surdas,

endereços, ruas, nomes, pessoas.

 

Faz trinta anos, e ainda te lembras

de tudo, ou quase tudo, e tudo é nada;

sobretudo, como era vasta a vida,

embora tuas mãos fossem pequenas.

 

Trinta anos pesam muito, como chumbo.

São milhares de chuvas e domingos,

de horas multiplicadas ao infinito.

Milhares de poemas jamais escritos.

 

Noites insones à espera de alguém

que nunca viera bater à tua porta.

São trinta anos de uma espera estúpida.

Trinta anos de chuva e desperdício.

 

Mas é inútil passares em revista

velhos sonhos, objetos de família,

da mesma forma calma e esquisita,

se há trinta anos tu sequer existias.

 

Se há trinta anos ainda te procuras

como estivesses em parte alguma,

e buscasses reconhecer a ti mesmo

sob o disfarce de um rosto jovem.

 

Trinta anos passam muito depressa.

Como, então, indiferente e mudo,

falar da solidão que há no poema,

se toda imagem cai em desuso?

 

Inutilmente ainda te perguntas...

Nenhuma voz te responde em eco,

entre palavras, velhas conhecidas,

a mesma velha pergunta insonte.

 

Inutilmente acordas e levantas,

e inutilmente abraças o teu corpo,

te enroscas confusamente em ninguém

e gemes, e amas a ti mesmo no escuro.

 

Há trinta anos não existia mesmo.

E, contudo, aí estás, velho e perplexo,

como se entre ti e o abismo dos séculos

não houvesse o vácuo ou o eterno.

 

 

 

 

 

 

A CEGUEIRA DE BORGES

 

De olhos fechados escrevo o poema,

com letras douradas de mudo alfabeto,

versos que calam o silêncio e o eterno;

palavras que guardam o sêmen e o sexo,

além da carne que há em todo universo

de sons e fonemas sem língua, decerto.

 

De olhos fechados eu rasgo o poema,

com as mãos que, ontem, pariram éguas,

o cavalo das distâncias, rindo em léguas;

enquanto de mim mesmo rio sem pregas,

de olhos bem fechados tateio às cegas,

abrindo caminho em meio as trevas.

 

 

 

[De Primeira lição de física]

 

 

 

 

 

 

II

 

O CORPO

 

