Livro

 

Lanço-te, marujo!

Urge o arremesso do desbravamento,

O amansar da fúria contida nos dicionários.

Estende o teu olhar pras gentes e vê o que querem.

Vê o paladar apurado do povo,

Agita os braços ante o infante de leituras.

Dou-te todo o meu mar salgado,

Minhas mulheres que choram e riem alto,

Minhas noivas dispostas ao divórcio das prendas,

Arquétipos da minha avó cabocla.

Vai, marujo!

Arrisca teu perfil às tintas, ao incesto das editoras,

Aos naufrágios à beira da porta,

Aos críticos que rasgarão teu ofício de dias.

Vai, portuoso!

Beija na boca todas as mulheres que querem teu beijo,

Todos os homens dispostos ao risco,

Abre teu pórtico de páginas aos servos, aos escravos,

Aos que vivem sob vigências de feudos modernos.

Vai, marujo! Gruda nas casas novo ato de liberdade,

Conspira com os nossos,

E toma da noite sua embriaguez,

Sua inspirada subversão de Musa.

Vai, marujo!

Lança-te ao Mar com tudo que nele há

De Pessoa, de Neruda, de Carlos, de Adélia,

De Cora, de Bandeira, de Clarice, de Lorca.

Vai! E afoga meus navios velhos, viola minhas certezas,

Viola minhas mentiras, meus fingimentos de Poeta,

Viola minha caixa de Pandora,

Meu anonimato, meu suicídio diário,

Minha textura de negra, minha candura de puta.

Vai! Antes que eu me lance sem âncoras,

Pois que deixo velas, remos e medos muitos.

 

 

 

 

 

 

Abandono

 

Deixo aqui minhas vontades.

Deixo uma reserva surda de dicionário,

Um relicário de enigmas silenciados,

Uma patente do meu novo invento:

Um ovo de amor bem-sucedido.

E algumas orações pra causas sem remédio.

Deixo a aliança sem sentido, de prata, com ferrugem, com asma,

Com disritmia, febre, apatia de fibra, tecelagem de aço morto,

Tédio das promessas passadas, e o meu desgosto de fracasso.

Deixo um litro de leite na porta da geladeira,

Para ser fervido amanhã.

Um bule preto, um ferro a carvão que meu pai pintou de verde.

Uns versos brancos, outros vermelhos,

Outros com o azul, que é teu.

Outros, ainda, cor de sol: tudo num envelope aéreo.

Fico por um tempo nua,

Por um tempo sem pensar,

Sem prejuízo de existência,

Pés descalços,

Olhos vazados, boca murcha.

Brônquios e filantropias arremessados ao chão.

Precipito-me em deixar-me aqui também,

E seguir sem mim, pois que fico.

Fico agarrada pelos ácaros do tapete da porta de entrada,

Pelos degraus da escada, roucos.

Deixo-me vestida de ausência.

Apanhada pelos porões do que fica, do que passou,

E não é, ainda, passado.

Mas prometo amar-te, apesar do desamor futuro,

E das plantas mortas na nossa varanda,

Onde noite penetra e vento aventura-se disposto.

Sou déspota do desamor forçado,

Refém das coisas vividas,

E do que, em mim, é puro apego.

 

 

 

 

 

 

Ai de mim!

 

Deu de abrir comissuras na minha pele,

Porque ele partiu.

E nunca mais voltou pra minha alcova,

Pro meu convento de moça,

Pra minhas paúras,

Pra minhas pioras de noiva,

Pros meus pincéis de Almodóvar,

Pra minha cova roxa.

Eu fico esperando volta.

Ai de nós, mulheres feias!

Ai de nós, mulheres tortas!

 

Deu de abrir fissuras na minha boca,

Porque ele partiu.

E eu fiquei oca,

Fiquei seca,

Virei louça,

Vivi morta.

Ai de nós, mulheres feias!

Ai de nós, mulheres tortas!

 

Deu de abrir fendas no amor,

Porque ele partiu,

E nunca mais voltou.

Eu sucumbi ao sol:

Comi calêndulas,

Girassóis feridos,

Flores de abóboras,

Serpentes de vidro.

Abri a porta e gritei:

Ai de nós, mulheres feias!

Ai de nós, mulheres tortas!

 

 

 

 

Armada

 

As horas vêem minha euforia insana

De quem sorri à espera de milagres.

Um antídoto digno da minha loucura,

Cura pra todos os males do meu dia,

Coisas assim.

Abandonada em folias de menina

Crescida em colo de mãe,

Deixo o desespero e o empório pra mais tarde.

O aluguel, as casas vazias, chaves pra cópias,

Tudo reservo para a eternidade vindoura, legítima.

Quem pensa que eu morro se engana:

Tenho sangue de senzalas e exalo morros,

Meu palácio é feito de arrastares, desprezo de sonhos,

Falências, cores velhas, arcaísmos de profeta lilás.

Jamais amo sempre o meu Senhor.

A paz em excesso por vezes me atormenta,

Fervo as veias em pensamentos,

Cozo desejos num tacho grande de caruru.

Minha casa é feita de renda inglesa e avencas,

O homem que amo me acha boa, bonita,

E sabe que sou poeta, arrebanhada entre os malditos,

Escassa de verbas,

E aventurada de poesia.

Os verbos rondam o meu chão como estrelas.

 

 

 

 

 

 

Arrefecimento

 

 

Mário bateu à porta na primeira noite.

Beijou-me a mão, sorriu-me desajeitado

E calou.

Abri, acendi a vela, aqueci o guarda-chuva

Que ficou armado, duro, firme.

 

Na segunda noite, Mário só entrou, sem bater,

Sem cerimônia, sem requintes de fineza ou timidez.

Fiquei azeda, apaguei o fogo guardado,

Apaguei meus olhos molhados de uma esperançazinha boba,

Não mandei que sentasse.

Deixei o guarda-chuva num canto,

Mole como entrou.

Mário virou uma batata e nunca mais me fez visitas.

É uma pena!

Quando arrefeço é assim.

 

 

 

 

 

 

Brejo

 

 

Angélicas acalentam durante o dia o olhar

Sobre os meus pés de menina que sente o cheiro do brejo.

Há uma vizinha que enlouquecerá,

Há o nome tantô, filhos belos, casa decorada,

Prosperidade e segurança.

Há no quintal da casa um brejo,

Há caixas de ovos, cheirando a isopor branco,

Há o menu do futuro nas mãos da minha mãe,

Órfã nos dias dos nossos passos.

Haverá melancolias de tardes com as vizinhas da minha mãe.

 

A poesia me oferta remissão,

A facilidade das confissões,

O esconderijo dos pequenos furtos.

Mas, e a vida?

 

Tenham paciência com os meus desatinos amarelos,

Tenham paciência com os meus desatinos vermelhos,

Paciência com minha inapetência pras paciências diárias.

 

Confesso o meu pânico, a minha demência cega.

Sou poeta! Eis minha pena, meu punhal, meu álibi.

Minha balança.

 

 

 

 

 

Concupiscências

 

 

São esses riscos lilases nos olhos,

Vontade de invadir o ímã para aprender atrações,

Encontrar pistas.

Adiante, o paraíso de mendicidades furtivas

Para um outro alheio,

Aliado da indiferença, do rouco, do comportamento perfeito.

Concupiscente, o meu olhar pede:

— Se apiede deste corpo que definha!

Linha apontada para o desespero das pequenas ânsias.

Quero casca de ovo torrado num pires branco,

Bordado de rendas azuis.

Uivos, unhadas, pedradas no telhado da casa...

De tudo tenho feito pra dar certo o derreter dos sentidos,

O esparramar-se das carnes,

O melindre do verbo.

 

Concupiscências

São o tremular das folhas secas quebrando nos pés,

Suor de tinta que envelhece seca,

Harpa cansada de ser brinquedo,

Adorno nos lábios de mulher boa.

Meu apetite jejua, testemunha colapso d’esperança séria,

Despedaça minha sedução.

Meu enigma é enxergar o sol de quem vive à sombra.

 

 

 

 
 

Entrega

 

Afundo os meus navios

Olhando o quanto sou fogueira de velas muitas.

Marca na testa é sinal de deusa Musa.

Limpo o chão da casa dos meus súditos,

Colho as ervas finas do dia,

Ancoro repolhos no molho branco,

E digo não, quando quero.

Ademais, quem disse que eu presto?

Protesto demais pra uma coisa fêmea,

Memória me diz:

Lugar de mulher é no silêncio,

Tormentas, é homem quem sofre.

Estou em cada comboio de gente que busca alento em lugar,

Arreio, em comarcas, o meu assombro

Dessa lida de malas abarrotadas de pedras.

Minha mãe nem sabe da mesma sina.

Vontade sinto de cortar caminhos

Por onde passa esse rio vermelho.

Cansei-me, há muito, de ser,

Só trago continuísmos de lesmas.

Recuso-me a dormir calada,

Alada, voaria até o sol para derreter-me as asas.

 

 

 

 

 

 

Melão de cerca

 

Quando ele veio,

Disse-me palavreados.

Balancei a cabeça,

E banquei na cara um sorriso:

 

— Nada sei de poesia, moço!

Só sei catar solidão na areia,

E dormir com cavaleiros imaginários.