FOI QUANDO, na manhã seguinte, o círculo do céu fechou-se como um sinal, uma concha lúcida, escura e indevassável, de modo que não pude mais saber se o fim ainda principiava pelas frestas do silêncio. Aproximei-me e vi que o dia era belo e azul como uma pomba branca, exangue. Então, ordenei: "Haja Luz!". E houve luz. E vi que a luz era boa, e vi que o dia era bom. Mas não sabia mais porque tudo aquilo ainda me enfarava, ou porque o dia cheirava mal, entre corredores repletos de vermes e vômito, enquanto o cadáver, com um riso fácil, escarnecia de minha raiva indômita, sem motivo aparente. Neste momento, detive-me um pouco mais para observá-lo, aquele corpo ancestral que jazia há séculos ali, entre as flores, enquanto seu odor fétido se espalhava pelos quatro cantos do dia morto, sufocando a vizinhança com um hálito deletério e irrespirável. Nada em suas feições me pareceu reconhecível, de modo que seus traços fugidios em vão tentavam me comunicar algo que não conseguia mais lembrar, embora a minha memória me pregasse peças a todo o momento, sobretudo quando me deparava com a sua face bela e risonha desdenhando de meu esforço. Todavia, o fardo de sua presença já estava se tornando insuportável demais para carregar durante o tempo que ainda faltava para concluir a minha missão, o que me fez desejar a sua desaparição completa. Isto começou, a bem da verdade, a ser uma hipótese bastante aprazível, conquanto o dispêndio fosse bastante elevado até mesmo para mim. Eu estava certo disto, principalmente quando fui ao escritório fazer o levantamento por meio de planilhas que havia elaborado com todo o cuidado, atentando para todas as estatísticas, porém sempre obtendo, ao final, o mesmo irrisório resultado. Não havia, portanto, o que fazer, pois eu já não conseguia ocultar a sua podridão, apesar dos esforços ridículos que empreendi naquela tarde recompondo a duras penas o tecido gasto de sua pele, plantando hortênsias e murtas ao redor de minha residência a fim de estancar o mau cheiro que manava de maneira evidente e insofismável de meu porão. De qualquer modo, aquele cadáver estava consumindo quase todos os meus recursos, enquanto a minha criatividade, por igual, começava a escassear diante da ausência de expedientes que certamente poderia usar para o meu ambicioso projeto. Achei, por um momento, que já era tarde demais e que tudo estaria, de modo irremediável, perdido; o seu tecido já estava rígido, apesar do viço púbere que ainda havia em sua carne fresca e macia, enquanto as flores o recobriam, em vão. Só mais tarde percebi que o meu esforço era completamente inútil, como qualquer coisa que fizesse para compensar todo o investimento que fiz naquele rito que meus ancestrais me deixaram como legado. Eu, por meu turno, não poderia continuar por mais tempo naquela tarefa improfícua, uma vez que o corpo recusava-se aos ofícios que havia celebrado em sua memória. Não poderia, sobretudo, prosseguir calmo e indiferente àquela situação extravagante, posto que o meu desejo me consumisse em febres e delírios atrozes, que me esgotavam por completo, deixando em mim uma compleição débil demais para sair às ruas sem que fosse notado pelos meus verdugos. Aliás, há tempos que os pressinto em meus domínios, em momentos de silêncio e solidão, com a clara impressão que espreitam-me para além das fronteiras de minha propriedade. Não posso avaliar quem o seja, mas decerto não são os que vejo todos os dias, uma vez que percebo, com toda clareza, quem me hostiliza, apenas pelo olhar. Contudo, não sucedeu nada ao longo daquelas semanas de espera, pois ninguém, entre os que freqüentavam as cercanias de meu território, pareceu-me suspeito de alguma atividade que me fizesse temer pelo futuro. Entretanto, fiquei tão ocupado com o corpo, todos os dias, que às vezes esqueciame como meus inimigos costumam estar munidos dos mais variados e inteligentes ardis, embora com certeza pudesse me antecipar a todos os seus movimentos, bastando para isto que se colocassem em ação à luz do dia ou da noite. Enquanto isto, podia de forma tranqüila dedicar-me à leitura de meus antigos escritos, sentado solenemente à varanda, ouvindo os ruídos de galhos quebrando-se entre os arbustos da floresta e os uivos dos lobos para a lua cheia. Deste modo, os cuidados com o corpo não ocupariam o meu tempo em período integral, como vinha acontecendo durante as últimas semanas; isto me assegurava disponibilidade e ensejo para o exercício de outras tarefas que requerem a minha diligência, além de desviar a atenção de meus algozes para outra direção até que, exaustos e sem recursos, teriam que interromper a campana. O corpo, a esta altura, não teria mais qualquer importância para eles, pois a ausência de pistas os conduziria certamente a lugar nenhum, sendo obrigados, portanto, a abandonar o meu caso. Depois de algum tempo, o assunto não importaria nem mesmo a mim. O corpo, entretanto, ainda provocava em mim alguns arrepios e embaraços irremediáveis, o que tentei remediar mantendo-o afastado de toda exposição indesejável, sobretudo para o caso de algum incauto, porventura, invadir a minha residência com o propósito de denunciar-me, hipótese, aliás, pouco provável e, em definitivo, remota. Mas a presença do corpo continuava tenaz em minhas lembranças, pois era de uma mulher, linda como a morte, enquanto o tempo lá fora declinava sem que nada pudesse ser feito para evitá-lo. Como, portanto, eu poderia prosseguir em meu delito com total quietude e desprendimento? Eu havia feito uma compra de vulto em todos os supermercados e mercearias das redondezas, de modo que a casa estava lotada de víveres e ferramentas necessárias até o fim de meu empreendimento. Contudo, a algazarra das crianças que vinham brincar à porta de minha casa me incomodava de maneira contumaz, a ponto de desejar cometer uma infâmia, algo impensável, pois atrairia todo o ódio da vizinhança sobre mim, mas foi suficiente apenas espantálas com alguns expedientes que havia reservado para situações como estas. Depois disso, nunca mais as vi, então pude retomar o meu trabalho, embora toda aquela irritante distração por alguns instantes desviasse o rumo de minha concentração, exatamente como quando recebo visitas inoportunas, obrigando-me a refazer parte do percurso e tomar certos cuidados extraordinários com o cadáver, que não cessava de apodrecer às minhas costas. Quando isto acontece, às vezes sinto um bafejo, como uma golfada de vento ou o hálito quente de um animal, soprando a minha nuca por detrás. Sou obrigado então a cessar as picaretadas por alguns instantes e sair para ver o que acontece lá fora, em meu jardim. Por um momento, penso que as crianças estão de volta para infernizar-me com suas travessuras diabólicas, mas percebo que os ruídos são surdos e os movimentos da criatura ágeis e rápidos demais. Então sinto que a vida se desprende do calendário, olho para a minha varanda quieta, onde algumas pegadas de água e um odor de pétalas fazem-me esperar, sôfrego e atônito, a fim de ver o vulto que se movimenta habilmente entre as sombras de minha propriedade. Então, como se uma fera saltasse do meio da escuridão indiscernível, tomo um susto e vejo aquele corpo putrefato correndo e dançando, nu e selvagem, em meio às plantas, gerânios, bromélias, buganvílias e jardins esquecidos, sob os telhados, mirantes, sobrados e mais além, onde a vista do mar alcançava-me invariavelmente entre sorrisos e sargaços. Neste dia, senti um grande ódio apossar-se, espasmódico, de mim, e quis mastigar a flora com os próprios dentes, enquanto um calor intenso consumiu-me por dentro como um sol que ardesse impiedosamente sobre a cidade. Quis romper o assoalho do alpendre com as mãos, saltar entre os arbustos com a velocidade de um guepardo faminto e assaltar, de modo violento e contundente, a carne majestosa daquele corpo de formas espetaculares, branco e pálido, como uma página virgem. Foi neste momento, fulgurante e repleto de êxtase, que me arrastei em silêncio entre cadeiras e mesas, quando fui ter em um amplo espaço onde a ausência relinchava, fundindo-se ao nada e ao tédio. Era uma biblioteca, com uma variedade incontável de tomos e volumes, o que me despertou a curiosidade; tomei um dos livros à mão, comecei a folheá-lo de maneira distraída, quando descobri que aquele corpo possuía uma genealogia antiqüíssima e imortal. Percorrendo as páginas aleatoriamente, reconheci o seu rosto em uma das múmias da tumba de Ramsés; percebi-o entre uma das aias de Cleópatra e Marco Antonio e também o vi nos rituais dos templos de Elêusis; um afresco trazia uma perfeita descrição de seus traços mais peculiares, mas surpreendi-me de fato ao vê-lo em algumas tapeçarias persas e peças de porcelana do império de Alexandre, o Grande. Olhei com mais percuciência, e vi, por igual, Iracema, a virgem dos grandes lábios de mel. De qualquer modo, tudo aquilo fez sentido e começou a parecer-me extremamente inútil e sem importância. Levantei-me, fui até a janela, exausto e quase sem fôlego. Na desesperada tentativa de respirar, olhei a luz, a rua vazia, a porta aberta, meu corpo esquálido e nu, sob um céu