Como carambolas na cerca,

E apedrejo meninos feios que riem de mim.

 

Gosto muito é de gudes,

E tenho plantas no telhado.

Cori é homem das gaiolas,

Cora é mulher de versos,

E eu: só peço doces, fados, e violas.

 

Gosto muito também é de telhas!

E de espelhos!

Aqui e ali,

Vejo moçoila branda,

Raparigas honestas,

E fulanas doidas.

Visto calçola grande, de babado.

Tenho namorado todo dia à porta de casa

Olhando em meus olhos as remelas vindouras.

 

De roscas, não falo!

Nem de viúvas.

Matheus, Lucas, João...

São nomes de homens santos.

Também esses, não falo!

Sou mulher de calos na língua,

Não sou de arestas.

Enfio dedo em palavras grossas:

Banjo e abelha.

 

Pirâmides de taipas são uso que faço de moradia.

E, pra terminar, em favela eu não moro.

Deixo sob viadutos meu salvo-conduto de rainha.

E, ainda que não vejam,

Digo pra ele: cala a boca, bem!

Amo o surdo-cego da não fala.

Fala não, bem! Só dorme!

Aí eu amo.

 

 

 

 

 

Meu poema

 

Levei nove meses gerando um poema,

E o meu marido louco em questões de paternidade.

Nunca confesso o meu verso!

Trepadeira sobe na parede da casa,

E eu como a casca de barro entre a tinta e o tijolo.

Gosto de comer terra quando acordo.

Quando nasceu, fiz temperada e chamei amigos,

Usei algodão de chita.

Ele sério, cismado, num canto,

E eu sempre grávida.

De nove em nove, paria um poema

E era festa lá em casa.

Se contasse, inspiração ia embora,

Levando ovário, útero e as trombetas.

Eu fico é quieta,

Servindo temperada com minha camisola de Musa.

 

 

 

 

 

 

Mosaico

 

Tenho medo de pássaros

Quando invadem o meu quarto.

Ruflar de asas inúteis,

Tornam-se abutres de pesadelos arcaicos.

Cacos quebrados de pulsos que amaram

São meu mosaico triste, caleidoscópio pio,

Pulsação inerte de fome.

Sucumbo, sukuse, socorro, carne, carma.

Arremesso versos à parede, à rede de aranhas,

Às piranhas, às vedetes virgínias, às virgens doces.

Arrebanho meu bocado de gado e fujo do campo.

Dou azo ao acaso oco

De não sorrir ao pouco,

De não temer o louco que habita a pedra do meu quintal.

Sou uma fulana doida,

De palavras grossas e versos malacabados.

Tenho um rabo que o meu homem gosta,

Mas rabos, muitos os há!

Meu verbo, ele é único,

E um verbo que ninguém viu,

Atrofiada lâmina de silêncio e sede.

Nefelibata maldita de batas antigas,

Acrobata de gerânios,

Amante de umbelinas florescências tropicais,

Rejeito terras, âncoras, alianças.

Interurbanos obrigatórios, filiais,

Sinto latejo aberto.

A vida inteira dedicada aos versos.

 

 

 

 

 

Sacrifício

 

O perfume salienta um cheiro nobre.

E falo de nobreza d’alma, dessas inatas.

Santo Expedito, ajuda-me nesta empreitada:

Quero olhos e ouvidos para o meu sol.

Assombrada de tantos nadas no Império,

Eu apenas quero fartura no realizável,

E um profundo corte nas veias para derramar

A minha sangria do incabível.

Quero minhas saliências vesgas,

Meus enfartos cotidianos,

Sulcos amaldiçoados da existência - TODAS.

Quero correr lavouras de algodão,

Tecido grosso cobrindo meu corpo negro,

Sossego de borboletas dormindo.

Quero nascer de novo em cada livro.

Gritos muitos até que chova,

Aragem faça-se,

E a minha coragem se ouça.

Lanço-me aqui, diante da crença do dia.

Em verdade, irada!

Em verdade, moça de ontem.

Em verdade, eu poeta, em verdade.

Poeira, aceita-me viva.

 

 

(Do livro Tratado das veias)

 

 
(imagens©losthighway)
 

 

Rita Santana (Ilhéus-BA, 22/08/1969). Atriz, escritora, professora licenciada em Letras pela UESC. Ganhou o Braskem de Literatura para autores inéditos em 2004, com o livro de contos Tramela, pela Fundação Casa de Jorge Amado. Em 2005, participou da coletânea de prosa e poesia Mão Cheia com quatro escritoras baianas. Em 2006, publicou Tratado das Veias, livro de poesia do selo As Letras da Bahia. Vive em Lauro de Freitas, Bahia.