palpitante de estrelas, quando olhei novamente para trás. Lá estava ele, o corpo, sorridente, de pernas abertas, como se me convidasse a penetrá-lo com fúria e asco. Fui. Contudo, o quarto estava escuro como a morte. Sangrei enquanto rolava até o canteiro com o corpo repleto de espinhos e garras que penetravam a carne dolorosamente. A noite era bela e turva. De repente, desatei a chorar. No meio das açucenas, angélicas, orquídeas, alecrins, comecei a chorar. Logo percebi que o cadáver ainda dava sinais de vida, então me aproximei de sua boca cheia de vespas e dentes que, no entanto, respirava, lenta e imperceptivelmente, de uma forma que quase não se ouvia. Ela gemia em meus ouvidos. Olhei para os seus seios que tremiam e intumesciam e tive vontade de mordê-los. Olhei para as suas pernas que se abriam e coravam e, em um derradeiro esforço, penetrei o seu sexo, com um desejo fremente e furioso. A garganta ardia, mas estava lúcido e senti que ela gozava com frêmito em minhas mãos. Pouco acima de suas sobrancelhas, jazia o orifício de uma bala, por onde escorria um líquido escarlate e vívido. Mas pouca atenção dei a este detalhe sórdido e insignificante, de modo que prossegui em minha leviandade noite adentro, sentindo o meu falo aquecido dentro de seu sexo cálido e macio com tal excitação que desejei permanecer naquela posição para sempre. Porém, o dia ameaçara transmontar, pois os primeiros raios de sol rompiam o horizonte; senti mais uma vez asco pelo que fazia e, sem júbilo algum, apartei-me daquele corpo que se decompunha e morria em meus braços; vi que era inútil trazê-lo de volta à vida, visto que o dia era escasso. Deixei-o ali, apodrecendo entre as folhagens, e fui dormir. No dia seguinte, não o encontrei mais. Então percebi que não me recordava mais do rosto do morto. Fui novamente à biblioteca, mas todos os livros haviam desaparecido, como em Alexandria, sem que tivesse sobrado a sombra do pó. Na dolorosa tentativa de reconstituir a voz do morto, o sorriso do morto, os olhos do morto, o aroma do morto, quase morri. Levantei-me e olhei para o relógio mais uma vez. Era exatamente meio dia e alguma coisa pela metade. Olhei para a janela. Olhei para o teto. Por último, olhei para o meu sexo ainda duro como uma vara inflexível e cheia de sangue. Olhei ainda para o piano à minha esquerda e logo avistei a porta. Ganhei a rua. A cidade reluzia luminosa e frenética, enquanto a multidão, sem pressa, passeava pelas avenidas. Prossegui até à praça. Ela não estava ali. Fui até a escadaria. Ela não estava ali. E porque ninguém mais estava ali, onde antes o corpo estava, onde antes ela estava, suja e ordinária, uma prostituta que se vende a qualquer preço. Esta cadela insone, que se abre como uma devassa, de uma forma que somente os deuses podem compreender e aceitar. Era tudo. Todos os objetos estavam jogados na rua, espalhados pelo quintal dos fundos, de forma que a vizinhança toda acendeu as luzes, a luz do sol; esta mesma luz inóspita que nos queima, o sol, o sal, a sala, o pálio aberto, não decerto nesta ordem, mas um delito qualquer, entre as flores pueris de maio, onde o cadáver é somente mais um, como qualquer outro, ordinário e sujo, com o mesmo sorriso de que rimos há séculos de nossa própria precariedade e imundície. E é por isto que ainda resisti contra todos, que inventei o cadáver, o sol, este artefato limpo, de aço puro, a insígnia de um corpo que matamos, entre orgias e orgasmos. O cadáver, no entanto, ainda fedia de uma forma repugnante, mas tinha o hálito de uma fêmea que arreganhava as pernas em flor, rindo entre crisântemos e obscenidades, rolando fulminante em êxtase pela garganta do vale, entre lírios conjugados. De repente, caí no jardim, solitário, alegre e contrafeito. Nem percebi quando o meu membro rompeu o hímen silencioso do corpo, de uma forma sublime como a última ruína de um templo grego. Falo endurecido sobre o dorso incendiado de Apolo, o fogo ardia incessantemente pelo chão ainda úmido e escorregadio. O cadáver sorria, em meio às hortênsias, onde escrevi o meu nome, assinatura do diabo entre suas coxas. Depois, não o vi mais. Lembro-me perfeitamente do dia de sua partida. Uma chuva torrencial caía lá fora, enquanto a mobília mofava. O dia havia se partido, no meio do caos. Vi apenas duas colunas rachadas, sobre o solo recoberto de pegadas de animais estranhos, que a custo reconheci em meio ao inventário de pistas inúteis, por mim catalogadas em um dos tomos que salvei da biblioteca. Não havia mais nada o que fazer. O corpo, mais uma vez, enganara-me.

 

 

 

[De Os dentes alvos de Radamés]

 

 
 
 
 
 
 

 

PSICOGRAFIA

 

Esse homem, que se vê no espelho, decerto não sou eu.

É antes uma farsa: — outra imagem que se perdeu.

Essa caneta, com que escrevo, não é minha.

Tampouco essa língua, com que falo.

É, antes, uma outra escrita:

— palavra que se adivinha.

Decerto não são meus estes versos

que, negros, cintilam

no alvo: — universo.

Não são minhas estas mãos

que, trêmulas, compõem o poema.

Não é meu este problema.

Perdido entre o que sou e o que faço,

sou, não sou: luto comigo.

E em vão procuro, distingo

o que em mim é perna,

angústia, baço.

 

 

 

 

 

 

METAPOEMA

 

Não quero o poema (ou a poesia)

especulando acerca do que não sabe,

ou se sabe, não revela:

não o quero metendo o bedelho

onde não for chamado,

e nem diga (entre risos e versos)

coisas fúteis como amor

e nem se perca conjeturando

o salário (de fome) do vizinho.

Quero antes o poema

         (não a poesia)

nas ruas, nos bares, nas esquinas

(fatigado da existência)

como um fuzil apontado

para o balão de todas

          as ideologias.

Quero o poema cruel

                       terrível

                       corrosivo

                       lisérgico

                       sangrento

                       amargo

mas antes de tudo solidário

(que nestes tempos de crise

toda ternura é pouca).

 

Não quero o poema

(via aberta para o infinito)

detrás dos guichês, nos out-doors,

quero o poema livre

como um pássaro

que voasse (certeiro)

            à eternidade.

Por esse motivo

nada digo no poema

que ele já não conheça:

           — além, é claro

           de dúvida,

                incerteza,

 

                              solidão.

 

 

 

 

 

 

ILUSÃO DE ÓPTICA

(através de óculos escuros)

 

I

 

Numa vã tentativa

meus olhos buscam reconhecerem-se

diante do espelho:

enquanto fitam-se assombrados

e sentem-se estranhos

                   constrangidos

                   divididos

                   inquietos

                   irreconhecíveis

e me parecem alheios, tristes,

tão distintos de si mesmos,

tão distantes daqueles olhos

castanhos e sem jeito

(repletos de dúvidas

              & angústia)

que um dia reconheci

(quase por acaso)

no sigilo das palavras

(por detrás da mobília

e das unhas por fazer),

como se sentisse

uma raiva incontrolável,

um ódio inexplicável,

uma exasperação qualquer

que me desafiasse

no cerne da carne lúcida,

e não soubesse o que dizer

dentro da noite àspera,

onde aprendi a contemplar

meus olhos em silêncio

tentando em vão persuadí -los

da lucidez e da renúncia,

e que hoje contemplo

um tanto desconfiado

(sob o disfarce da pele)

como se não fossem meus.

 

 

II

 

Enquanto perscruto minha face

sinto que meus olhos me vigiam,

que dilatam-se na escuridão

e estão calmos e inquietos,

mas me observam delatores,

espreitam-me do fundo da íris,

acusam-me de traição e indiferença,

e estão sedentos por outros olhares

e me olham com desprezo

como se me dissessem

coisas em segredo.

Fingem-se de mortos,

riem-se de mim

enquanto se afastam,

amargos e intrigados,

de toda contemplação;

mas se queixam e resmungam

e tão logo se diluem no espaço

e se fundem com o tédio,

e se confundem com o dia

e ficam ali, mudos e extáticos,

como se me hipnotizassem,

e logo após se contraem

(como num passe de mágica)

e me interrogam no escuro.

Então novamente me aproximo

e finjo que não os vejo;

e, subitamente, eles se fecham.

 

 

III

 

Há anos que os vejo

refletidos nas vidraças,

e que convivo solitário

com sua indiferença,

com seu mistério corpóreo,

com seu ar snob e blasé,

diante do espanto

com que os espreito

e, calado, os investigo,

malgrado o meu pesar

que já não pesa muito,

e minha incerteza

de não querer saber

o que se passa comigo

quando me contemplam

e não posso dizer nada,

de tanto conhecê-los

e sequer compreendê-los,

enquanto o dia

inutilmente se conclui,

e a noite esplende

seu rútilo cadáver,

e não há proveito

para estas palavras

que me ensinam

a sutil diferença

entre o corpo e a alma.

Torna-se difícil percebê-los

através da estranheza

com que, solertes,

eles me policiam.

Mas meus olhos silenciam

e sequer suspeitam

que a vida se esgota,

que o povo sofre,

que há fome nas ruas,

e há morte nos becos,

e mesmo ignoram

que o poema

anda triste.

Enquanto lêem,

Garcia Lorca

é executado,

Che Guevara

é assassinado,

Nelson Mandela

é libertado,

Geraldo Vandré

é torturado,

Caetano Veloso

é exilado,

Napoleão Bonaparte

é derrotado,

Júlio César

é esfaqueado,

Jesus Cristo

é crucificado,

a angústia sobe

na mesma proporção

dos arranha-céus.

 

 

IV

 

Meus olhos estão tristes

(mas contemplam a paisagem

onde agora sobrevoam

gaivotas e urubus

e agoniza o crepúsculo).

Eles nem desconfiam

(andam longe dos jornais

e noticiários televisivos)

dos mortos em Sarajevo,

dos famintos em Biafra,

dos mísseis em Tel-Aviv,

dos abismos em Berlim,

dos detritos em Detroit,

dos bombardeios em Beirut,

dos corpos em Adis-Abeba,

dos crimes em Nova Iorque,

dos massacres em Pretória,

da guerra em La Paz,

da acidez em Lima,

do sufoco em Buenos Aires,

das distâncias em Brasília,

do calor em Caracas,

das prisões em Bogotá,

da guerrilha em Luanda,

do ódio em Maputo

ou das crianças em Hanói.

Estão imóveis e taciturnos,

no entanto, confusos,

não sabem para onde olhar,

mas se cruzam na tarde

e sequer poderiam supor

que caminham juntos,

e que se despedem,

e que se encontram,

e que se encantam

e, no entanto

(eternamente separados),

andam tão próximos de si,

que pouco bastaria

para que se olhassem.

Mas meus olhos estão tristes,

e, por isso, não se vêem.

 

 

V

 

Meus olhos declinam

de toda angústia

e toda esperança:

cegos, olham a paisagem

(e não vêem senão

o que têm diante de si)

e sentem que seria

completamente inútil

resistir ao dia

que, lento, avança

e se hemorragia

derramando sua morte

por toda a cidade.

Meus olhos se redimem

de todo o cansaço

e toda a lentidão,

e debalde ensaiam

uma última carícia;

secretos, anunciam

que a vida se perde

entre gestos e palavras,

mas que alguma coisa

se ganha, e renasce

para iluminar o mundo.

Meus olhos são tristes

e trazem consigo

a marca terrível

de todas as idades,

séculos e eras.

Mas agora que os vejo

(e os reconheço)

sequer me lembro

quando foi que os vi

pela

    primeira

               vez.

 

 

 

 

 

 

REVELAÇÃO DE SÍSIFO

 

A poesia, Fábio, roubou-me tudo.

Mas deu-me, como prêmio, esta solidão.

Dias e dias acumulados atrás de páginas,

ainda virgens e inexploradas;

o silêncio rouco das madrugadas;

palavras sem sentido, fúteis tentativas

de erguer uma parede ao redor do nada;

milhares de poemas ainda não escritos;

mulheres que não amam (e que não amarei nunca);

muralhas de angústia, vozes sufocadas,

hecatombes de palavras mutiladas;

versos por fazer, que não dizem nada.

A poesia, Fábio, não deu-me nada!

 

(À parte disso, nenhum outro sentimento).

Engano-me:

 

— A poesia, Fábio, deu-me esta revolta!

 

 

 

[De Simetria do parto]

 

 

 

 

(imagem ©baas)

 

 

 

 

 

 

 

Ricardo Leão, pseudônimo de Ricardo André Ferreira Martins, maranhense, nascido em São Luís aos 2 de março de 1971, dois livros publicados (Simetria do parto, poesia, 2000; Tradição e ruptura: a lírica moderna de Nauro Machado, ensaio, 2002), está radicado em São Paulo desde 1998, com um intervalo de 2 anos (2001-2003) no Paraná, em Cascavel e Ponta Grossa. Reside atualmente em Rio Claro, interior paulista. É licenciado em Letras pela UFMA (Universidade Federal do Maranhão). Realizou o mestrado em Letras pela UNESP (Universidade Estadual Paulista), em Assis, São Paulo. Faz doutorado em Letras no Instituto de Estudos da Linguagem, na UNICAMP, sobre a genealogia do cânone literário nacional. Detém alguns prêmios literários, com destaque para o III Festival Universitário de Literatura e o Festival Maranhense de Poesia Falada — premiação em livro e menção honrosa, respectivamente, em 1997 e 1999. Já apareceu em algumas antologias e revistas. Esteve ligado aos grupos literários maranhenses Curare, Carranca e às leituras de poesia organizadas pelo sebo Poeme-se. Edita atualmente, com amigos, o jornal literário O Beta, em Rio Claro. Tem dois livros inéditos: Primeira lição de física (poesia) e Os dentes alvos de Radamés (narrativa).